sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Dom Casmurro: um Otelo brasileiro. Edna Domenica Merola.

“Dom Casmurro é um narrador congenitamente embusteiro, já que nasce na narrativa e para a narrativa explicando-se através do engodo: adverte que seu cognome, "Casmurro", não deve ser entendido como está nos dicionários, isto é, teimoso", "obstinado", "cabeçudo" ‒ que é o que ele é; e, sim, como "homem calado e metido consigo" (capítulo 1) ‒ que é o que não é, pois é o único dono da voz nesse romance onde Capitu é implacavelmente silenciada." (SENNA, 2000).
Segundo Wellington de Almeida Santos, "o relato do velho e casmurro advogado se organiza segundo um rigoroso controle da palavra escrita" por meio dos recursos: "reprodução atualizada das falas do passado"; "fragmentação de textos incorporados à narração"; "comentários circunstanciais dos fatos passados"; reflexões do presente". 
A partir desses recursos, indagaremos sobre a tipologia psicológica ou a patologia do personagem narrador. Dom Casmurro (de Machado de Assis) é como Otelo (de Shakespeare) um ciumento doentio? Capitu foi vítima como Desdêmona? Para avaliar essa possibilidade compilamos trechos que referem à dissimulação de Capitu.
Os capítulos: XXV (No Passeio Público), XXXII (Olhos de Ressaca), XXXVI (Ideia sem pernas e ideia sem braços), XLII (Capitu Refletindo), XLIV (O Primeiro Filho), LXV (A Dissimulação), CXXVI (Cismando), CXXVIII (Punhado de Sucessos), CXXXII (O Debuxo e o Colorido), CXLVIII (E Bem, e o Resto?)  mostram qual é a imagem que Bentinho faz de sua mulher e que Dom Casmurro faz de todas as mulheres. O capítulo CXXXV refere a Otelo, peça para teatro escrita por Shakespeare, em que a protagonista feminina morre vítima de um mal-entendido provocado pelo maldoso Iago, valendo-se do ciúme doentio do mouro Otelo por sua mulher Desdêmona.


CAPÍTULO XXV: No Passeio Público

Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim:
‒Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.
‒Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se lembra?
‒É verdade, mas foi tão de passagem.
‒Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua.
‒Mas eu andei algumas vezes...
‒Quando era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! A adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...


Capítulo XXXII: Olhos de Ressaca. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que contarei no outro capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
— Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto.
Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:
— Há alguma coisa?
— Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite?
— Eu bem. José Dias ainda não falou?
— Parece que não.
— Mas então quando fala?
— Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...
— Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.
— Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
— Você jura?
— Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do Céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do Céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no Céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, — para dizer alguma coisa, — que era capaz de os pentear, se quisesse.
— Você?
— Eu mesmo.
— Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
— Se embaraçar, você desembaraça depois.
— Vamos ver.

Capítulo XXXVI / Ideia sem pernas e ideia sem braços  (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Deixe-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí Ias daquela maneira particular, boca sobre boca. E isto vamos é isto... Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu.
Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse e outra vez me fugiram as palavras que trazia Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me.
Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa; respondeu-me que não A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Ideia só! Ideia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6. ° do cap. II: "A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois". Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.

Capítulo XLII: Capitu Refletindo. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

‒ Se eu acendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa.
E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor atá-lo, mas Capitu respondeu que não era preciso, estava boa.
Ficamos sós na sala; Capitu confirmou a narração da mãe, acrescentando que passara mal por causa do que ouvira em minha casa. Também eu lhe contei o que se dera comigo, a entrevista com minha mãe, as minhas súplicas, as lágrimas dela, e por fim as últimas respostas decisivas: dentro de dous ou três meses iria para o seminário. Que faríamos agora? Capitu ouvia-me com atenção sôfrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de cólera, mas conteve-se.
Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto peguei-lhe na mão para animá-la, mas também eu precisava ser animado. Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto- ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitu olhava para dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chão, o roído das fendas, duas moscas andando e um pé de cadeira lascada. Era pouco, mas distraía-me da aflição. Quando tornei a olhar para Capitu, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi brandamente. Capitu tornou cá para fora e pediu-me que outra vez lhe contasse o que se passara com minha mãe. Satisfi-la, atenuando o texto desta vez, para não amofiná-la. Não me chames dissimulado, chama-me compassivo; é certo que receava perder Capitu, se lhe morressem as esperanças todas, mas doía-me vê-la padecer. Agora, a verdade última, a verdade das verdades, é que já me arrependia de haver falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho efetivo por parte de José Dias; examinando bem, não quisera ter ouvido um desengano que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitu refletia, refletia, refletia...
No dia seguinte fui à casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-se de três amigas que tinham ido visitá-la, Paula e Sancha, companheiras de colégio, aquela de quinze, esta de dezessete anos primeira filha de um médico, a segunda de um comerciante de objetos americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me que fora excesso de leitura na véspera, antes e depois do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia-noite, e com lamparina...

Capítulo XLIV: O Primeiro Filho. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

‒ Dê cá, deixe escrever uma cousa.
Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias, oblíquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:
‒ Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com o coração na mão.
‒ Que é? Diga.
‒ Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?
‒ Eu?
Fez-me sinal que sim.
‒ Eu escolhia... Mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso.
‒ Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer...
‒ Não diga isso!
‒... Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me, você vem?
‒ Venho.
‒ Contra a ordem de sua mãe?
‒ Contra a ordem de mamãe.
‒ Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?
‒ Não fale em morrer, Capitu!
Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me e li: mentiroso.
Era tão estranho tudo aquilo, que não achei resposta. Não atinava com a razão do escrito, como não atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injúria grande ou pequena, é possível que a escrevesse também, com a mesma taquara, mas não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de receio de que alguém nos pudesse ouvir ou ler. Quem, se éramos sós?
D. Fortunata chegara uma vez à porta da casa, mas entrou logo depois. A solidão era completa.

Capítulo LXV: A Dissimulação (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

(...) minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: "Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho, eu espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal, estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.
—Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.
—Não é? ‒ disse ela com ingenuidade.

Capítulo CXXVI: Cismando. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.
‒ Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.
José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo, bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...
Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé.
‒ Mas...
‒ Vou fazer uma visita.
A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas- estas iriam pausadas ou não, podia afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia natural mente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.
Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito horas numa padaria.

Capítulo CXXVIII: Punhado de Sucessos. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima. Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.
‒ Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.
‒ Também não quis?
‒ Também não.
‒ Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou José Dias, e não sei como poderá...
‒ Mas passa; o que é que não passa? ‒ atalhou prima Justina.
E como em torno desta ideia começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu para ir ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si. Quando tornou, trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo, pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase "lindíssima", e perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim acabamos a noite.
No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dá-lo a imprimir, mas era lembrança do finado. Pensei em recompô-lo, mas só achei frases soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério. Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.
Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de anos, ora sem razão particular.
Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento, que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.
Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.

Capítulo CXXXII: O Debuxo e o Colorido.

[...] Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro.
O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui, por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora contínuos e terríveis.
Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo, até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.
Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu.


CAPÍTULO CXLVIII: E bem, e o resto?

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.


CAPÍTULO CXXXV: OTELO

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço. ‒ um simples lenço!‒ e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se. Hoje são precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas. Tais eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira- não queria expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
‒ E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; ‒ que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção...
Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade um quase nada, mas o bastante para ir até à manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a contemplar o mar da Glória, nem a serra dos órgãos, nem a fortaleza de Santa Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias comuns da semana, mas era já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais nada.
Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete, iam dar seis horas.
Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte.
Escrevi dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.


REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Disponível em: 

SANTOS, W. de A. Dom Casmurro e os Farrapos de Textos. UFSC.

SENNA, Marta de. Estratégias do Embuste: Relações Intertextuais em Dom Casmurro. Scripta Belo Horizonte, V. 3, N. 6, p 167-174, 1º sem. 2000. Disponível em


Leitura Recomendada


SHAKESPEARE, William. OTELO, O Mouro de Veneza. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/otelo.html



quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Oficinas, Pesquisa/Ação, Diálogos da Maturidade. Edna Domenica Merola.


Indagações sobre os “recursos imprescindíveis para o desbloqueio da expressão escrita e retreino do papel de escritor”. (MEROLA, 1984, p 30) eis a tônica dos trabalhos práticos e teóricos realizados por esta autora, ao longo de quatro décadas. 
No segundo semestre de 2015, ao ministrar oficinas para participantes maiores de 50 anos, deu-se prosseguimento a essa pesquisa/ação.
“Uma oficina tem por foco a reflexão sobre a própria prática educativa do participante, o que pressupõe que ele esteja desempenhando o papel em pauta e se disponha a realizar as propostas apresentadas pela ministrante e compartilhar com colegas os seus resultados.” (MEROLA, 2015, f 36).
A Oficina de Criação Literária “é o espaço onde são oferecidas atividades práticas de criação pela palavra escrita, proporcionando novos conhecimentos e vivências.” (MEROLA, 2014, p 49). Fundamentada em pesquisas do Psicodrama, suas ações pedagógicas têm por meta aprimorar e favorecer o desempenho cognitivo, sócio-afetivo e sócio-existencial de pessoas maduras e idosas. Tem por objetivos desenvolver o papel social de escritor por meio de sua complementação com o papel de leitor. Suas estratégias são criadas para que alunos treinem a habilidade de estabelecer vínculos, estreitem a relação com a própria interioridade, e conheçam dados culturais novos.
No semestre 2015.2, as Oficinas de Criação Literária realizadas no Núcleo de Estudos da Terceira Idade (NETI, UFSC) tiveram por foco a escrita de cartas literárias. “A carta é um texto escrito no qual alguém transmite uma informação a um destinatário ou leitor, que interpreta o sentido e assume determinada atitude diante da informação recebida.” (MORAES; 2008, p. 156.). Nesse gênero, há uma tônica de premência da comunicação entre emissor e destinatário, o que aponta para a cumplicidade, imprimindo ao discurso certo teor de exposição e de proximidade.
A escrita de uma carta envolve o uso de elementos que a aproximam do conto e da crônica. O emissor é o narrador personagem, mas poderá introduzir outros, transferindo-lhes o protagonismo. O destinatário da carta literária é um complementar do narrador ou substituto do leitor no próprio texto. No conto, é facultado usar a referência ao leitor como um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE, p. 90). No início do texto epistolar há uma descrição espaço-temporal sucinta que comparece na data e local apontado; esse elemento descritivo aproxima a carta literária da crônica.
Nas oficinas ministradas, o ensino do gênero epistolar teve por fundamentação a Socionomia: fruto da pesquisa e criação de Jacob Lévi Moreno, para quem – corpo, psique e sociedade são partes intermediárias do eu total. O eu é um constructo aberto ‒ em constante construção dialógica ‒ que abrange os papéis psicossomáticos, psicodramáticos e sociais.
Nas oficinas, a ação pedagógica reporta-se ao jogo dos papéis sociais que envolvem a escrita. E também aos papéis psicodramáticos ‒ relativos às dimensões psicológicas, em especial, à imaginação. A complementação de papéis tem por foco o diálogo ou as possíveis interações entre o papel social de escritor e o papel complementar de leitor (e vice-versa). E tem por meta o desenvolvimento do vínculo entre aqueles papéis cuja complementação é ilustrada como segue (MEROLA, 2015, f 41).

A primeira unidade didática das Oficinas Literárias 2015.2 referiu à escrita de cartas de apresentação ao grupo.
Na segunda unidade, a proposta colocada foi a de escrever uma carta cujo emissor se localizasse no tempo passado (menino/menina) e que fosse endereçada ao próprio destinatário no tempo presente (senhor/senhora). O desenho de um Átomo Social foi aplicado como técnica de aquecimento para essa tarefa. 

Segundo Moreno (1975), o Átomo Social é o conjunto de papéis que uma pessoa desempenha num dado momento de sua existência, incluindo os complementares desses papéis.
No átomo social referente à infância houve menções a seres tais como Papai Noel, Menino Jesus como exemplos de complementares de papéis psicodramáticos que são interligados às capacidades de imaginar e de acreditar.
Na terceira unidade ‒ Comentários ao Túnel do Tempo ‒ agregou-se o gênero dissertativo ao epistolar, ressaltando-se aspectos cronológicos.
A unidade Cartas sobre Leituras incluiu o livro Iracema (ALENCAR, 2008). A jandaia e o cão rafeiro alencarianos foram transformados em emissor e destinatário, agregando a fábula ao gênero epistolar.
Na unidade Cartas Psicodramáticas, trabalhou-se a conexão entre a leitura da realidade externa e da introjetada, a exemplo de: Querida Irmã, Marina Prosdócimo (In Memorian), da catarinense Marli Barcelos.
A unidade sobre: elementos da estrutura narrativa, criação de personagens e narrador ilustra-se com Carta a um Arquivo – do gaúcho Adroaldo José Fontes da Silveira, testemunho do desvelar de um contista.
No papel de professora, continuou-se o projeto de pesquisa/ação sobre como incentivar a criatividade na escrita. Nos papéis de aluna e pesquisadora, teve-se o N.E.T.I. por lócus privilegiado para aplicar conhecimentos advindos do Curso de Especialização em Atenção à Saúde da Pessoa Idosa, concluído no primeiro semestre de 2015.
Como escritora, teve-se o privilégio do diálogo sobre História de Amor, História de Sala de Espera, Conto em “Pas de Deux”, (MEROLA, 2011, p 37-41, 57-59,77-80). Esta voz paulistana agradece pela oportunidade florianopolitana desta empreita que congrega outras vozes amadurecidas em diferentes estados brasileiros.

Edna Domenica Merola.
Bacharel em Letras, Pedagogia e Psicologia.
Especialista em Atenção à Saúde da Pessoa Idosa.
Mestre em Educação, Administração e Comunicação.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Iracema. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1844

LODGE, David. A Arte da Ficção. Trad. Bras. Porto Alegre: L& PM Pocket, 2011.

MEROLA, Edna Domenica. Pedagogia do Psicodrama: a ação do grupo no desenvolvimento de papéis da pessoa idosa. Monografia de conclusão do Curso de Especialização em Atenção à Saúde da Pessoa Idosa. Orientadora: Maria Celina da Silva Crema. UFSC, CCS, N.E.T.I., 2015, 46 f.
____________ De que são feitas as Histórias. Florianópolis: Postmix, 2014.
____________ A Volta do Contador de Histórias. Blumenau: Nova Letra, 2011.
____________ Aquecendo a Produção na Sala de Aula. São Paulo: Nativa, 2001.
____________ Desbloqueio da expressão e técnicas de redação através do jogo dramático. Anais do IV Congresso Brasileiro de Psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, v. 1, n.4, p. 20-30, 1984.

MORAES, A. M. de; [et al.]. Enciclopédia do estudante: redação e comunicação: técnicas de pesquisas, expressão oral e escrita. São Paulo: Moderna, 2008 – Vol. 8.

MORENO, J.L. Psicodrama. 2 ed, São Paulo: Cultrix, 1978.


sábado, 17 de dezembro de 2016

Relatos e Retratos. Irmã Marilene Gritens.

Foto do Acervo Irmã Mari

RELATOS E RETRATOS. ANGOLA – FILHA DE ÁFRICA

Como os sopros de um vento suave e ameno passaram-se dez anos. A tão sonhada refundação da Vida Religiosa ganhou rostos concretos e ainda que em Angola não haja primavera, podemos sentir a possibilidade de novo florescimento. Angola, país de uma cultura rica de significados e beleza.
Toda palavra não traduz o sentimento feliz da experiência que fiz. Por isso, ensaio alguns esboços, sempre à procura da doçura e leveza de Deus.
Aprendi com Martinelli que “temos que dialogar com saberes múltiplos. Buscar significados, buscar sujeitos e suas histórias”. Histórias de vidas, histórias de um povo que apesar da vida pesar ainda sorri, ainda se alegra e faz festa, ainda acredita no poder da solidariedade. Se atrás de cada sorriso há um choro contido, há também o riso atrás do choro sentido. Sonhamos com novos retratos que possam mostrar mais, muito mais do que imagens captadas num instante de vida. Sonhamos com imagens reais, por isso implementamos em 2010, o Projeto Inocência – Um retrato infantil!?
É preciso investir na criança e no adolescente, acreditar nas suas capacidades e possibilitar o seu desenvolvimento. Resgatar dentro de cada ser o que tem de belo e mais profundo, avaliar com eles seu desempenho e incentivar para que continuem no processo que pode ser lento e gradativo, mas infinitamente eficaz.
A partir de agora inicio um relato mais específico de algumas crianças e adolescentes que participam de nosso projeto e do projeto “Nossos miúdos”, que trabalha com meninos abandonados, órfãos ou acusados de serem “feiticeiros”. Isto é só o princípio de uma longa história de solidão, sentimento que revela a perda do que é próprio da criança: a inocência.
O menino N. é a mais pura expressão do total abandono. Foi deixado envolto em panos (símbolo das mulheres angolanas), tendo o chão e as folhas secas como abrigo. Tragicamente enfermo, hoje resiste... Sofre, tem dores terríveis, corpo deformado, mas resiste, quer viver. Sua mãe, que de alguma maneira o ama, diz: “tenho medo dele, matou o irmão”. N. foi acusado de ser feiticeiro. Menino de poucas palavras, olhar distante e a impressão de querer se esconder. Percebe suas limitações, se entristece com sua pouca habilidade de aprender. Porém, tem coragem de continuar. Todos os dias, N. está presente. E seus companheiros? Como comungam do mesmo espaço e alguns da mesma história, tentam incluí-lo na vida social: joga bola e ensaia algumas corridas curtas.
Prossigo com J., muito inteligente, astuto, de olhar ligeiro e sabe buscar o que quer. Tem bom aproveitamento em Matemática e satisfatório aproveitamento em Língua Portuguesa. Sua preferência: jogar bola. Ah! Por isso seus olhos brilham, a liberdade se expande e como um menino feliz, vibra, corre e sorri.
E. e No. são duas crianças que buscam (cada um a sua maneira) sobreviver num mundo que as exclui e as acusa de ser quem não são. E o mais estranho e cruel: os acusados muitas vezes acreditam que são “feiticeiros”, dotados de um poder que destrói. Resgatar a capacidade de acreditar em si mesmo, de acreditar nas pessoas que os amam é um processo lento, mas a esperança está no “amanhã”.
Este menino que ora apresento é sinal de perseverança. Ch., portador de necessidades especiais, chegou ao projeto em cadeira de rodas... Mas, há esperança, é oficialmente nosso goleiro, e acredito que isto ajudará para que possa desenvolver outras habilidades. Interage com facilidade e participa de todas as atividades. Apoiando-se nas paredes, nas carteiras ou no ombro amigo chega aonde quer chegar.
A., esse menino prefere as ruas, mas se convidá-lo para jogar bola, isto sim o faz feliz e participativo. Se tocar uma música? Seu corpo se transforma, seu semblante se ilumina e todo o movimento que poderia fazer com um lápis, faz com o corpo, demonstrando-se numa habilidade única e uma arte que encanta.
D., o menino motivador do projeto. Dotado de uma capacidade impressionante de cuidar dos animais, os defende, não maltrata, nem mesmo os gatos que normalmente são mortos por serem sinais de feitiço. Se por um lado cuida dos animais, por outro, maltrata e fere crianças e adolescentes. Não tem medo, não é amado, todo o bairro o conhece e teme. A escola formal já não o aceita. Necessita de atenção especial, um olhar que transcende o espaço escolar, e quando recebe atenção modifica seu comportamento. Como resultado disso começa a soletrar e reconhecer as letras, e isto para mim é fabuloso. Atualmente, destaca-se na matemática e apesar dos doze anos, infelizmente trabalha como um adulto. Faz portões, portas, janelas, fogareiros, grades, utiliza instrumentos de corte e solda. Agora todos o chamam para o trabalho. Todos os dias vem ao projeto e partilhamos os sonhos de um menino que aprendeu a ser adulto.
Al.‒ magro, magro, magro  por vezes não se alimenta. Nunca frequentou a escola. Pelos colegas é chamado de panina (homossexual), pois afirma categoricamente que é menina, e quando seus colegas o chamam de panina, ele sorri e diz: eu sou. Há pouco tempo, foi adotado, depois abandonado, então voltou a morar com a mãe... Depois fugiu, não foi encontrado... Voltou quando quis. Estava num lar em outro Estado.
Apresento I., um menino que frequenta a 5ª classe em uma escola pública. Está conosco desde o início do projeto, sente-se em casa, muito habilidoso nas disciplinas e muito simpático com os colegas. É o coração do projeto, dedicado, gentil, atencioso, prestativo, preocupado com a situação social que vive sua família, especialmente sua mãe. Recebe orientação conforme sua habilidade e aprende com muita facilidade.
O aluno D. é a pura expressão da criança que deseja aprender, porém não assimila, não reconhece, não diferencia sílabas e números. Está conosco desde 2010, utilizamos diversos métodos, porém nada é suficiente para despertá-lo. Menino tímido, sempre assustado, com conflitos e doenças graves na família. Sua mãe quer que seu filho aprenda, mas já percebeu as dificuldades e poucas habilidades dele.
De olhar ligeiro, pés descalços, pernas ágeis, sorriso simpático e uma situação social que fere: eis o menino K. Nenhuma concentração, nenhum interesse em aprender. A melhor maneira de conversar com ele é estar na rua, e quando responde por que não foi ao projeto diz: “veja, não tenho chinelo”.
A esperança é uma força que nos impulsiona a caminhar. Digo isso porque o aluno Mb. está alfabetizado e mais, despertou e tem condições de frequentar a 3ª classe no próximo ano. Ele está conosco desde 2010.
O aluno R. também emociona e nos faz acreditar que ‒ com determinação, empenho, paciência e esperança ‒ é possível vencer as dificuldades. Ele está conosco desde 2010, repetiu duas vezes a 2ª classe, e pela lei do Estado teria que deixar a escola. Apesar da cédula constar oito anos, ele deve ter mais de 10 anos. Com uma grande cicatriz na cabeça, com baixa autoestima e uma situação social complicada, ele desperta e lê com habilidade, ele desperta e resolve equações, ele desperta e agora sorri, dialoga, brinca e desenha com tanta leveza que parece que a vida foi libertada. 
O aluno Wi., oito anos, capacidade intelectual de três anos. Acredita que sabe, que lê, que assimila e optamos por não tirar esta sua ilusão. Termina o ano letivo sem compreender, sem sequer conseguir escrever seu nome.
O aluno Wa. é um exemplo de que é preciso acreditar sempre na capacidade humana, na capacidade que o ser humano possui de nos surpreender. Durante todo o ano Wa. apresentou inúmeras dificuldades e aparentemente não teria condições de transitar para a 3ª classe. Retomo o “Pequeno Príncipe”: “O essencial é invisível aos olhos” (…) “Só se vê bem com os olhos do coração”. Esta afirmação pode não ser científica, racional, mas revela a beleza da capacidade humana. O aluno Wa. transitará para a 3ª classe. Portador de necessidades especiais, com seu modo próprio de ver e estar no mundo, há seu tempo descobriu as palavras, e aprendeu a “so- le- trar.”
Continuaremos a nos aproximar da vida dessas crianças e adolescentes e com eles poderemos modificar conceitos e preconceitos, mitos e tradições. Sobretudo, acreditar na capacidade que o ser humano tem de nos impressionar, de nos encantar, de transformar as dificuldades em tarefas simples. Em recuperar se preciso for à inocência esquecida, o sonho adormecido, os desejos que brotam do coração feliz e amado.
Angola a melodia feliz de seus batuques, palmas, canções, gargalhadas; a sintonia do coração quando todos os dias nos reuníamos debaixo da nossa árvore e cantávamos a liberdade; o olhar atento; a palavra de luz; o sorriso escancarado nos alegra e enche o nosso coração de paz e saudade. Ah! Saudade que faz com que as teimosas lágrimas caiam como um dia de chuva no inverno.
Foto do Acervo Irmã Mari
E, termino como comecei: como um vento suave, passaram-se dez anos. Agora regressamos, pois regressar é reunir dois lados. Mas, descobri que há apenas um lado: O AMOR.



PÁSCOA...

É tempo de expandir a VIDA 
que superou a dor e a morte, 
que por um momento nos deixou sem norte, 
mas que em seguida apareceu deslumbrante e forte, e deixou-nos a certeza 
de que Cristo RESSUSCITOU.

É tempo de acordar a alma 
e descobrir com calma 
que Páscoa é a travessia 
que se renova na missão de todo dia.

FELIZ E ABENÇOADA PÁSCOA A TODOS!
Aos irmãos e amigos Angolanos, minha gratidão para sempre. Foi com vocês que eu aprendi a acordar a alma. 
OBRIGADA! Um grande abraço.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Produção Textual na Escola. Edna Domenica Merola.

Em 01/11/2016, na aula da disciplina "Produção Textual Acadêmica", a autora desta postagem fez parte integrante de um pequeno grupo que apresentou uma breve exposição sobre o tema "A Produção Textual na Escola". O trabalho teve a orientação da Professora Josa Coelho da Silva (UFSC/CCE). 
Divulgo aqui minhas contribuições escritas anteriormente àquela exposição, a partir do "mind mapping" que segue:

Segundo Antunes (2003), a prática escolar ainda não incorporou alguns princípios:
• A escrita é interativa, dialógica, dinâmica, negociável. Pressupõe envolvimento entre sujeitos, parceria e encontro de informações, ideias, intenções, crenças e sentimentos. A escola deve ampliar as percepções, sensações e informações dos sujeitos aprendizes para que usem a palavra como mediação de seu próprio repertório.
• A linguagem é um ato social, a escrita existe para propiciar a comunicação entre sujeitos. A escrita é um ato de linguagem que implica em consequências. A escola deve agir no sentido de que o aluno alcance a percepção de que a escrita está presente: na família, no emprego, na escola; assim como também no registro científico, cultural e histórico.
• A escrita escolar deve cumprir as etapas: planejamento, operação (prática da atividade) e revisão (análise ou reescrita). O planejamento pressupõe: delimitação do tema; eleição de objetivos; escolha do gênero; estabelecimento de critérios para ordenar as ideias; definir quem será o leitor e adequar a forma linguística. A operação implica na escolha das palavras e das estruturas das frases em conformidade com a situação de comunicação e com a garantia do sentido, da coerência e da relevância. Na revisão (reescrita), procede-se à análise do que foi escrito para decidir o que irá permanecer, o que será eliminado e o que será reformulado. Corrige-se a concatenação entre as partes (períodos, parágrafos, blocos de parágrafos), assim como os aspectos sintáticos, semânticos, pontuação, ortografia.
•A prática docente deve prover: a escrita autoral e social dos sujeitos aprendizes; uso das regras sociais de circulação do texto; construção metodológica das etapas (planejar, escrever, revisar); orientar para a coerência global – coesão, coerência, conteúdo informativo, clareza, concisão; adequação de aspectos da superfície do texto.
Antunes conclui que considerar os pressupostos apontados implica no aproveitamento da carga horária de português para a formação do cidadão, em detrimento do treino de pormenores gramaticais sobre a sintaxe ou a fonética.

Segundo Geraldi (1997),
• a produção de textos é crucial para o ensino/aprendizagem da Língua. Essa atividade é diferente da redação que é uma tarefa feita pelo aluno tendo por interlocutor apenas a escola.
• Ao analisar uma aula (Descrição), Geraldi relata que a professora utilizou duas “instruções”– “a) a descrição de uma pessoa deve conter aspectos físicos e psicológicos” e “b) na descrição não há lugar para a invenção.” (p. 148).

• As instruções dadas ignoraram “que as atividades discursivas de um objeto são reguladas a) pela finalidade da descrição; b) pela natureza do objeto da descrição; c) pelos interlocutores a que a descrição se destina; d) pelas representações que faz o locutor do objeto que descreve.” (p. 148). Essas representações, por sua vez, “produzem um ‘pré-construto cultural’ que orienta a atividade descrita, segundo dois eixos: um eixo sociológico, responsável pela prática, pelo ideológico e pelas matrizes culturais, e um eixo cognitivo, responsável pelas abstrações, generalizações e simbolizações.” (p. 149).

A crítica de Geraldi à professora que diz que "na descrição não há lugar para a invenção" pode ser lida à luz de Bakhtin. A prática docente deveria levar em conta o que Bakhtin diz sobre a “forma espacial da personagem” valendo-se do "excedente da visão estética":
Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem”. ... esse excedente da minha visão... é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim. (BAKHTIN, p 21, 2010).

• Para que o ensino seja conhecimento e produção é necessário que o aluno seja tomado como locutor efetivo, conforme esquema de Geraldi:

Gedoz (2016):

• Propõe o trabalho com os gêneros a partir da esfera do cotidiano. Parte do diagnóstico da produção de texto para instigar a reflexão sobre a organização textual e ampliar as possibilidades da escrita do aluno. Constrói atividades com o objetivo de clarear as informações e possibilitar a progressão textual.
• Sua pesquisa-ação sobre o ensino da análise linguística cumpriu as etapas:
a) Alunos do 7º ano pesquisaram um causo, junto a amigos e familiares, e o recontaram por escrito (1ª versão); b) pesquisadora leu os textos e elaborou lista de controle/constatações atendendo ao gênero textual Causo; c) Alunos escreveram a 2ª versão sob a égide da lista de controle/constatações; d)pesquisadora tabulou as dificuldades apresentadas, elaborou  e desenvolveu atividades didáticas com os alunos. e) alunos escreveram a 3ª versão.
• Gedoz relatou atividades pautadas nas dificuldades que constaram do texto do aluno “José”. A atividade de pontuação seguiu os passos: a professora digitou o primeiro parágrafo do texto de “José”, enumerou seus segmentos e solicitou: “Sem alterar a ordem das informações, tente reescrever o parágrafo dividindo-o em cinco partes conforme apontado pela numeração colocada pela professora. Use ponto final para separar cada uma das partes e vírgulas onde julgar necessário.” (p 1234).
• Portanto, a prática docente deve considerar o aluno como sujeito da relação interlocutiva; cumprir as etapas: planejamento, operação e reescrita – vinculada à análise linguística pautada no diagnóstico da produção discente.

Antunes, Geraldi e Gedoz indicam que a prática dos professores de Português contemple os princípios:

Ensino contextualizado nos gêneros discursivos como construtos históricos e culturais. Prática pautada na visão de que o pensamento anterior é o ponto de partida; nesse há a valorização do conhecimento historicamente construído.
Os mediadores culturais (professores e outras pessoas, tecnologias, acervos) promovem o desenvolvimento atual em relação a um desenvolvimento posterior, já que todo desenvolvimento ‒ com a intervenção do outro ‒ pode passar a um novo desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. O trabalho com a escrita. In: Aula de Português – encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003, p. 26- 27.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. Bras. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

GEDOZ, Sueli. Linguística e Reescrita Textual: articulando encaminhamentos. Fórum Linguístico, Revista Linguística, 2016, vol. 13, n. 2. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2016v13n2p1225

GERALDI, João Vanderley. A Produção de Textos. In: Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 135-165.

domingo, 19 de junho de 2016

Resenha: O Último Voo do Flamingo. Edna Domenica Merola.

COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

O Último voo do Flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência ‒ a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.” (p 224). 
O Último voo do flamingo é um romance cuja narrativa envolve explosões súbitas de militares da ONU e outros estranhos acontecimentos, em Tizangara ‒ vilarejo imaginário ao sul de Moçambique.
Estevão Jonas administrador da cidade é casado com Dona Ermelinda. O filho dela é surpreendido pelo policial Sulplício, enquanto caçava elefante (caça ilegal). A primeira dama defende o filho e acusa Sulplício de ser contra o país. Ele se torna um banido e vai viver à margem da vila, enquanto a mãe e o filho permanecem no vilarejo. O filho preserva o afeto paterno e relembra, já adulto, dum bote que fora do pai e ao qual dera o nome de “barco-íris”. Esse termo inventado por Mia Couto pelo processo de amálgama ilustra a natureza poética do romance.
Sulplício é pai do tradutor de Tizangara que vai acompanhar um estrangeiro encarregado de emitir um relatório para ONU sobre os estranhos acontecimentos. Com a chegada do relator o pai volta à vila. A mãe já morrera, enquanto o pai se exilara na praia de Inhamudzi. A mãe é um símbolo da esperança da reconstrução do país. O pai simboliza o suplício pelo qual o povo de Moçambique passou, principalmente os habitantes do sul do país.
O romance inicia com cenas cada vez mais engraçadas até chegar à sátira. Em meio a uma solene inspeção feita por autoridades locais e representantes da ONU um cabrito é atropelado e agoniza. As falas dos ilustres são permeadas pelo balido do animal. “Com o embate, um chifre saltou com tal ímpeto que veio esbarrar no adjunto Chupanga. O homem pegou no desirmanado corno e entregou-o ao administrador.” Como o cabrito fosse do administrador, Chupanga lhe entregou o chifre e disse que era dele.
A prostituta Ana Deusqueira foi chamada para reconhecer “o todo pela parte” ou o órgão sexual que havia explodido e disse não ser de ninguém da cidade. Diz ao italiano da ONU: “Esse homem aí era do sexo maisculino.”.
O italiano hospeda-se num hotel cujo nome é “Pensão Martelo Jonas” e cujo nome antigo fora “Pensão Martelo Proletário”. A citação fica no limite entre o cômico e a crítica.
A partir da chegada à pensão o tom do discurso se torna sério: “Chegamos, enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva.”.
As descrições dos personagens são feitas de forma gradativa ou conforme o desenrolar dos fatos, corroborando o enunciado pelo “ditado Tizangara”: “O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” Por exemplo, o personagem inicialmente descrito como “um tal Massimo Risi, um italiano, homem sem gerais patentes. Seria esse que iria estacionar uns tempos em Tizangara”. (COUTO, 2005, p 23), posteriormente, é descrito pelo mesmo narrador personagem como: “Eu seguia atrás, respeitosamente. No enquanto, observava o estrangeiro: como a alma dele se via pelas suas traseiras! Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza, mas, estranhamente, produzem muito barulho.”. ( p 35).
Na pensão, Massimo tem encontros noturnos com Temporina uma personagem fantástica (bruxa ou fada) e ao matar uma louva-deus (Hortênsia) fica sabendo que e outros insetos são antepassados que visitam seus entes queridos.
Massimo vai à casa de Hortênsia que é tia de um moço doente e de Temporina. Tia e sobrinha são solteironas. A casa coberta pelo mato lembra uma árvore. Temporina diz a Massimo que na mesma casa habitam os vivos e os mortos. E que há “três vilas com seus respectivos nomes ‒ Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água.”.
Pode-se perceber que a cosmovisão do povo é fundamentada nos elementos, mas Temporina descarta o fogo. Na lenda de Namaroi (COUTO) pode-se depreender que na tradição cultural moçambicana o fogo é associado à procriação.
Temporina ensina Massimo a andar, já que “saberpisar neste chão é assunto de vida ou morte.” Ela o instrui assim: “pise como quem ama, pise como se fosse sobre o peito de uma mulher”. (p 68).
O administrador distrital Estevão Jonas que chegara a dar a ambulância da cidade para o enteado trabalhar como transportador (ato imoral) passa a sentir as mãos queimarem e escreve ao ministro: " O povo é a concha que nos abriga. Mas pode, repentemente, tornar-se no fogo que nos vai queimar. Até me dá arrepio pensar nisso, eu que já senti as mãos queimarem-se. Essa luta, Excelência, é da vida e da morte e vice-versamente."(p 96).
O feiticeiro Andorinho é consultado e adverte “quando caminhar olhe bem onde pisa.” Sobre a explosão dos estrangeiros, o feiticeiro responde que o consultor da ONU deve perguntar aos mortos e não aos vivos. E fecha sua fala: “que eu viva mais que o pangolim que cai do céu sempre que chove.”
O padre e a prostituta, cada um a sua vez foram incriminados pelas explosões. Mas afinal a mulher do administrador descobre que o marido e o filho dela foram os mandantes das explosões para angariar verbas estrangeiras para a desminagem. Ao ser descoberto o administrador manda romper a barragem da represa para que não fiquem vestígios de seus crimes que envolviam as verbas da desminagem e as mortes de pessoas que explodiram para provar que ainda havia minas 'armadas', mesmo após a guerra.
Sulplício pede que o filho chegue à barragem antes do administrador Estevão Jonas. Organizam um grupo para tal aprisionar os mandantes, encontram Chupanga, mas poupam sua vida.
A catástofre é provocada e a cidade se locomove no vazio como uma jangada no mar.
Sem ser visto, o personagem narrador segue o pai (Sulplício) até a margem do Rio Madzima: lugar sagrado. Presencia a cena do pai pendurando os próprios ossos numa árvore. O consultor da ONU Massimo Risi chega ao lugar. Os três dormiram ao relento. O narrador acordou e deparou-se com um abismo enorme e que fez sumir tudo. Avisou o seu pai que indaga por seus ossos. Vão buscá-los. O pai se evade, após recuperar os ossos. 
Massimo quer registrar o desaparecimento de tudo, mas não há como mensurar algo que não tem mais chão. Pega a folha do relatório e faz um pássaro de papel que atira no abismo.
No final, o narrador passa sua esperança ao italiano: a de que o voo do flamingo faz o sol voltar a brilhar depois de um período de trevas e opressão.


Desenho: galeria de Personagens de O último voo do flamingo.



Em O último Voo do Flamingo, Mia Couto criou um narrador-personagem que é o tradutor de Tizangara. No entanto, há momentos em que o “tradutor” ouve histórias, ao invés de contá-las. Nas situações narradas por outros personagens, o narrador está presente e ouve essas narrativas, ou seja, desloca-se para o papel de narratário ou substituto do leitor.     Esse complementar do narrador – é um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE. 2011. P. 90). A narrativa literária criada torna-se dialógica já que o ser narrativo é potencialmente provedor da busca de identidade pelo diálogo.
A seguir, trecho narrado pela (falecida) mãe do Tradutor de Tizangara.

Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
Hoje farei meu último voo!
As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não chorara. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.
Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
Mas vai voar para onde?
Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O pernalta, enfim, chegou e explicou ‒ que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.
Por que essa viagem tão sem regresso?
O flamingo desvalorizava seu feito:
Ora aquilo é longe, mas não é distante.
Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
Por favor, não vá!
Tenho que ir!
A avestruz se interpôs e lhe disse:
Veja, eu nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
Não posso, me cansei de viver num só corpo.
E falou. Queria ir onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
Não quero pousar mais. Só repousar.
E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vemelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se passando como se um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra. (COUTO, 2005. P 113-115).


REFERÊNCIAS

COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


LODGE, David. A Arte da Ficção. Trad. Bras. Porto Alegre: L& PM Pocket, 2011.





Glossário de O Último Voo do Flamingo (COUTO, 2005, pp 221-222).

Canhoeiro: árvore fruta nkanhu de se extrai a bebida usada em cerimônias tradicionais do Sul de Moçambique. Nome científico: Sclerocarya birrea. “Nos intervalos da machamba, nos sentávamos, eu e minha mãe, sob a brisa do canhoeiro”. (COUTO, 2005, p 47).

Chanfuta: árvore (nome científico: Atzelia quanzensis).

Chimuanzi: língua falada em Tizangara. “Estava tão cheio com sono que, no princípio, falou em chimuanzi”. (COUTO, 2005, p 75).

Concho: canoa, pequena embarcação.

Halakavuma: pangolim, mamífero coberto de escamas que se alimenta de formigas. Em muitas regiões de África se acredita que o pangolim habita os céus, descendo à terra para transmitir aos chefes tradicionais as novidades sobre o futuro. "Vamos não fica aí, entremetido, envergonahdo, parece o halakavuma.

Konone: árvore (nome científico: Terminalea sericea). “Se anichava rente ao chão e acariciava a termiteira. Depois, se erguia e apontavapara além de uns frondosos konones.” (COUTO, 2005, p 52).

Kufa mbalame: mata o pássaro (expressão da língua xi-sena). “Meu pai corria e mandava: ‒ Kufa mbalame!”

Machamba: terreno agrícola. “Nos meses devidos eu ajudava minha mãe na machamba”. (COUTO, 2005, p 47).

Masuíti: corruptela de sweet (doce, em inglês). “com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando doces. ‒ Masuíti, patrão. Masuíti.” (COUTO, 2005, p 35).

Matumi: árvore da floresta ribeirinha (nome científico: Preonatia sp.).

Mbolo: testículos (em xi-sena). (COUTO, 2005, p 123).

Muchém: térmite. “Não ia muito longe. Ali, junto a um enorme morro de muchém, ele parava”. (COUTO, 2005, p 52).

Ngoma: tambor(em várias línguas de Moçambique). “ Na realidade os ngomas tinham barulhado toda a noite, num pãodemônio.”(COUTO, 2005, p 74).

Nhenhenhar-se: engasgar-se. “O motor nhenhenhou-se em tentativas sucessivamente frustradas.” (COUTO, 2005, p 31).

Nyanga: feiticeiro. A seguir o sacerdote [...] foi ter com o nyanga que ele chamava de ‘colega’. (COUTO, 2005, p 123).

Quizumba: hiena. Estremeci de medo: não saltara eu da boca da quizumba para entrar na garganta do leão? (COUTO, 2005, p 109).

Quizumbar: farejar como uma hiena. “Ermelinda [...] dorme com os ouvidos de fora, quizumbando, sempre à espreita (COUTO, 2005, p 73).

Satanhoco: malandro. "‒ Vá, meu filho, se apresse a evitar essa tragédia. Vá à barragem, antes que esse satanhoco lá chegue."

Sura: aguardente. "Junto com o portador desta carta seguem os cabritos que me pediu e alguns garrafões de sura."

Tchovar: empurrar. “O representante do mundo, de janelas fechadas, esperava certamente uma mão generosa para tchovar a viatura.” (COUTO, 2005, p 31).

Txarra!: caramba!

Ufa: farinha de milho. Se escutavam apenas os dedos emagrecendo a farinha, molhando e remolhando a ufa no caril de peixe seco.

Xicuembo: espírito feiticeiro. “Juntávamos juras, sagrados xicuembos: que eu lhe iria visitar no momento em que ela se estivesse despedindo de viver.” (COUTO, 2005, p 48).

Xidakwa: bêbedo. "Lhe digo, por descargo de inconsciência: me converti num trejeitoso, pareço um daqueles xidakwas sem destino."

Zuezuado: de zuezué, tontura (em algumas línguas de Moçambique). O italiano ainda estava zuezuado. (COUTO, 2005, p 103).



ADENDO I: Trecho inicial do livro:

Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga. [...] preciso livrar-me dessas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima.
Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra e tudo aprecia correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as violências não iriam nunca parar. Já tinham chegado os soldados das Nações Unidas que vinham vigiar o processo de paz. Chegavam com a insolência de qualquer militar. Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras, capazes de fabricar concórdias.
         Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente, começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã mais outro. Até somarem, todos descontados, a quantia de cinco falecidos.
         Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta de verbo. Porque de um explodido sempre resta alguma sombra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas páginas.

(Assinado: O tradutor de Tizangara)

1

UM SEXO AVULTADO E AVULSO
O mundo não é o que existe, mas o que acontece.
Dito de Tizangara

Nu e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parado nas fileiras mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la.
Na nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Em Tizangara só os fatos são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos. Por isso, tudo acorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa, cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas, instantaneavam-se ordens:
‒ Alguém que apanhe... a coisa, antes que ela seja atropelada.
‒ Atropelada ou atropilada?
‒ Coitado, o gajo ficou manco central!
A gentania se agitava, bazarinhando. Estava-se naquele aparvalhamento quando alguém avistou, suspenso no céu, um boné azul.
‒ Olhem, lá, no cimo da árvore!
Era um desses bonés dos soldados das Nações Unidas. Pendurado num galho, balançava na vontade das brisas. No instante que se confirmou a identidade da boina foi como navalha golpeando a murmuração. E logo-logo a multidão se irresponsabilizou. Não valia a pena empernar na confusão. E a gente se dispersou, imediata, comentando que nada acontecera, até admiravam tanto o que nunca haviam visto. E desfalavam:
‒ Agora é que vem aí chuva de molhar vento.
‒ Sim, é melhor voltarmos às vidas.
‒ Se emborem, pá!
E destroçaram, todos destrocados. Sobre o asfalto quente ficou o apêndice órfão. No ramo seco restou o chapéu missionário, plenamente só no meio das aragens. Azul em fundo azul.
Sobrei para ali, sozinho, com um estranho pressentimento. Em minha alma, um espinho me magoava. Eu, a dizer, retirava o fel do vinagre. Aquilo não era ainda o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios. Foi nesse momento que me surpreendeu a voz, esbaforida:
‒ Está ser chamado!
‒ Chamado, eu?
Eu conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o adjunto do administrador. Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo.
‒ Não é você que fala afluentemente as outras línguas?
‒ Falo umas línguas, sim.
‒ Línguas locais ou mundiais?
‒ Umas e outras. Umas, de estrada. Outras, de corta-mato.
O mensageiro bateu os tacões das botas, moda os militares. Esse ruído, singelo que era, me soou como um aviso. Parecia um anjo escapando pelos arredores dos ares. E, realmente, era. Os anjos é que vêem o que não se passa. No exacto desse momento, começavam os primeiros problemas, esquinas onde o meu destino se haveria de labirintoar. Fora de mim, a voz de Chupanga insistia:
‒ Está ser chamado por Sua Excelência.
Sua Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se duvida. Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem vale a pena invocar ousadia. Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os lábios? Quanto mais um lugar é pequenito, maior é o tamanho da obediência.
Foi assim que, momentos depois, desemboquei direito e directo na sede da administração. Era o mesmo edifício dos tempos coloniais, já depurado de espíritos. O casarão tinha sido tratado pelos feiticeiros, consoante as crenças. A voz de comando se abreviou, de afiados cantos:
‒ Entre, meu amigo. Precisamos de seus serviços.
Estêvão Jonas, o administrador da vila, ocupava a inteira largura da porta. A preocupação pingava-lhe no rosto. Um lenço branco ia e vinha a lhe enxugar a testa. Um gerador enchia tudo de ruído e o administrador teve que forçar a voz:
‒ Entre, meu camarada... isto é, meu amigo.
Entrei. Dentro havia mais fresco. No tecto, uma ventoinha espanejava o ar. Eu sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da capital que aquilo era abuso do poder. Jonas ria-se: ele não abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns. E repetia o ditado: cabrito come onde está amarrado.
‒ Mandei-lhe chamar porque precisamos de uma acção mais que imediata.
O administrador até enrugava a voz. Com razão e motivo: uma delegação oficial devia estar prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo decepado. Haviam de vir os do governo de dentro, mais os do governo de fora. Até das Nações Unidas viriam. Vinham investigar o caso do sexo decepado. E os outros casos que envolviam os capacetes azuis desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha recebido tais altas individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas tremia quando apontou para mim e disse:
‒ Pois você fica, de imediato, nomeado tradutor oficial.
‒ Tradutor? Mas para que língua?
‒ Isso não interessa nada. Qualquer governo prezável tem seus tradutores. Você é o meu tradutor particular. Está compreender?
Não entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada necessita de entendimento. Ainda pigarreei para sugerir minhas objecções. Foi quando deu entrada Dona Ermelinda, a respectiva do administrador. Ela se fazia conhecer como "a Primeira Dama". Olhou-me como se eu não chegasse sequer a ser gente. E falou, prestando grandes favores ao mundo:
‒ Dizem que vem um italiano e que vai ficar aqui a fazer a investigação. Você fala italiano?
‒ Eu não.
‒ Óptimo. Porque os italianos nunca falam italiano.
‒ Mas, desculpe, senhor administrador, traduzo para qual língua?
‒ Inglês, alemão. Uma qualquer, desenrasca-se.
A administratriz de novo se interpôs, deixando invisível o esposo. Falava ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda clamava que eram vestes típicas de África. Mas nós éramos africanos, de carne e alma, e jamais havíamos visto tais indumentárias. No momento, ela reiterava:
‒ O que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles fiquem a saber que nós, em Tizangara, temos tradução simultânea.
Remexeu nos dedos, ajeitando os enfeites. Ela exibia mais anéis que Saturno. Virando-se para o marido, quis saber se tinham mandado chamar a cultura.
‒ A cultura?
‒ Sim, os grupos de dança.
‒ Eles não hão-de aceitar vir. Sem pagamento não aceitam.
‒ Mas será que nesta terra já ninguém faz nada só por vontade do amor?
A Primeira Dama mais quis saber: se o povo ainda se concentrava na estrada. Porque ela pretendia realizar uma visita oficial ao local da ocorrência. O marido, incomodado, perguntou:
‒ Vai ver aquilo, Ermelinda?
‒ Vou.
‒ Sabe que coisa está ali, desfalecida, no meio da estrada?
‒ Sei.
‒ Eu não acho bem, uma mulher com o seu estatuto... com aquela gente toda a ver.
‒Vou, mas não como Ermelinda. Desloco-me oficialmente em tanto que Primeira Dama. E, entretanto, mande tirar aquela gentalha dali.
‒ Mas como é que posso dispersar as massas?
‒ Eu já não disse para você comprar as sirenes? Lá, na Nação, os chefes não andam com sirene?
E saiu, com portes de rainha. No limiar da porta sacudiu as madeixas, fazendo tilintar os ouros, multiplicados em vistosos colares no vasto colo.

ADENDO II: P 215-220:
Os meus ossos?
Árvore: nem sombra, nem sombra. Os ossos tinham-se ido no vazio. Como a inteira paisagem, a casa, a vila, a estrada, tudo engolido pelo vácuo. Que se passara ? Um homem faz um grande buraco, sim. Muitos homens fazem um buraco muito enorme. Uma cova daquela dimensão, porém , aquilo era obra da sobrenatureza.
Chamamos o italiano que se inacreditou: o país inteiro desaparecera? Sim, a nação fora engolida nesse vácuo. Face a última berma do mundo, perante a maior fenda que ele jamais vira, Massimo Risi se boquiabria.
  Os meus relatórios !!? Onde estão os meus files?
[...] Restou um silêncio. Depois, o italiano foi ao saco em que se almofadara e de lá retirou um papel e uma caneta e, ordenadamente, rabiscou umas bem alinhadas frases. Espreitei sobre o ombro triste dele e li o que ele estava escrevendo. Logo surgia o gordo título: “Último Relatório”. E mais ele anotava, em total:

Sua Excelência
O Secretário-Geral das Nações Unidas:

Cumpre-me o doloroso dever de reportar o desaparecimento total de um país em estranhas e pouco explicáveis circunstâncias. Tenho consciência que o presente relatório conduzirá à minha demissão dos quadros de consultores da ONU, mas não tenho alternativa senão relatar a realidade com que confronto: que todo este imenso país se eclipsou, como que por golpe de magia. Não há território, nem gente, o próprio chão se evaporou num imenso abismo. Escrevo na margem desse mundo, junto do último sobrevivente dessa nação.

O italiano parou, caneta trêmula apontando o precipício que se abria a seus pés. E me pediu:
‒ Espreite lá, outra vez.
‒ Já espreitei mil vezes.
‒ E não vê nada?
‒ Nada.
‒ Viu bem lá no fundo?
‒ É que nem fundo não há. O melhor é espreitar o senhor.
‒ Não consigo. Sofro de tonturas.
O italiano acabou por se sentar na margem do abismo. Peto, passavam andorinhas, riscando o céu sem se aventurarem nesse céu subterrâneo, mais recente que o próprio dia.
‒ Que vamos fazer?‒ perguntei.
‒ Vamos esperar.
A voz dele era calma, como se vinda de antiga sabedoria.
‒ Esperar por quem?
‒ Esperar por outro barco ‒ e, após uma pausa, se corrigiu: ‒ Esperar por outro voo do flamingo. Há-de-vir um outro.
Ele puxou da folha do relatório que acabara de redigir para as Nações Unidas. Fazia o quê? Dobrava e cruzava as dobras. Fazia um pássaro de papel. Esmerou no acabamento, e depois levantou-se e o lançou sobre o abismo. O papel rodopiou no ar e planou, pairando quase fluvialmente sobre a ausência de chão. Foi descendo lento, como se temesse o destino das profundezas.
Massimo sorria, em rito de infância. Me sentei, a seu lado. Pela primeira vez, senti o italiano como um irmão nascido na mesma terra. Ele me olhou, parecendo me ler por dentro, adivinhando meus receios.
Há-de-vir um outro. ‒ repetiu.
Aceitei a sua palavra como de um mais velho. Face à neblina, nessa espera, me perguntei se a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria sido o último voo do flamingo. Ainda assim, me deixei quieto, sentado. Na espera de um outro tempo. Até que escutei a canção de minha mãe, essa que ela entoava para que os flamingos empurrassem o sol do outro lado do mundo.