quinta-feira, 9 de julho de 2015

O Duplo e a Unidade de Efeito no Conto O Gato Preto, de Edgar Alan Poe. Edna Domenica Merola.



"Considerado o pai dos contos de horror e terror, Edgar Allan Poe (1809- 1849) foi também um dos autores que mais influenciou o Simbolismo francês. Textos como “O Gato Preto”, “Retrato oval” [...] “A queda da casa de Usher” são excelentes exemplos de literatura gótica." (FRATUCCIL, 2015.)
O Conto o Gato Preto, de Edgar Alan Poe foi escrito em 1843. À época, o uso temático da psicologia do terror, envolvendo o medo da monstruosidade 'diabólica'  e da loucura 'degenerescente' despontava na literatura mundial. Em anos posteriores, com a literatura romântica, e em períodos posteriores, com as correntes de pensamento afeitas ao ALIENISMO, o tema da loucura passará a ser recorrente. O conto O Alienista (Machado de Assis, 1882) aborda o tema referido para fazer uma caricatura sobre a cultura do manicômio presente na realidade, mas também recorrente na ficção. 
O conto O Gato Preto trata da construção de um personagem narrador paranoico. Segundo a psiquiatria clássica, nessa patologia, o raciocínio é preservado, mas a confiança e a confiabilidade acham-se alteradas. Essas prerrogativas são desenvolvidas com os vínculos que se formam nas relações entre as pessoas. Ter confiança e ser confiável são habilidades que dependem do ambiente para serem desenvolvidas na pessoa. O conto trata da precariedade do estabelecimento de vínculos afetivos. O amor ou o ódio é expresso apenas em relação ao gato preto (Plutão). O personagem narrador assassina a própria esposa. Às vésperas de sua condenação à morte escreve uma carta despida de emoções. O relato do personagem é tão frio quanto a lâmina do machado que usara para matar a mulher. 
Em breve revisão de literatura para esse estudo constatou-se que há textos que pretendem analisar o conto O Gato Preto recorrendo a interpretações afeitas às ciências psicanalíticas. O grave erro dessas análises é o de confundir autor com personagem narrador, tirando Edgar Alan Poe de seu descanso eterno para colocá-lo no "divã". De minha parte, mesmo sendo especialista em Psicologia, mas não tendo nenhuma especialização em Literaturas de Língua Inglesa, deixo que descanse em paz Edgar Alan Poe e que viva sua obra ainda hoje tão atual. 
A atualidade do conto O Gato Preto consiste em representar a monstruosidade pelo recurso do duplo: um Gato Preto que depois de assassinado pelo personagem narrador retorna na vida desse como um ser que encarna o Mal. 
O duplo remete o leitor contemporâneo do texto de Poe a estabelecer paralelos com a leitura do social relativos à precariedade da individualidade ou à crise da identidade na contemporaneidade
A réplica ou o duplo de um ser  "é habitado pelo Vazio ou pelo Mal. Constitui, então, um corpo de exceção frente à ordem humana estabelecida e passa a ser percebido ao modo de uma aberração monstruosa, pois em tal lógica o negativo – a ausência – seria fonte do que é inumano."  (MARKENDORF, 2013). 
Para a apresentação realizada em 10/7/2015, no COLÓQUIO MONSTROS À MOSTRA: evento organizado pelo Professor Dr. Márcio Markendorf na UFSC, no CCE, parti da unidade de efeitos no conto de Edgar Alan Poe, para tentar elaborar como o narrador em O Gato Preto mantém o leitor refém de seu relato estranho para causar perplexidade, ao final. 
O duplo (gato preto) comparece como elemento catalisador da criação de tal efeito. 
No imaginário do horror, os monstros são engendrados como imagens desmedidas, frequentemente concebidas como figuras persecutórias de excesso e/ou de exceção, e muitas vezes criadas com base na imediata oposição ao humano ou natural. [...] a presença do personagem semelhante na ficção deflagra um forte elemento persecutório, uma vez que a duplicação de um sujeito implica a materialização do lado negro da persona e, por isso mesmo, frequentemente torna-se um componente aliciador da morte e perpetrador de crimes. (MARKENDORF, 2013). 


O CONTO O GATO PRETO E A CONFIANÇA/DESCONFIANÇA DO LEITOR:

Elementos da análise
Apresentação da narrativa e dos fatos perante o leitor
Narrador personagem: tem por função construir a explicação da ilusão
Muito estranha (passado) / embora familiar (presente)
Verossimilhança e o narrador
Louco não sou/ não estou sonhando/ quero aliviar minha alma (amanhã morrerei) / meus sentidos rejeitam meu próprio testemunho
Propósito do narrador
Apresentar ao mundo, de forma simples, sucinta [...] meros acontecimentos domésticos.
Passividade do narrador perante os fatos
Devido a suas consequências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror  mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis do que barrocos.

Uso do tempo

              Tempo narrativo em 'flash back'. 
              O passado é onde se constrói o ‘estranho’.
              É no fantástico-presente que a dúvida se mantém.
              1º parágrafo: “amanhã” (refere à morte)
              Continua o relato: infância, juventude, casamento (cedo), idade adulta.
              Prepondera a Noite, sucedida pela Manhã, pois nada é situado no período da tarde que seria a possibilidade de intermediações (das quais o personagem narrador é incapaz).
              A escrita do narrador é dirigida a alguém que se situa entre um jurista ('o apreço aos animais testemunharia um bom caráter) ou um psiquiatra (relatar a infância, juventude, "casou cedo", alcoolismo, crendice/não crendice,...).
              O tom é confessional como uma carta de despedida da vida, sem tom saudosista, com racionalismos procura construir um depoimento com lógica aparente (como um silogismo, posto que a lógica ética não está ao alcance existencial do personagem narrador).
       Narrativa em primeira pessoa funciona para construir a explicação da ilusão e ‘captar’ o leitor.

Gênero: Conto

              A narrativa é fantástica: oscila entre a loucura e o sobrenatural.
              A loucura é o fantástico-estranho ou o sobrenatural explicado.
         O personagem narrador conta que está fazendo uma confissão escrita, na qual não dirá a verdade. Lembra uma carta. Não tem identificação nominal do emissor e nem do destinatário.
              O narrador escreve à véspera da sua morte, porém adverte: “não espero nem peço crédito”.  Não pede que acreditem nele e nem confia no outro.
           O conteúdo narrado é autorreferente, mas o personagem narrador não aprofunda a introspecção. Para tal, precisaria ser capaz de confiar num interlocutor.  Mas é incapaz disso. Por ser psicopata, seu padrão comportamental é antissocial, incapaz de ter empatia por alguém ou de sentir remorso por algum ato ou de ter autocontrole.

A Frieza do Personagem psicopata no relato da crueldade

              Na tentativa de diferenciar seu ego de outro ser, o personagem narrador tenta:
            Cegar o não-eu
              Enforcar o não-eu
              Emparedar (enterrar, tratar como morto) o não-eu.
              Remissão ao Édipo às avessas, pois o personagem narrador de O Gato Preto cega o ‘outro’ que o ‘persegue’ (ou seja, o gato Plutão).
         A tônica do relato é a frieza usada na justificativa da perversidade. "Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade." 
.    Não há tão pouco a autopiedade. "Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal."
 
Estrutura Narrativa: Apresentação dos personagens

             Protagonista (que é o próprio narrador)
“Desde a mais tenra infância, destaquei-me pelo temperamento dócil e humano”.
              Animais de estimação são citados (quanto à infância)
              Os pais são citados (somente na infância)
              Animais de estimação (quanto à juventude e no ‘início’ da vida conjugal).
         Plutão (o gato preto é o único que tem NOME, ou seja, é o único ser a quem o protagonista atribui uma IDENTIDADE). O nome do gato não é gratuito, obviamente. Segundo a Mitologia, Plutão era o imperador dos infernos.

Estrutura Narrativa: Complicação

           O alcoolismo - após muitos anos de devoção ao seu querido gato, seu caráter sofre uma mudança sem nenhum motivo aparente, pois ele é dominado pelo demônio da Intemperança: "Mas a minha doença se apoderou de mim – afinal que doença se compara ao álcool?!”.
             O gato morde a mão do personagem narrador e ele arranca um olho do animal.
         O narrador arranca um dos olhos do gato, pois os olhos nada mais são do que o espelho da alma, e por algum motivo o olhar do felino o incomodava; talvez seja pelo fato dele ver-se refletido no olhar dócil do animal que tanto o amara. O gato passa a evitá-lo e ele enforca o gato. Há um incêndio que consome a casa, salvo uma parede com uma ‘mancha’ (imagem fantástica do gato). Passa a beber mais e, numa noite, num bar acha ‘outro’ gato preto.

Estrutura Narrativa: Desfecho

        O gato o acompanha a todos os lugares e quase o derruba na escada que descia para ir à adega com a mulher.
            Pega o machado para matar o gato, mas a mulher segura sua mão, então ele a mata.
            Empareda o cadáver.
      A polícia descobre o crime, pois a parede denunciava ter sido alterada. (O gato geme dentro da parede.). 

Disposição das Cenas

               Convívio harmônico com os animais
 “Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. ”.
Qual emoção essa cena lhe despertaria?

              Convívio rancoroso com o animal de estimação. Gato mordeu a mão dele e ele mutilou o gato.
        Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! ” . 
     Qual emoção essa cena lhe despertaria?

              Convívio perverso com o gato, após a mutilação:
              “o gato [...] fugia com terror extremo [dele e isso o magoava] Mas esse sentimento em breve cedeu lugar à irritação. E então apareceu [...] o espírito de PERVERSIDADE.” 
              Enforcou o gato no dia em que ‘aconteceu’ o incêndio da casa dele.
  Qual emoção essa cena lhe despertaria?

              Convívio com a ausência do gato e com o alcoolismo.
              ‘Acha’ um segundo gato.
              Assassina a esposa.
              Empareda o cadáver
 Qual emoção essa cena lhe despertaria?

              Convívio com as buscas da polícia, já que emparedara o cadáver.
Qual emoção essa cena lhe despertaria?
              Na última busca, o gato geme dentro da parede, a polícia descobre o crime.
Qual emoção essa cena lhe despertaria?

Todas essas cenas são narradas pelo condenado à morte em sua carta sem expressar as emoções humanas esperadas (ódio, remorso, etc...). Isso vai aumentando gradativamente a perplexidade no leitor. 


A não razão
              O narrador comete um homicídio: o da sua mulher, por motivo ignorado. Seu gato de estimação é apontado como culpado de sua perversidade.
     "Ao referir-se à sua [do gato] inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.
     Incoerência o ato cometido não corresponde com a sua justificativa: "Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele.". 

    A monstruosidade, em o Gato Preto, perpassa pela ausência da culpa e da incapacidade de viver a experiência moral, esteticamente inserida pela presença do duplo que corrobora com a construção do efeito da perplexidade.


Poe como teórico da Arte propõe
No conto O Gato Preto
“ter sempre em mente o desfecho da narrativa e, de acordo com esse desfecho, dispor as cenas, criar a atmosfera, de modo a provocar no leitor um efeito definido”.
Há o efeito de perplexidade
Colocar-se contra o “moralismo da arte”
O personagem narrador não tem culpa, nem autopiedade.
Combater a “heresia do didatismo”.
O personagem narrador conta fatos hediondos, mas “Não tentarei explicá-los”.
Diferenciar Verdade de Beleza.
Se misturadas, causam o “abastardamento”.
O horror e o terror são construídos pela ilusão (ou seja, pelo oposto do que é verdadeiro ou real).

REFERÊNCIAS

FRATUCCIL, A. da S. A.-  Aspectos da Literatura Gótica em Villiers de L’Isle-Adam. Ensaios sobre a Literatura do Medo.
MARKENDORF, M. - O clone e a teoria da monstruosidade. XIII Congresso Internacional da ABRALIC. Campina Grande, PB. 2013.
POE, E. A. O Gato Preto. In: Histórias Extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
PAES, José Paulo. Apresentação. In: Histórias Extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 
PAIM, Isaías. Tratado de Clínica Psiquiátrica. Editora EPU.


ANEXO 
O GATO PRETO. Edgar Allan Poe. 

Para a narrativa muito estranha, embora familiar, que ora começo a escrever, não espero nem peço crédito. Louco, na verdade, seria eu se o esperasse num caso em que os meus sentidos rejeitam seu próprio testemunho. Louco, porém, não sou e, com toda a certeza, não estou sonhando. Mas como amanhã morrerei, quero hoje aliviar minha alma. Meu imediato propósito é apresentar ao mundo, de forma simples, sucinta e sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. Devido a suas consequências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis do que barrocos. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões frequentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade.
Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.
Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento – enrubesço ao confessá-lo – sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior.
Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool? – e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim.
Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pelo álcool, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa condenável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados já os vapores de minha orgia noturna – experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto.
Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele.
Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado – um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma sequência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente.
Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minúcia, uma parte dela, as palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição – pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa –, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então frequentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme – tão grande quanto Pluto – e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pelo branco em todo o corpo e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse, detendo- me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo.
Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por que – seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia.
Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha bem como a lembrança da crueldade que praticara impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos – muito gradativamente –, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo – apresso-me a confessá-lo –, pelo pavor extremo que o animal me despertava.
Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso –, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível – que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa –, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável – um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... Uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso – encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim – pousado eternamente sobre o meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros – os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade – e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, frequentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca se convertendo na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase me fazendo rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de ideia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma ideia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.
E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito.
Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite – e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranquila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia – e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro.
A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência. – Senhores – disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada – , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita.
Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes – os senhores já se vão? –, estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração. Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!






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