domingo, 29 de junho de 2014

Manhã de Inverno. Edna Domenica Merola

Durante o inverno, várias espécies de aves migram para outros locais nos quais o clima está mais ameno... Foi pensando nisso que me lembrei do texto Momento “Andorinha” escrito num sábado de 2013. Era dia 14 de setembro e faltavam sete dias para o início da primavera no hemisfério sul, onde vivo. Lá e então, citei a simbologia das andorinhas:
–No Islã, é símbolo de renúncia. Entre os persas, representa despedida, por causa de sua natureza migratória.

Lá e então, escrevi:
– E as andorinhas chegarão de longe... Trarão poetas... Pois eles migram sempre!
Por meio dessas releituras deduzi que, sendo inverno, minhas andorinhas deveriam ter partido. E por onde andariam meus poetas?
Deduzi que, para o meu inconsciente, meus criadores pelas palavras não amariam a frieza da solidão... Ao contrário, os ‘meus poetas’ amariam o fogo da criação capaz de animar qualquer sentimento inerte... De elucidar qualquer ato obscuro... De movimentar qualquer marasmo insolente...
Sei que meus poetas vivem o parodoxo que segue: chegam com as andorinhas nos locais privilegiados, mas não abandonam, nem se abandonam. Nem todos os poetas sofrem de depressão como leigos em poesia podem supor. O trabalho do poeta resulta "de um estado ou momento poético vivido [que é] algo semelhante ao que a Terapia da Gestalt descreve como [...] entrar em contato com o aqui e agora [...não diz] respeito à pessoa civil e sim a um eu poético." (MEROLA. 2014. P 48). 

O processo de criação é alquimia. Seu resultado almejado é transformar todo metal em ouro. A transformação na alquimia é interior e uma alteração ocorre, concomitantemente àquela. Alteração significa ação do outro (alter) dentro de nós. A ação social é matéria prima da constituição do sujeito: é modificadora e gera crescimento. A frieza, o fechamento, a ilusão, a imaginação inoperante, a inconsciência e a inconstância se dissipam na alegria do acolhimento. É por esse movimento de tropismo que se dá a busca da luz, da novidade, da clareza, da conscientização... O processo alquímico de encontro transforma o banal em preciosidade, transforma a busca interior em mudança social, transforma a busca em iluminação. Esse processo que parece tão complexo faz parte de ações corriqueiras [por um lado, e] algo fantástico como andar, confortavelmente, de mãos dadas com um dragão[por outro]! (MEROLA, 2012. P. 16).
Com um exemplar de No Ano do Dragão em mãos e aberto à página dezesseis, aqui e agora aceno em adeus às imaginárias amigas andorinhas. E contemplo um verdadeiro céu de manhã de inverno que tem também sua beleza. Entendo que outros pássaros virarão palavras... Pois meus poetas são pessoas inquietas (talvez por olhar o humano em suas grandes misérias e grandiosas belezas)... Mas transformam inquietudes em expressão que supera a espreita e se transforma em ato cidadão pela comunicação.
Poetas são seres paradoxais assim como a beleza do recolhimento contemplativo de uma manhã de inverno e do acolhimento solidário, em qualquer estação.

sábado, 7 de junho de 2014

Ritual de Leitura: De mãos dadas com um Dragão. Edna Domenica Merola.


'Orelha' e contra-capa do livro No Ano do Dragão. Florianópolis: Postimix. 2012.
Talvez você espere que diga coisas sobre a minha vida. Mas eu não vou contá-las como quer. Sei que gosta de pessoas que contam suas superações: relatos lineares sobre perenes batalhas que se tornaram guerras vitoriosas pelo poder do grupo de ouvintes.
A vida me deu menos colo do que sonhei. Alguns amigos queridos me foram levados pela vida... Só ela sabe e tem seus motivos de fazê-lo. Outros me foram tirados pela morte... E dela ninguém quer saber (e por vários e legítimos motivos).
– Falemos de nascimento!
Vim para esse mundo sob um signo do horóscopo ocidental do elemento ar, sob um signo do horóscopo chinês relativo à água. Mas a vida me fez aprender com as tarefas de deitar raízes nas terras trabalhadas e de acender o fogo dos rituais do mister de ensinar. À revelia dos territórios de aprendizes estranharem minha natureza magistral afeita à água e ao ar.
Sei que relatos lineares acalmam a plateia... Histórias assim contadas são músicas de acalanto para o leitor enfarado que precisa vencer a insônia. São, no entanto, momentos de sínteses existenciais que me fazem pegar um lápis e registrar as descobertas...
(– Sobre a vida passada? – perguntará o leitor.)
Refiro-me às descobertas sobre a vida temporal em especial faceta: sem que se tenha por meta colocá-la linearmente como se fôssemos seres que aceitássemos viver cada processo como uma simples sucessão de: um começo, um meio e o fim.
O processo de criação é alquimia. Seu resultado almejado é transformar todo metal em ouro. A transformação na alquimia é interior e uma alteração ocorre, concomitantemente àquela.
Alteração significa ação do outro (alter) dentro de nós. A ação social é matéria prima da constituição do sujeito: é modificadora e gera crescimento.
Enquanto tecia essas considerações fazia o ritual necessário para acessar seu correio eletrônico. Interrompeu as reflexões para ler um PPS – apresentação conjunta de texto, imagem e som exibidas em slides – que uma amiga enviara.
Mostrava peculiaridades de um ninho construído junto a uma janela de um prédio e fotografado por um morador que achou aquilo surpreendente e fez circular na Internet destinando-o principalmente às crianças. Adultos se apropriaram do contido nas imagens, texto e som e associaram-no à fé religiosa e comprovação da existência de Deus.
Durante a construção do ninho, a fêmea conferia a obra de arte do macho. O ninho foi construído em forma de círculo com minúsculos pedacinhos carregados no bico do João-de-barro, por aproximadamente dois meses, em jornadas de oito a dez horas de trabalho. O pássaro usou diferentes materiais nas diversas fases da construção. Iniciou com materiais mais duros e terminou com os mais flexíveis. O ninho ficou bem fechado e protegido, assemelhando-se a uma caverna. Minha amiga acrescentava a tudo isso seu comentário:
– Bela obra deste pássaro e que cavalheirismo ele tem... Os homens têm muito que aprender com ele. Atualmente, enquanto as mulheres constroem o lar, o homem além de não elogiar ainda tece críticas ferozes... Geralmente é assim: quem nada faz em conjunto, só critica o que foi feito em prol do outro. Acredito que o correto é substituir crítica por sugestões que levem ao aprendizado.
Habituada a se comunicar sob a égide de efemérides, respondeu-lhe:
– Grata pelo envio, minha amiga. Em época de Páscoa, na qual se ouve falar tanto em renovação e êxodo (saída dos hebreus em busca do Egito...), trazer o tema da construção e dos feitos em processos demorados (que contam sempre com as mãos de arquitetos transcendentais) é muito bem lembrado e inspirado. Então o João de Barro passa a ser um pássaro cavalheiro nesse seu dizer poético.
A amiga dos longínquos tempos de escola respondeu-lhe:
– Oi, amiga, tudo bom? Você consegue dar brilho a algo tão simples e pueril. É uma fada a pulverizar ideias e fazer as pessoas pensarem. Saudade, beijos.
Havia intuído que a amiga estava um pouco ressentida. Após receber sua resposta, confirmou que sim, e completou sua resposta, elogiando-a:
– Um Universo de conforto se constrói com versos colocados a cada dia: como você tem feito em sua vida. Parabéns, minha amiga, o mundo precisa de Joões (como o pássaro cavalheiro) e de Joanas como você que tanto tem abrigado pessoas. Grata por me abrigar em seu rol de amigas... desde 1983.
Não perguntou a quem a amiga se referia, quando dizia que há pessoas que gostam de criticar. Sabia que ela incluía em seu vasto rol de atividades a dedicação a uma associação beneficente e que provavelmente organizou algo para lembrar a Páscoa. Então escreveu à amiga:
– Meu recado para a turma que pratica a crítica aos outros como um esporte radical é que aguardem o sábado de Aleluia que é o dia apropriado de malhar o Judas!
Em respeito às circunstâncias, omiti, em meu comentário, que estudiosos de comportamento animal afirmam que o joão-de-barro não admite que sua parceira o traia. Quando isso acontece, o parceiro a aprisiona definitivamente no ninho, construindo a vedação total da casinha, com ela dentro. O que considero grande falta de cavalheirismo!
A solidariedade não se compromete com a cobrança e o aprisionamento. A solidariedade espontânea é a verdadeira prática beneficente, pois constitui sujeitos: humaniza.
A frieza, o fechamento, a ilusão, a imaginação inoperante, a inconsciência e a inconstância se dissipam na alegria do acolhimento.
É por esse movimento de tropismo que se dá a busca da luz, da novidade, da clareza, da conscientização...
O processo alquímico de encontro transforma o banal em preciosidade, transforma a busca interior em mudança social, transforma a busca em iluminação.
Esse processo que parece tão complexo faz parte de ações corriqueiras como as relativas à leitura.
O movimento de tropismo em direção ao encontro do leitor é busca processual cujo resultado é um livro. Mas um livro sem um leitor é um buscador sem meta: um dragão opaco, franzino, medroso e apagado.
– Caro leitor (cara leitora), acenda as luzes da ribalta. Pegue o dragão pela mão, leve-o ao proscênio. Ateie o fogo... Inicie seu ritual de leitura... Afinal, só você pode fazer de um objeto como um livro algo fantástico como andar, confortavelmente, de mãos dadas com um dragão!

MEROLA, Edna Domenica. De Mãos Dadas com um Dragão. In: No ano do Dragão. Florianópolis: Postimix. 2012.

Criação de Personagens e RPG. Edna Domenica Merola.



Um item importante para aprimorar a escrita da narrativa é a experimentação pormenorizada e consciente da criação de personagens. Ilustrarei com uma intervenção pedagógica que abarca aspectos de realidade e ficção, concomitantemente. A ficção foi incorporada ao jogo didático desde a proposta de criar um super-herói. No entanto, o problema que o super-herói deverá solucionar foi extraído da leitura da realidade. Além de itens inspirados nos tópicos recorrentes em fichas de jogos de representação de papeis (RPG: role playing games) foram acrescentados quesitos para traçar o perfil do personagem antes de sua evolução para o âmbito de super-herói. O jogo começa por imaginar-se um herói cheio de poderes. Imagine que você deve um favor a um anjo bom que quer que você pague sua dívida ao planeta Terra, ao invés de pagar diretamente a ele.   Imagine uma situação de diálogo e analise a questão: "o que o anjo lhe pediu em relação a desenvolver hábitos pessoais relativos ao convívio entre amigos, vizinhos e familiares? " Após responder à questão, monte as fichas do super-herói que tentará solucionar o problema apresentado. Inicie pelas características que o personagem apresentava antes de desenvolver as capacidades que, como super-herói, deverá deter. A seguir faça a caracterização do super-herói. Seguem sugestões para as duas fichas:
1-Fase anterior a tornar-se super-herói
Local e data de nascimento.
Histórico familiar e afetivo.
Como se comunica?
Como se relaciona?
Quais são seus valores?
O que ama? O que o motiva?
Quais são seus ideais?
O que conquistou para si?
O que fez para a comunidade?
Desempenha uma profissão? Qual?
2-Fase de super-herói
2.1- Atributos
Saúde.
Capacidade de percepção; acuidade dos sentidos da audição, da visão, do olfato e outras.
Capacidade de interagir com pessoas.
Capacidade de suportar pressões psicológicas.
Força.
Agilidade.
Inteligência.
Capacidade de superação de condições ambientais adversas.
Capacidade de domínio dos elementos: água, terra, fogo e ar.
Ética.
2.2- Habilidades
Habilidade de negociar, de dialogar, de convencer.
Habilidade de abster-se (jejuar, meditar, etc.).
Destrezas: escalar, nadar, domesticar animais,...

2.3- Talentos
Habilidade de locomoção e interação no ambiente.
Resistência às temperaturas baixas ou altas.
Bens materiais acumulados.
Quantidade e qualidade de aliados.
Bens espirituais acumulados.
Grande eficiência em algum tipo de perícia.

2.4- Posse e manuseio de equipamentos
Mapas, Anotações, armas, escudos, objetos raros ou mágicos; lanterna, tocha; água, comida, cordas, etc.

Em seguida, escreva uma história que começa pelo encontro entre dois personagens de ficção: um super-herói e um anjo. Invente um diálogo no qual os personagens debatem o problema a ser solucionado, propondo formas de usar os potenciais para desencadear ações que levem a alcançar as metas estabelecidas.

Referência:

MEROLA, Edna Domenica. De que são feitas as Histórias? Florianópolis: Postmix. P 96-99.