sábado, 6 de abril de 2024

As Marias de San Gennaro (MEROLA, Editora Insular. 2019)

 

Release 

As páginas de As Marias de San Gennaro foram nascendo aos poucos, as primeiras no início da década de 1990, as últimas em anos recentes. Sua criadora, a pedagoga paulistana Edna Domenica Merola, costumava invocar San Gennaro nas horas de trabalho árduo, brincando com o bordão de humor “San Gennaro for give me”. E é o santo milagroso de devoção dos napolitanos e dos descendentes de italianos da Mooca, bairro de São Paulo, quem conduz as Marias pelas páginas do livro que ela lança agora dentro da série Palavra de Mulher, da Editora Insular.

“Quando comecei a escrever as histórias sobre um grupo de professoras, San Gennaro se apresentou na narrativa, ainda inanimado em seu altar, mas depois foi se humanizando e tomou conta do "pedaço"...”, conta a autora. “O santo reproduz um pouco minha trajetória no magistério. A carreira de 32 anos em escola pública e órgãos administrativos afins exigiu a aprendizagem de atender demandas diversas rapidamente e com poucos recursos, o que quase é sinônimo de fazer milagres”, explica Edna.

A narrativa do livro progride linearmente na descrição das relações culturais que tem por cenário a escola até os anos 1990 e as mídias digitais a partir dos anos 2000 e 2010, mas não pense o leitor que as histórias são didáticas ou pesadas. São textos curtos e bem humorados. “Gostaria que o livro fosse lido por pessoas de qualquer idade que gostem de histórias com humor, por professoras e professores, e especialmente por crianças e adolescentes em processo de aquisição do hábito da leitura e do riso”, completa a autora.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Céu-cor. Cassiano Silveira

Cassiano Silveira lançou recentemente Tr3s contos sobre mães famintas e outros textos que devoramlivro físico que pode ser adquirido com o autor (instagram: @sianosilveira) ou no site da editora Toma Aí Um Poema (tomaaiumpoema.com.br). 
Historiador, dedica-se à arqueologia, à ilustração, capas e outros serviços editoriais, à produção de textos (entre poesias e  contos).




Capa Cassiano Silveira


Capa Cassiano Silveira 
Capa Cassiano Silveira

Capa Cassiano Silveira


Na literatura contemporânea de língua portuguesa, contribui com contos instigantes, a exemplo de:

Céu-cor 

 

O enorme outdoor exibia um céu em tons neutros e monótonos, acinzentados. Uma imagem algo próxima de um céu chuvoso, ou talvez poluído. Letras garrafais vendiam o produto mais popular do momento: "Dia cinzento? Olhe novamente com Céu-cor". Quase ninguém precisava olhar novamente. Céu-cor já fazia parte do hábito da maioria da população.  

Céu-cor era a droga do momento: descoberto a partir da pesquisa de drogas antidepressivas, era o novo Rivotril, o novo LSD e o novo Ecstasy, tudo ao mesmo tempo, mas melhor e sem os efeitos colaterais. Pelo contrário: a sensação de bem estar era acompanhada de uma extrema capacidade de concentração, memorização, aumento da capacidade cognitiva e do autocontrole emocional. 

Quando foi lançado, ainda como medicamento, causou frisson: o índice de pacientes depressivos remidos do mal chegou próximo aos oitenta e cinco por cento. Dentre os quinze por cento restantes os sintomas tornaram-se mais sutis, regredindo para casos leves. O índice de suicídio entre os pacientes em tratamento psiquiátrico reduziu-se em mais de noventa e cinco por cento. Em países como Canadá, Japão, Finlândia e outros, os suicídios também caíram a níveis nunca antes imaginados. Chamar o Rivotril de droga da felicidade tornou-se uma piada. Céu-cor era muito mais eficiente. 

Após algum tempo de uso, estudiosos começaram a cogitar se a nova droga poderia ter uma função social relevante. Como a Organização Mundial da Saúde não relatara nenhum tipo de efeito colateral ou contraindicação, iniciaram-se alguns projetos-piloto em presídios que apresentavam índices de violência preocupantes. O resultado foi quase imediato. Ao distribuir o medicamento entre os detentos, os presídios onde foram feitas as experiências tornaram-se tão tranquilos e seguros quanto jardins de infância. Na verdade até mais, pois o elevado autocontrole das emoções tornava desnecessário descarregar a tensão em atividades físicas, competições ou qualquer coisa semelhante. Presidiários antes agressivos e intratáveis tornaram-se tranquilos como monges budistas. 

Muitas pessoas que anteriormente não experimentavam tratamentos psiquiátricos começaram a buscar indicações médicas para usufruir dos benefícios de Céu-cor. Considerando que não havia efeitos colaterais, a sociedade médica começou a considerar a possibilidade de isentar o medicamento da necessidade de prescrição. O Laboratório iniciou, em diversos países, ações para classificar o seu produto não como um medicamento, mas sim como suplemento, o que possibilitaria que qualquer pessoa pudesse comprá-lo numa farmácia, num supermercado, numa loja de conveniências ou qualquer outro estabelecimento afim. 

Após um trâmite a jato, a venda irrestrita de Céu-cor começou a ser aprovada em vários países. Os resultados de seu uso maciço foram incríveis: grandes centros urbanos conhecidos pela violência tiveram sensíveis reduções em seus índices de violência. A redução nos homicídios atingiu os oitenta por cento nas regiões de venda irrestrita; roubos e furtos tiveram reduções quase tão expressivas, da ordem de sessenta a setenta por cento; crimes passionais, violência contra mulher, contra as crianças, discriminação, perturbações em geral virtualmente deixaram de existir. Até mesmo a violência no trânsito se reduziu a números quase nulos. Quando os grandes líderes mundiais começaram a fazer uso de Céu-cor e experimentar seus maravilhosos efeitos, a beligerância mundial pareceu finalmente poder acalmar. Conflitos seculares como a disputa pela cidade de Jerusalém e outros menos longevos, como a Guerra da Coréia, grupos separatistas nas mais diversas regiões do mundo: aos poucos todas essas contendas começaram a não fazer mais sentido. 

Nunca na história a verdadeira paz mundial fora uma possibilidade tão próxima.  

A despeito de todos os efeitos psicológicos produzidos por Céu-cor, não havia a ocorrência de alucinações ou distorção dos sentidos, com uma exceção muito interessante: o céu observado pelo usuário adquiria as cores mais surpreendentes e imagináveis. Desde variados azuis e verdes, passando pelos alaranjados, vermelhos, roxos, amarelos, dourados, prateados, brancos e pretos cintilantes ou qualquer outro tom que a mente humana pudesse conceber. O céu nunca mais foi o mesmo depois de Céu-cor. 

Era esse efeito que Serena desejava naquela manhã. Um comprimido de Céu-cor ao acordar era o aditivo perfeito para sua meditação matinal. Levantou-se no horário costumeiro e ingeriu a pequena pílula que lhe aguardava sobre a mesinha de cabeceira. O dia estava claro e o sol entrava pela grande janela da sala, iluminando toda a área do tatame com sua cálida luz primaveril. 

Despiu-se do leve pijama que usava e sentou-se em posição de lótus, nua para absorver a energia solar através de todo seu corpo. Olhou através da janela e aguardou que o céu tomasse aquela tão aconchegante cor de café com leite que lhe era costumeira. No entanto, após um ou dois minutos, o efeito esperado não se manifestou. Levemente consternada, a jovem mulher se dirigiu à bolsa para pegar outro comprimido, ingerido com certa pressa. Voltou ao seu lugar, fechou os olhos e aguardou algum tempo, respirando fundo e relaxando, certa que teria o efeito desejado agora. Quando abriu os olhos, porém, um límpido céu azul pairava do outro lado da vidraça. Frustrada e incapaz de se concentrar, sentiu o estômago reclamar. Bem, já que não vira o seu céu cor de café com leite, poderia ao menos bebê-lo. O café, não o céu. 

Foi até a cozinha, abriu a janela e uma leve brisa invadiu o ambiente, trazendo consigo o aroma cítrico do limoeiro que crescia próximo. A visão da árvore lembrou-lhe que depois do almoço poderia preparar um espresso romano para energizar sua tarde e concluir naquele dia mesmo o balancete mensal da sua pequena loja virtual, onde vendia incensos, óleos essenciais, velas perfumadas, imagens de divindades orientais e outros badulaques energético-espírito-meditativos. A lojinha vendia bem, apesar da demanda não ser a mesma de dez anos atrás – depois de Céu-cor, poucas pessoas viam necessidade de fazer meditação ou buscar outros métodos de relaxamento. Manter a contabilidade em dia ajudava a garantir a saúde do negócio. Agora, porém, desejava uma bebida quente, doce e macia. Despejou cento e cinquenta mililitros de leite numa jarra de aço e levou-a ao fogão elétrico (não gostava de micro-ondas). Enquanto o leite aquecia, foi à estante buscar o café solúvel e o açúcar, mas só encontrou o segundo. O café havia terminado havia já uma semana e ela esquecera sistematicamente de comprá-lo em cada uma das vezes que estivera na padaria ou no supermercado. Esses lapsos de memória não eram comuns para ela, ainda mais depois que passara a tomar duas doses de Céu-cor por dia. O curioso é que uma amiga próxima havia reclamado do mesmo problema pouco tempo atrás. Talvez devesse procurar um médico. Sentiu um sopro de vento fresco, um arrepio percorreu seu corpo dos pés à cabeça. O dia estava mais frio do que imaginara. Fechou a janela. Decidiu se vestir e sair para tomar o desjejum na cafeteria próxima. Arrumou-se e saiu pela porta da frente no exato momento em que o leite levantava fervura e esparramava pelo tampo de vidro do cooktop. 

A cafeteria ficava a duas quadras de distância. Serena precisaria subir uma pequena ladeira até encontrar a rua principal do tranquilo bairro residencial onde morava. Sua rua era um local pacato quase isento de prédios. Terrenos com jardim eram cada vez mais raros na cidade e ela se sentia privilegiada de poder usufruir de um quintal particular naquele canto felizmente esquecido pela especulação imobiliária. Uma vez na rua principal a paisagem era diferente. Diversas lojas abriam suas portas para largas calçadas revestidas em piso cimentício. Nos pavimentos superiores, apartamentos abrigavam as famílias de classe média que alimentavam o comércio local. Na quadra seguinte acessou a pequena galeria comercial onde, no fundo do corredor, escondia-se a aconchegante cafeteria, que provavelmente não teria nenhum movimento nesse horário, quase nove e meia da manhã. Serena sentou-se numa das banquetas altas em frente ao balcão enquanto a porta automática se fechava atrás dela, isolando os ruídos da rua e criando um ambiente agradável, imerso em aroma de café e uma suave música de fundo. Pôde fazer seu pedido imediatamente, pois que não havia nenhum outro cliente. 

-Bom dia, Rosane! Um latte, por favor. Pode adoçar - pediu Serena, mais apressada que o normal. 

-É pra já, amada! Vai comer alguma coisa? 

-Um croissant. Não, não... Uma fatia de bolo de laranja, aquele com açúcar de confeiteiro em cima. 

Logo a atendente trouxe o pedido e, como de costume, puxou assunto. Era uma balzaquiana vistosa e muito sorridente. As duas costumavam conversar amenidades sempre que a cliente vinha passar o tempo no estabelecimento. Naquele dia, porém, Serena não estava conseguindo se concentrar no diálogo. O profundo decote que Rosane usava salientava a exuberância de suas grandes mamas, hipnotizando-a. Num jargão mais popular, Serena estava “conversando com os peitos” de Rosane. A atendente percebeu a situação inusitada de forma lisonjeira e, ligeiramente trêmula, debruçou-se sobre o balcão, aproximando os cotovelos de forma a salientar os atributos físicos ora cobiçados – ela sempre sentira uma atração pela jovem, mas até então nunca havia observado qualquer lascívia recíproca. 

A sensação que tomava Serena, porém, era nova para ela. Não se tratava de atração sexual, mesmo porque nunca sentira o menor desejo por outras mulheres. Mas aqueles seios aparentavam ser tão macios, tão quentes... Enquanto o latte esfriava na xícara, Serena balbuciava palavras que não lhe faziam qualquer sentido. Em sua cabeça, somente uma imagem girava: os peitos de Rosane cobertos com açúcar de confeiteiro, enquanto ela os lambia. Tomada por um impulso incontrolável, Serena estendeu os braços invadindo a roupa de Rosane, deslizando as mãos por seus volumes e expondo finalmente a plenitude daquelas tetas apetitosas. 

Rosane ficou chocada e excitada com aquela surpresa, ainda mais partindo de pessoa sempre tão cândida. Num segundo decidiu, apesar do inesperado da situação, deixar que Serena avançasse naquele voluptuoso ataque – não havia outras pessoas no ambiente e, caso algum cliente se aproximasse, poderia vê-lo através da vitrine em tempo suficiente para que pudesse se recompor. Lamentou que o CFTV não estivesse funcionando – as imagens seriam uma maravilhosa recordação. 

Passando por sobre o balcão, Serena mergulhou nas carnes da barista. Sentia uma necessidade incontrolável de apalpar aqueles peitos quentes, lamber, chupar... Não, seu desejo era mordê-los. Seu cérebro era um turbilhão incontrolável de pensamentos: por um lado, não conseguia entender por que estava fazendo aquilo, tendo um contato tão carnal com alguém que sequer lhe era íntima; por outro, estava em frenesi, sem conseguir enxergar qualquer coisa que não seus objetos de desejo. Rapidamente, todos seus aspectos racionais sublimaram, toda a realidade ao seu redor perdeu o significado. À sua frente, não estava mais Rosane, a funcionária do café, mas sim uma presa; os seios onde Serena afundava seu rosto não eram mais seios, apenas carne. Carne viva! 

À primeira mordida, Rosane soltou um gritinho assustado e excitado, perplexa com a ousadia da jovem que a abraçava. Porém, no momento seguinte, a dor se fez mais profunda que o esperado. Ao olhar para baixo, a atendente viu algo vermelho no rosto de Serena e, ato contínuo, sentiu outra dentada na mama oposta. Procurou se desvencilhar da parceira tão pouco carinhosa, mas não conseguiu. A garota segurava-a com um abraço de urso e parecia ter mandíbulas de urso também. As mordidas se sucediam e Rosane, em pânico, percebeu que já lhe faltavam vários nacos de carne. Estava sendo devorada. 

O Investigador adentrou a cafeteria depois de abrir caminho entre o agrupamento de curiosos que se formara no corredor da galeria. Perguntou ao guarda que estava na porta por que o cordão de isolamento não estava lá fora, rente à calçada, e como resposta obteve apenas um olhar embasbacado vindo do agente com cara de adolescente. Deu as costas para o rapaz e se encaminhou para o balcão, onde outros policiais já iniciavam a perícia. Estava de mau humor. Sua dose matinal de Céu-cor não fizera efeito e ainda recebera a incumbência de ir até o local de um assassinato. Fazia já seis anos que não investigava um crime desse tipo e agora, faltando só uns poucos meses para aposentadoria, tinha que “segurar esse rojão”. Ao deparar com o corpo de Rosane, porém, o mau humor deu lugar à perplexidade. Em meio a uma poça de sangue, uma mulher que parecia ter sido vítima de uma alcateia de lobos famintos. Pedaços de pele e carne faltavam-lhe por todo o corpo, mas era na região do tórax que estava o maior estrago: os seios da mulher haviam desaparecido, decepados sabe-se lá como, as costelas expostas, brancas como se tivessem sido lambidas. 

Virando-se para outro lado, o Investigador tentou disfarçar o choque daquela visão, surreal como um filme gore. Passou a coletar informações com os presentes. O chamado para a polícia havia sido feito por um cliente do café, que agora estava prestando depoimento na delegacia; algumas testemunhas afirmaram ter visto uma mulher sair do café embrulhada numa toalha de mesa, mas pensaram ser apenas uma forma de se proteger do vento sul que fizera a temperatura cair repentinamente. As câmeras de vigilância do café não estavam funcionando – quase não havia crimes, por que vigiar? – e as da galeria, em princípio, não mostravam nada diferente dos depoimentos. Voltou para o carro e pensou se teria tempo de ir almoçar em casa. Lembrou-se das generosas nádegas de sua esposa e sentiu fome. 

xxx 

No terceiro dia corriam boatos de que algumas pessoas estavam surtando e saindo pela rua, tentando devorar transeuntes incautos; logo surgiram memes na internet, com frases espirituosas e imagens de antigos filmes de zumbis. 

No quinto dia, os boatos se tornaram notícias assustadoras de atos de canibalismo perpetrados por pessoas comuns; um vídeo mostrando um pipoqueiro mordendo a perna de um idoso numa praça ganhou o mundo. 

Em uma semana o pânico estava instalado. Ninguém era confiável! De um momento para outro, membros da própria família poderiam devorar-se uns aos outros; a professora poderia atacar seus alunos; amigos de futebol poderiam se tornar predadores furiosos. 

Aos nove dias, os escassos grupos anti-Céu-cor levantaram a hipótese de que a droga pudesse estar causando uma psicopatia coletiva, o que foi imediatamente negado pelo Laboratório. Os sistemas de comunicação globais começaram a falhar. Começaram a faltar alimentos. 

Aos dez dias o Laboratório emitiu nota em que dizia estar investigando possíveis efeitos indesejáveis de Céu-cor, mas que tais efeitos não estavam relacionados com a onda de ataques-zumbi que já dominava o mundo. 

No décimo primeiro dia o conselho administrativo do Laboratório devorou-se entre si durante uma reunião de emergência. Os sistemas de comunicação via satélite caíram; os sistemas de fornecimento de energia elétrica começaram a falhar. 

No décimo terceiro dia plantas industriais inteiras ardiam em incêndios causados pelos equipamentos descontrolados; as últimas usinas produtoras de eletricidade caíram e o planeta ficou às escuras pela primeira vez em centenas de anos. Gritos de pânico vinham de todos os cantos. 

Aos dezessete dias, os grandes centros urbanos estavam quase desertos; poucas pessoas tentavam sobreviver sozinhas, pois companhia havia se tornado sinônimo de ameaça. Na falta de outras pessoas, os zumbis devoravam-se entre si. 

Aos vinte dias cessou a última mensagem de rádio, vinda de um farol de navegação perdido numa ilhota do atlântico. A mensagem pedia alimentos, combustível e cinquenta caixas de Céu-cor. 

No vigésimo primeiro dia a humanidade estava extinta. No centro de um cruzamento, num tranquilo bairro residencial, jazia um corpo de mulher. Apesar de vestido em andrajos manchados de sangue, ainda era um corpo bonito, ostentando quase todos os seus membros. Na mão esquerda segurava uma xícara, na direita um pacote de café solúvel. Seus olhos opacos permaneciam abertos, fixos, olhando para cima, como se admirassem aquele céu lindamente... azul.


REFERÊNCIAS

SILVEIRA, Cassiano. Tr3s contos sobre mães famintas e outros textos que devoram. Curitiba: Eu-I,2022, pp 45-54.


Anexo I:

Leitora: Kátia Trevisan, psicóloga e autora do prefácio de Tr3s contos de mães famintas e outros textos que devoram. 

"Em Céu-cor, os sobreviventes construíram um mundo no qual um minúsculo comprimido tem o poder de mudar a cor do céu e o estado da alma até revelar uma fome escondida. Fome de quê? (TREVISAN, Prefácio, in SILVEIRA, 2022, P 8).


Anexo II: Céu-cor. E a necropolítica?

Leitora Edna Domenica Merola


Ao saborear o belo conto de Silveira, fixei-me num trecho que me instigou a relações com vivências recentes. Para propor trocas/debates compartilho:

"No terceiro dia corriam boatos de que algumas pessoas estavam surtando e saindo pela rua[...] logo surgiram memes na internet, com frases espirituosas e imagens [...]

No quinto dia, os boatos se tornaram notícias assustadoras de atos de canibalismo perpetrados por pessoas comuns;[...] 

Em uma semana o pânico estava instalado. Ninguém era confiável! De um momento para outro, membros da própria família poderiam devorar-se uns aos outros;[...] amigos de futebol poderiam se tornar predadores furiosos. 

Aos nove dias, os escassos grupos [...] levantaram a hipótese de que [havia]  uma psicopatia coletiva [...] Os sistemas de comunicação globais começaram a falhar. Começaram a faltar alimentos." (SILVEIRA, 2022, pp 52-53).

Relendo as citações que destaquei, pergunto aos demais leitores: quais as relações com a realidade compactuada que podem ser estabelecidas para debate. Aguardo seus comentários.

Edna Domenica é administradora da página Leitores & escritores: interações https://www.facebook.com/groups/279852160277760

E organizadora e mantenedora de blogs temáticos:

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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

A organicidade temática em Do corpo ao corpus. Edna Domenica Merola








Do corpo ao corpus e a organicidade temática 

Uma coletânea escrita por diferentes autores e que possui organicidade de enredo: eis o grande diferencial de Do corpo ao corpus

 A organicidade de enredo e de personagens

“Composto por diferentes autores e autoras, de gerações outras, a coletânea Do corpo ao corpus apresenta uma organicidade de enredo e personagens que, desavisados, concluirão se tratar de um único escritor ou escritora.”. (SOUZA, Rogério, p 12).

Personagens

“Mesmo nas escritas curtas, as personagens apresentam uma profundidade psicológica e são encantadoras, cativando rapidamente os leitores.” (SOUZA, Rogério, p 12).


Enredo

“A perda de cabelo, a insatisfação com os pés grandes, o beijo forçado dos irmãos siameses, a tatuagem na mão direita de um jovem triste, etc., ficcionalizam marcas e dores no corpo como metáfora de uma sociedade que, hipnotizada pelas imagens do Tik Tok e Instagram, valoriza, em demasia, o aparecer no lugar do ser.” (SOUZA, Rogério, p 11).

Lê-se em Autoimagem:

“Uma das confissões foi: odiava os próprios pés. Calçava 41. Falava pra mim que detestava comprar calçados, que quando os calçava e se olhava no espelho da loja, se sentia como um daqueles palhaços de circo usando sapatos enormes, desproporcionais. [...] Falava empolgada da “cirurgia da Cinderela”, até descobrir que o procedimento pouco influenciaria na numeração que ela usava. Falei que ninguém reparava no tamanho dos seus pés, [...] - Eu reparo! - dizia ela, encerrando o debate.” (SILVEIRA, p 101).

 Lê-se em Na mão direita:

"Olho para suas mãos e vejo uma tatuagem que cobre a pele de sua mão direita. Evito que ele perceba minha admiração até porque não somos próximos, e não posso deduzir o motivo pelo qual ele tenha feito aquela tatuagem imensa.

Tenho um impulso muito forte de querer saber um pouco da sua vida. Algo perdido no ar me afirma que aquele quase menino traz consigo uma intensa marca de dor.” (NOBRE, p 69).

A esperança

“Enxerga-se, no olho de algumas personagens, a esperança em superar momento não imaginado nas ficções mais inventivas.” (SOUZA, Rogério, p 11).

Lê-se em Devaneios de um instante:

“Luta desigual: sobrevivência versos fenômenos naturais. Apesar das condições impróprias o seu rosto transmitia alegria, dignidade e esperança.” (SOUZA, Rosilene, p 55).

Lê-se em Aquele doce beijo tatuado no desejo:

“Nem sei como enfrentar esse quase não existir e que mesmo assim, quase inconcebível, acolho como dádiva única. Espero é de esperança amorosa.” (GIL NETO, p 41)


Introspecção

“Em alguns textos ouve-se a voz de Clarice Lispector” (SOUZA, Rogério de, p 12).

Lê-se em Aquele doce beijo tatuado no desejo:

“A solidão vai me confessando. É que no silêncio, apreendo as minhas inconfissões mais plausíveis. Vou aprendendo-me em rodas, geringonças, insensatez. Inauguro-me em resistências e abro trilhas de me redescobrir nos mal feitos. Me construo nesse vulcão, nas labaredas das palavras silenciosas que se entregam ao fluir das mutiladas emoções, mas que se apagam no brilho dos seus olhos. Que ainda brilham no céu de tanto arrebatamento. No espelho que ancora esse ínfimo presente posso reconstruir-me assim. O que vivo é meu andaime. Meu corpo sobrevive a tantas almas, ranhuras, cortejos.” (GIL NETO, p 42).


Ficção e sonho

“A tese que a ficção deve agir como um sonho aparece em alguns textos, com figuras mágicas” (SOUZA, Rogério de, p 12).

Lê-se em Devaneios de um instante:

“Passava os dias, tardes, noites bailando tal qual uma sereia, só que vestida. Ao invés de seduzir o ingênuo público com minha voz, seduzia-os com a minha dança. No lugar do mar, um aquário. Os espectadores ficavam extasiados, encantados, com a minha pessoa. Via os olhares brilhantes, cobiçosos, estarrecidos, incrédulos, invejosos, furiosos... Olhos, sempre olhos a me despir e a me cobrir. Algumas miradas ficaram impressas nas minhas retinas molhadas, ora de lágrimas, ora pela água do aquário.” (SOUZA, Rosilene de, p 55).

Extraordinário

“Diferentes contos - que em alguns momentos se aproximam da crônica social, apresentam o ordinário e comum de forma única, transmitindo, sem assustar, que o extraordinário pode aparecer em acontecimentos simples, como num devaneio sobre a batata da perna - desde que estejamos sensíveis para olhar ao nosso redor.”. (SOUZA, Rogério, p 12).

Lê-se em Barriga da perna:

“Sentei. Olhei para barriga da perna e vi o tempo. Músculos flácidos, sem massa, procurando apoio contra a força da gravidade.” (MOTTA, p 81).

Lembranças

“Aliás, a lembrança enquanto sujeito arrebatador atravessa muitas escritas. Lembranças dos ensinamentos da avó. Lembranças do momento atual daqui há 10 anos. Lembranças da leitura de um romance. Lembranças da ditadura civil-militar no Brasil. Tudo muito sentimental, mas sem ser sentimentalista.”. (SOUZA, Rogério, p 12).

Lê-se em Nunca iria contecer com você:    

“E você recupera na memória os fatos amargos que teve que testemunhar durante a ditadura militar: as máxis desvalorizações da moeda nacional; os depósitos compulsórios para sair do país; as censuras de peças teatrais, filmes e livros; a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil; a “mudança” de Chico Buarque para a Itália; o silêncio triste que imperava nos barracões da Filosofia no campus da USP, nos anos 1970; a obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica ou dos chamados Estudos dos Problemas Brasileiros; que anulou o voto durante muitos anos porque só havia a ARENA e o MDB; que votou pra presidente pela primeira vez aos 36 anos de idade.” (MEROLA, p 89).

Lê-se em Brasil 2033:

“Esta história se passa num encontro de professoras aposentadas, no ano de 2033.

Após várias tentativas frustradas de reunir o grupo, finalmente o encontro aconteceu no final da tarde, de uma quinta-feira, no apartamento da Bel.” (POMPEU, p 73).

O amor

Lê-se em Aquele doce beijo tatuado no desejo:

 "O meu corpo pulsa na ardência de algo de voo. Algo que flui e arrebata. Mesmo que efêmero." (GIL NETO, p 41). 

Lê-se em  Relatos de um amor livre:

"O amor é tudo: é sexo, é conversa, é aprender com o outro." (SILVEIRA, p 36).


Lê-se em Minha avó:
"O amor por plantas [...] se mantém como raízes das nossas memórias familiares. Levo como marcas tatuadas os bons e grandes exemplos de minha avó." (
NOBRE, p 60).

 A magia do escrever

“Enxerga-se, no olho de algumas personagens, a esperança em superar momento não imaginado nas ficções mais inventivas. Porém, uma marca persistirá. A magia do escrever. Axé!” (SOUZA, Rogério de, p 13).

Lê-se em  Caminhar e ...

“Escrever é praticar magia...

Tirei da cartola da vivência: lata de lixo, parque de diversões, lentes, gato, dunas, buraco de ponte feito a boca da Bernunça, ao invés de coelhos. Foi assim que o mágico do circo que havia na Vila Independência, nos anos 1950, foi morar num haicai:

Na cartola feia,

coelhos enganam olhos

qu’ alva luz tapeia.” (MEROLA, p. 88).

 

 REFERÊNCIAS

Do corpo ao corpus. GIL NETO, MEROLA, MOTTA, NOBRE. SILVEIRA. POMPEU, SOUZA Rogério, SOUZA Rosilene. ISBN 978-65-87264-99-8. SC, 2022, pp 11,12,13, 36, 41,42,50, 55, 60, 69,73,81,83,88,89,101,105. 



 

 

 

 

 


sexta-feira, 30 de abril de 2021

Quem é o ser que narra? Edna Domenica Merola

 MEROLA, E. D. Quem é o Ser que Narra? In: De que são feitas as histórias, p 89-90.

 

Ao perguntarmos quem é o ser que narra uma história escrita, a resposta óbvia é dizer que é um eu que o faz. No entanto, identificar as representações envolvidas num determinado contexto narrativo demanda um esforço de análise.

A narrativa em primeira pessoa é algo inerente à organização cognitiva infantil operacionalmente concreta. No entanto, a narrativa em primeira pessoa, para efeitos da análise do texto literário contemporâneo, demanda abstrações em torno da diferenciação ou não entre autor e narrador.

A perspectiva do narrador personagem é de dentro da história. Participa de seu enredo como protagonista ou coadjuvante, usando os pronomes ‒ eu ou nós ‒ para narrar.         

Quando um autor publica um texto narrativo usando o pronome eu, ocorre dos leitores suspeitarem de que a história é verídica. Se a temática é contemporânea e se o narrador é onisciente, isso fará o leitor supor que o texto é autobiográfico. O viés recorrente é a leitura de mundo que os autores expressam na construção da ficção sob a própria percepção do momento social. Ora, o que é vivido coletivamente no cotidiano é chamado de realidade. No entanto, a narrativa representa a realidade, não sendo idêntica a ela.

É contemporâneo pressupor que o lugar narrativo (de onde e de quem parte a história narrada) é mais apelativo do que o conteúdo anedótico daquilo que é exposto, descrito, narrado. Atualmente livros de autoajuda se tornam best sellers e seus autores se destacam em modalidades sócio profissionais diferentes da de escritor. Ou seja, autor e narrador se fundem de tal forma a confundir o aprendiz de literatura na distinção entre ambos.

[...] O autor poderá também criar um narrador com condições para construir uma narrativa que instale essa dúvida no leitor, fazendo disso material estético.

Leituras complementares

https://aquecendoaescrita.blogspot.com/2017/08/atividades-sobre-o-conto-de-escola-de.html 

http://netiativo.blogspot.com/2014/06/diario-de-classe-do-primeiro-semestre.html

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Cânticos de Recordações. Edna Domenica Merola

Regina Rennó

Edna Domenica Merola acredita que as lutas por oportunidades no contexto atual demandam muita força e empenho, principalmente no campo das artes e em especial da autoria feminina. Por isso apresenta, nesta postagem, sua palavra poética sobre o encontro amoroso visto do ângulo da mulher.



I- Em botão

 

A aurora debruça-se

 em minha janela

Do seu colo nu,

brotam lembranças

     de você

 

Sob as copas das árvores,

Cantam canários,

Sussurra o vento

Doce acalanto

          de suaves

          recordações.

Um raiozinho de sol

Seca pequena gota de orvalho,

Minha percepção vê detalhes

                              de você.

 

Teu corpo pôr-do-sol

Teus olhos mares azuis

Teus braços caracóis

Teus cabelos, vermelhas labaredas.

 

Tua insistência me estonteia

Tua decisão me admira

Tua poesia me enternece

Teu pragmatismo me inveja

Teu estresse me preocupa.

Tua irritação me desagrada. 

 

E você é mais

                    Do que eu percebo

E você é mais

                    Do que você percebe

E você é mais,

do que jamais

Alguém perceberá

 

E você é minúscula réplica do divino infinito,

E você é espiritual...

Transcendental...

Do encontro de nossos corpos

Abre-se uma porta

Estira-se uma ponte

Estende-se uma estrada

Fundem-se corpo e mente.

 

E é tão sublime,

Amor Maior,

Dizer frases obscenas,

Berrar, gemer, estremecer

E até adoecer

                    De medo

De ser fêmea em plenitude de repente.

Botão virando rosa

                              Simplesmente.

 

 

II- Num baile Carnavalesco

 

Homens... Muitos! Afoitos

Mulheres seminuas

Carnaval...

Alegria respirada no ar:

Como lança-perfume.

Fantasia de penas brancas:

Sou então uma índia brasileira.

 

Para um olhar azul

Retribuo sorriso meigo-sensual.

Inicia-se o ritual:

A dança paradoxal

Da aproximação de dois polos distintos. 

Ataque ansioso – acolhida serena,

Beber muito – estar sóbria,

Dançar – descansar.

A dança paradoxal:

Compasso – descompasso,

Equilibrar copos – encontrar cadeiras,

Dançar – procurar.

 

No pique – repique,

Então acertamos o passo:

Carnaval ... compasso:

Passo com: – você

Você:  – comigo.

Numa noite estrelada

                    Enluarada

Num baile carnavalesco,

Procurou-se: – alguém,

Perdeu-se: – a tristeza

Encontrou-se: – um menino bem crescido

 Natural – como um índio.

 

  De fantasia de índia brasileira...

   Sou então: – viva cachoeira.

 

 

III- Em busca de plenitude

 

Nesse instante em que o dia agoniza,

Raios de sol retidos no meu ventre

dançam como enormes serpentes.

 

O amarelo

que batia desesperadamente em minha vidraça

entrou e dourou meus cabelos.

 

E esse rosa exagerado

que ficou após a grande bola-ouro

penetrar o útero da terra

reflete o tom de minhas faces em fogo.

 

Uma brisa fresca acaricia meu corpo...

(Brisa auto correio: – trouxe-me lindas notícias do meu inconsciente)

 

Instantes de estranha magia,

Estes em que a noite copula com o dia.

Divino entrelaçar de elementos opostos,

Resfolegante luta entre brilhantes e opacos.

 

Enfim... Plenitude: a noite cavalga o dia.

é o momento incontestável

do orgasmo universal:

Astros brincando...

Estrelas despudoradas mostram-se todinhas!

E o véu negro da noite, ciumento,

Deixou só por poucos momentos

A lua nuazinha.

 

O sereno cai, umedecendo lírios silvestres,

Tal qual efeito de pudica orgia,

Nesse instante em que a terra ficou grávida

 do calor de uma noite de alegria!

É noite. O silêncio é cúmplice do mistério.

A escuridão, irmã dos instintos,

permite a visão dos corpos celestes.

É noite. É permitido SER,

AMAR,

SENTIR PRAZER,

VER,

PENSAR,

ANTEVER,

TRANSCENDER...

É noite.

Animus e Anima buscam o Uno,

em seu leito Universal!

 

IV- Num Encontro

 

Farol vermelho, olhares oblíquos.

Convence-a a mudar de trajeto:

Um homem de branco

(insistente como um carrapato)

Ele faz o sedutor.

Ela diz não

(não quer ser presa de ave de rapina)

Sem acordo... Adeus...

.......................................................

Telefone toca.

Ela atende.

Do outro lado,

Carrapato branco jorra o vernáculo.

(Palavras em profusão não a convencem)

Mas de repente, Branco declara

querer ler suas poesias.

Gelo derrete.

Andorinha bate as asas

Voa ao encontro do gavião.

............................................................

Geladeira na sala.

Poesias.

Vinho alemão.

 

Dentro do armário há uma pia

Cuja torneira pinga sem parar.

São Paulo é fria

Dois corpos querem se aquecer.

 

V- Na mão

 

Amanhece...

Pequeno Grande Homem

Sai às ruas de branco,

Andando apressado,

Pasta na mão.

Pouca paciência,

Muitos ideais.

Grandes certezas,

Enormes convicções:

– Importante ter status...

– Necessário ter amigos...

– Impraticável casar...

 

É noite...

Pequeno Grande Homem

Volta pra casa cansado,

Andando apressado,

Pasta na mão.

Mais um dia na metrópole desvairada

Mais um dia de pequena paciência,

de grande certeza de homem ideal.

Pequeno Grande Homem também tem sonhos

                    Dúvidas, angústias, confusões

 

Então fala sobre eles

com ausente azul olhar

sem pretender resposta

do surpreso interlocutor.

Pequeno Grande Homem:

ora lúdico, ora em concentração,

Sempre insistente,

Pedindo muita atenção.

 

Após tanto labor...

tem fome,

voracidade de pessoas,

Sede de amor...

 

Pequeno Grande Homem

Procura uma fêmea apressado,

Buscando calado,

Sem nada na mão.

 

VI – No encontro - terra

 

Aproximamo-nos de mansinho.

Meu coração bate descompassado,

Na expectativa de que me abras a porta do teu.

Deixas apenas uma fresta

E por ela vem tênue luz

Que me convida para encontro.

Titubeio...

 

Entrar e sentir tua aceitação-rejeição?

Ficar adorando fantasias passadas?

Escolho correr o risco.

Persigo a luz envolvente.

Enfim conseguimos contato,

Por apenas um canal.

Por ele me expresso inteira:

 

Vivo o mítico encontro-terra,

Instintivo, universal.

 

Serpenteamos,

buscando o fruto do prazer

...........................................

..........................................

Ah! Doce êxtase!

Do teu corpo emanam raios do teu fluído vital.

Bebo tua luz

Sugando e emanando energia,

Nesse círculo envolvendo nossos corpos.

 

Então dá-se a gênese:

Estrondo atômico,

E silêncio de vácuo.

 

Cumpre-se a lenda:

– A maçã foi comida...

Até a semente!

 

VII - Em Transfusão

 

Teu corpo é aurora no campo orvalhado,

É relva macia, é feno molhado,

É favo de mel.

É santuário de essência imortal

É depositário de fluído extra-sensorial

É início de uma escalada dolorida

É fim e princípio de vida.

 

Teu corpo, moreno, é pôr-do-sol,

É lusco-fusco vestido de translúcida fantasia,

É convite para uma noite de orgia,

É delicada concupiscência e estranha nostalgia.

Teu corpo visto de longe, tudo bem!

Teu corpo sentido de perto é um vai e vem!

Mas que estranha irradiação é essa que estonteia?

Que doce troca magnética é essa que se esparge?

Só sei que, de repente, frio e calor

Tornam-se morno,

Verde e amarelo dão azul...

 

E, da dança de dois corpos

Funde-se uma aura unicolor.

 

 

VIII- Em Transmutação

 

A manhã é azul

A tarde rosa,

A noite negra.

Também sou:

Azul rosa negra

Transmutante

Sou azul,

Gaivota cintilante,

Semeando lírios, no céu.

Azul, no amor universal

Azul, no enfoque existencial

Azul transcendental.

Sou cor de rosa,

Na esperança do amor,

No enlevo,

Na gratificação do aconchego.

Sou cor-de-rosa choque

No êxtase borbulhante

De dois corpos, no encontro.

Sou vermelho

E vermelho escuro

E negro.

 

Numa gradação contínua,

Que vai dos instintos aceitáveis banais

À sombra fria do desconhecido.

 

 

IX- Nos bares

 

Era mulher, na roda dos bares

Dos nomes calados, na roda, sem lares.

 

E a musa murchou

E o vento levou

Bons moços sem,

Bem moças zen

bailando pesares.

 

E a onda passou...

E o foco mudou...

 

E quando puderes,

Na roda sem pares

Dos nomes casados,

Dos rostos calados,

Na roda de andares,

Recorda os passares

Recorda os cantares

Recorda os sonhares.