domingo, 19 de junho de 2016

Resenha: O Último Voo do Flamingo. Edna Domenica Merola.

COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

O Último voo do Flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência ‒ a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.” (p 224). 
O Último voo do flamingo é um romance cuja narrativa envolve explosões súbitas de militares da ONU e outros estranhos acontecimentos, em Tizangara ‒ vilarejo imaginário ao sul de Moçambique.
Estevão Jonas administrador da cidade é casado com Dona Ermelinda. O filho dela é surpreendido pelo policial Sulplício, enquanto caçava elefante (caça ilegal). A primeira dama defende o filho e acusa Sulplício de ser contra o país. Ele se torna um banido e vai viver à margem da vila, enquanto a mãe e o filho permanecem no vilarejo. O filho preserva o afeto paterno e relembra, já adulto, dum bote que fora do pai e ao qual dera o nome de “barco-íris”. Esse termo inventado por Mia Couto pelo processo de amálgama ilustra a natureza poética do romance.
Sulplício é pai do tradutor de Tizangara que vai acompanhar um estrangeiro encarregado de emitir um relatório para ONU sobre os estranhos acontecimentos. Com a chegada do relator o pai volta à vila. A mãe já morrera, enquanto o pai se exilara na praia de Inhamudzi. A mãe é um símbolo da esperança da reconstrução do país. O pai simboliza o suplício pelo qual o povo de Moçambique passou, principalmente os habitantes do sul do país.
O romance inicia com cenas cada vez mais engraçadas até chegar à sátira. Em meio a uma solene inspeção feita por autoridades locais e representantes da ONU um cabrito é atropelado e agoniza. As falas dos ilustres são permeadas pelo balido do animal. “Com o embate, um chifre saltou com tal ímpeto que veio esbarrar no adjunto Chupanga. O homem pegou no desirmanado corno e entregou-o ao administrador.” Como o cabrito fosse do administrador, Chupanga lhe entregou o chifre e disse que era dele.
A prostituta Ana Deusqueira foi chamada para reconhecer “o todo pela parte” ou o órgão sexual que havia explodido e disse não ser de ninguém da cidade. Diz ao italiano da ONU: “Esse homem aí era do sexo maisculino.”.
O italiano hospeda-se num hotel cujo nome é “Pensão Martelo Jonas” e cujo nome antigo fora “Pensão Martelo Proletário”. A citação fica no limite entre o cômico e a crítica.
A partir da chegada à pensão o tom do discurso se torna sério: “Chegamos, enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva.”.
As descrições dos personagens são feitas de forma gradativa ou conforme o desenrolar dos fatos, corroborando o enunciado pelo “ditado Tizangara”: “O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” Por exemplo, o personagem inicialmente descrito como “um tal Massimo Risi, um italiano, homem sem gerais patentes. Seria esse que iria estacionar uns tempos em Tizangara”. (COUTO, 2005, p 23), posteriormente, é descrito pelo mesmo narrador personagem como: “Eu seguia atrás, respeitosamente. No enquanto, observava o estrangeiro: como a alma dele se via pelas suas traseiras! Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza, mas, estranhamente, produzem muito barulho.”. ( p 35).
Na pensão, Massimo tem encontros noturnos com Temporina uma personagem fantástica (bruxa ou fada) e ao matar uma louva-deus (Hortênsia) fica sabendo que e outros insetos são antepassados que visitam seus entes queridos.
Massimo vai à casa de Hortênsia que é tia de um moço doente e de Temporina. Tia e sobrinha são solteironas. A casa coberta pelo mato lembra uma árvore. Temporina diz a Massimo que na mesma casa habitam os vivos e os mortos. E que há “três vilas com seus respectivos nomes ‒ Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água.”.
Pode-se perceber que a cosmovisão do povo é fundamentada nos elementos, mas Temporina descarta o fogo. Na lenda de Namaroi (COUTO) pode-se depreender que na tradição cultural moçambicana o fogo é associado à procriação.
Temporina ensina Massimo a andar, já que “saberpisar neste chão é assunto de vida ou morte.” Ela o instrui assim: “pise como quem ama, pise como se fosse sobre o peito de uma mulher”. (p 68).
O administrador distrital Estevão Jonas que chegara a dar a ambulância da cidade para o enteado trabalhar como transportador (ato imoral) passa a sentir as mãos queimarem e escreve ao ministro: " O povo é a concha que nos abriga. Mas pode, repentemente, tornar-se no fogo que nos vai queimar. Até me dá arrepio pensar nisso, eu que já senti as mãos queimarem-se. Essa luta, Excelência, é da vida e da morte e vice-versamente."(p 96).
O feiticeiro Andorinho é consultado e adverte “quando caminhar olhe bem onde pisa.” Sobre a explosão dos estrangeiros, o feiticeiro responde que o consultor da ONU deve perguntar aos mortos e não aos vivos. E fecha sua fala: “que eu viva mais que o pangolim que cai do céu sempre que chove.”
O padre e a prostituta, cada um a sua vez foram incriminados pelas explosões. Mas afinal a mulher do administrador descobre que o marido e o filho dela foram os mandantes das explosões para angariar verbas estrangeiras para a desminagem. Ao ser descoberto o administrador manda romper a barragem da represa para que não fiquem vestígios de seus crimes que envolviam as verbas da desminagem e as mortes de pessoas que explodiram para provar que ainda havia minas 'armadas', mesmo após a guerra.
Sulplício pede que o filho chegue à barragem antes do administrador Estevão Jonas. Organizam um grupo para tal aprisionar os mandantes, encontram Chupanga, mas poupam sua vida.
A catástofre é provocada e a cidade se locomove no vazio como uma jangada no mar.
Sem ser visto, o personagem narrador segue o pai (Sulplício) até a margem do Rio Madzima: lugar sagrado. Presencia a cena do pai pendurando os próprios ossos numa árvore. O consultor da ONU Massimo Risi chega ao lugar. Os três dormiram ao relento. O narrador acordou e deparou-se com um abismo enorme e que fez sumir tudo. Avisou o seu pai que indaga por seus ossos. Vão buscá-los. O pai se evade, após recuperar os ossos. 
Massimo quer registrar o desaparecimento de tudo, mas não há como mensurar algo que não tem mais chão. Pega a folha do relatório e faz um pássaro de papel que atira no abismo.
No final, o narrador passa sua esperança ao italiano: a de que o voo do flamingo faz o sol voltar a brilhar depois de um período de trevas e opressão.


Desenho: galeria de Personagens de O último voo do flamingo.



Em O último Voo do Flamingo, Mia Couto criou um narrador-personagem que é o tradutor de Tizangara. No entanto, há momentos em que o “tradutor” ouve histórias, ao invés de contá-las. Nas situações narradas por outros personagens, o narrador está presente e ouve essas narrativas, ou seja, desloca-se para o papel de narratário ou substituto do leitor.     Esse complementar do narrador – é um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE. 2011. P. 90). A narrativa literária criada torna-se dialógica já que o ser narrativo é potencialmente provedor da busca de identidade pelo diálogo.
A seguir, trecho narrado pela (falecida) mãe do Tradutor de Tizangara.

Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
Hoje farei meu último voo!
As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não chorara. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.
Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
Mas vai voar para onde?
Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O pernalta, enfim, chegou e explicou ‒ que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.
Por que essa viagem tão sem regresso?
O flamingo desvalorizava seu feito:
Ora aquilo é longe, mas não é distante.
Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
Por favor, não vá!
Tenho que ir!
A avestruz se interpôs e lhe disse:
Veja, eu nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
Não posso, me cansei de viver num só corpo.
E falou. Queria ir onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
Não quero pousar mais. Só repousar.
E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vemelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se passando como se um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra. (COUTO, 2005. P 113-115).


REFERÊNCIAS

COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


LODGE, David. A Arte da Ficção. Trad. Bras. Porto Alegre: L& PM Pocket, 2011.





Glossário de O Último Voo do Flamingo (COUTO, 2005, pp 221-222).

Canhoeiro: árvore fruta nkanhu de se extrai a bebida usada em cerimônias tradicionais do Sul de Moçambique. Nome científico: Sclerocarya birrea. “Nos intervalos da machamba, nos sentávamos, eu e minha mãe, sob a brisa do canhoeiro”. (COUTO, 2005, p 47).

Chanfuta: árvore (nome científico: Atzelia quanzensis).

Chimuanzi: língua falada em Tizangara. “Estava tão cheio com sono que, no princípio, falou em chimuanzi”. (COUTO, 2005, p 75).

Concho: canoa, pequena embarcação.

Halakavuma: pangolim, mamífero coberto de escamas que se alimenta de formigas. Em muitas regiões de África se acredita que o pangolim habita os céus, descendo à terra para transmitir aos chefes tradicionais as novidades sobre o futuro. "Vamos não fica aí, entremetido, envergonahdo, parece o halakavuma.

Konone: árvore (nome científico: Terminalea sericea). “Se anichava rente ao chão e acariciava a termiteira. Depois, se erguia e apontavapara além de uns frondosos konones.” (COUTO, 2005, p 52).

Kufa mbalame: mata o pássaro (expressão da língua xi-sena). “Meu pai corria e mandava: ‒ Kufa mbalame!”

Machamba: terreno agrícola. “Nos meses devidos eu ajudava minha mãe na machamba”. (COUTO, 2005, p 47).

Masuíti: corruptela de sweet (doce, em inglês). “com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando doces. ‒ Masuíti, patrão. Masuíti.” (COUTO, 2005, p 35).

Matumi: árvore da floresta ribeirinha (nome científico: Preonatia sp.).

Mbolo: testículos (em xi-sena). (COUTO, 2005, p 123).

Muchém: térmite. “Não ia muito longe. Ali, junto a um enorme morro de muchém, ele parava”. (COUTO, 2005, p 52).

Ngoma: tambor(em várias línguas de Moçambique). “ Na realidade os ngomas tinham barulhado toda a noite, num pãodemônio.”(COUTO, 2005, p 74).

Nhenhenhar-se: engasgar-se. “O motor nhenhenhou-se em tentativas sucessivamente frustradas.” (COUTO, 2005, p 31).

Nyanga: feiticeiro. A seguir o sacerdote [...] foi ter com o nyanga que ele chamava de ‘colega’. (COUTO, 2005, p 123).

Quizumba: hiena. Estremeci de medo: não saltara eu da boca da quizumba para entrar na garganta do leão? (COUTO, 2005, p 109).

Quizumbar: farejar como uma hiena. “Ermelinda [...] dorme com os ouvidos de fora, quizumbando, sempre à espreita (COUTO, 2005, p 73).

Satanhoco: malandro. "‒ Vá, meu filho, se apresse a evitar essa tragédia. Vá à barragem, antes que esse satanhoco lá chegue."

Sura: aguardente. "Junto com o portador desta carta seguem os cabritos que me pediu e alguns garrafões de sura."

Tchovar: empurrar. “O representante do mundo, de janelas fechadas, esperava certamente uma mão generosa para tchovar a viatura.” (COUTO, 2005, p 31).

Txarra!: caramba!

Ufa: farinha de milho. Se escutavam apenas os dedos emagrecendo a farinha, molhando e remolhando a ufa no caril de peixe seco.

Xicuembo: espírito feiticeiro. “Juntávamos juras, sagrados xicuembos: que eu lhe iria visitar no momento em que ela se estivesse despedindo de viver.” (COUTO, 2005, p 48).

Xidakwa: bêbedo. "Lhe digo, por descargo de inconsciência: me converti num trejeitoso, pareço um daqueles xidakwas sem destino."

Zuezuado: de zuezué, tontura (em algumas línguas de Moçambique). O italiano ainda estava zuezuado. (COUTO, 2005, p 103).



ADENDO I: Trecho inicial do livro:

Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga. [...] preciso livrar-me dessas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima.
Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra e tudo aprecia correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as violências não iriam nunca parar. Já tinham chegado os soldados das Nações Unidas que vinham vigiar o processo de paz. Chegavam com a insolência de qualquer militar. Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras, capazes de fabricar concórdias.
         Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente, começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã mais outro. Até somarem, todos descontados, a quantia de cinco falecidos.
         Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta de verbo. Porque de um explodido sempre resta alguma sombra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas páginas.

(Assinado: O tradutor de Tizangara)

1

UM SEXO AVULTADO E AVULSO
O mundo não é o que existe, mas o que acontece.
Dito de Tizangara

Nu e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parado nas fileiras mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la.
Na nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Em Tizangara só os fatos são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos. Por isso, tudo acorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa, cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas, instantaneavam-se ordens:
‒ Alguém que apanhe... a coisa, antes que ela seja atropelada.
‒ Atropelada ou atropilada?
‒ Coitado, o gajo ficou manco central!
A gentania se agitava, bazarinhando. Estava-se naquele aparvalhamento quando alguém avistou, suspenso no céu, um boné azul.
‒ Olhem, lá, no cimo da árvore!
Era um desses bonés dos soldados das Nações Unidas. Pendurado num galho, balançava na vontade das brisas. No instante que se confirmou a identidade da boina foi como navalha golpeando a murmuração. E logo-logo a multidão se irresponsabilizou. Não valia a pena empernar na confusão. E a gente se dispersou, imediata, comentando que nada acontecera, até admiravam tanto o que nunca haviam visto. E desfalavam:
‒ Agora é que vem aí chuva de molhar vento.
‒ Sim, é melhor voltarmos às vidas.
‒ Se emborem, pá!
E destroçaram, todos destrocados. Sobre o asfalto quente ficou o apêndice órfão. No ramo seco restou o chapéu missionário, plenamente só no meio das aragens. Azul em fundo azul.
Sobrei para ali, sozinho, com um estranho pressentimento. Em minha alma, um espinho me magoava. Eu, a dizer, retirava o fel do vinagre. Aquilo não era ainda o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios. Foi nesse momento que me surpreendeu a voz, esbaforida:
‒ Está ser chamado!
‒ Chamado, eu?
Eu conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o adjunto do administrador. Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo.
‒ Não é você que fala afluentemente as outras línguas?
‒ Falo umas línguas, sim.
‒ Línguas locais ou mundiais?
‒ Umas e outras. Umas, de estrada. Outras, de corta-mato.
O mensageiro bateu os tacões das botas, moda os militares. Esse ruído, singelo que era, me soou como um aviso. Parecia um anjo escapando pelos arredores dos ares. E, realmente, era. Os anjos é que vêem o que não se passa. No exacto desse momento, começavam os primeiros problemas, esquinas onde o meu destino se haveria de labirintoar. Fora de mim, a voz de Chupanga insistia:
‒ Está ser chamado por Sua Excelência.
Sua Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se duvida. Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem vale a pena invocar ousadia. Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os lábios? Quanto mais um lugar é pequenito, maior é o tamanho da obediência.
Foi assim que, momentos depois, desemboquei direito e directo na sede da administração. Era o mesmo edifício dos tempos coloniais, já depurado de espíritos. O casarão tinha sido tratado pelos feiticeiros, consoante as crenças. A voz de comando se abreviou, de afiados cantos:
‒ Entre, meu amigo. Precisamos de seus serviços.
Estêvão Jonas, o administrador da vila, ocupava a inteira largura da porta. A preocupação pingava-lhe no rosto. Um lenço branco ia e vinha a lhe enxugar a testa. Um gerador enchia tudo de ruído e o administrador teve que forçar a voz:
‒ Entre, meu camarada... isto é, meu amigo.
Entrei. Dentro havia mais fresco. No tecto, uma ventoinha espanejava o ar. Eu sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da capital que aquilo era abuso do poder. Jonas ria-se: ele não abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns. E repetia o ditado: cabrito come onde está amarrado.
‒ Mandei-lhe chamar porque precisamos de uma acção mais que imediata.
O administrador até enrugava a voz. Com razão e motivo: uma delegação oficial devia estar prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo decepado. Haviam de vir os do governo de dentro, mais os do governo de fora. Até das Nações Unidas viriam. Vinham investigar o caso do sexo decepado. E os outros casos que envolviam os capacetes azuis desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha recebido tais altas individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas tremia quando apontou para mim e disse:
‒ Pois você fica, de imediato, nomeado tradutor oficial.
‒ Tradutor? Mas para que língua?
‒ Isso não interessa nada. Qualquer governo prezável tem seus tradutores. Você é o meu tradutor particular. Está compreender?
Não entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada necessita de entendimento. Ainda pigarreei para sugerir minhas objecções. Foi quando deu entrada Dona Ermelinda, a respectiva do administrador. Ela se fazia conhecer como "a Primeira Dama". Olhou-me como se eu não chegasse sequer a ser gente. E falou, prestando grandes favores ao mundo:
‒ Dizem que vem um italiano e que vai ficar aqui a fazer a investigação. Você fala italiano?
‒ Eu não.
‒ Óptimo. Porque os italianos nunca falam italiano.
‒ Mas, desculpe, senhor administrador, traduzo para qual língua?
‒ Inglês, alemão. Uma qualquer, desenrasca-se.
A administratriz de novo se interpôs, deixando invisível o esposo. Falava ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda clamava que eram vestes típicas de África. Mas nós éramos africanos, de carne e alma, e jamais havíamos visto tais indumentárias. No momento, ela reiterava:
‒ O que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles fiquem a saber que nós, em Tizangara, temos tradução simultânea.
Remexeu nos dedos, ajeitando os enfeites. Ela exibia mais anéis que Saturno. Virando-se para o marido, quis saber se tinham mandado chamar a cultura.
‒ A cultura?
‒ Sim, os grupos de dança.
‒ Eles não hão-de aceitar vir. Sem pagamento não aceitam.
‒ Mas será que nesta terra já ninguém faz nada só por vontade do amor?
A Primeira Dama mais quis saber: se o povo ainda se concentrava na estrada. Porque ela pretendia realizar uma visita oficial ao local da ocorrência. O marido, incomodado, perguntou:
‒ Vai ver aquilo, Ermelinda?
‒ Vou.
‒ Sabe que coisa está ali, desfalecida, no meio da estrada?
‒ Sei.
‒ Eu não acho bem, uma mulher com o seu estatuto... com aquela gente toda a ver.
‒Vou, mas não como Ermelinda. Desloco-me oficialmente em tanto que Primeira Dama. E, entretanto, mande tirar aquela gentalha dali.
‒ Mas como é que posso dispersar as massas?
‒ Eu já não disse para você comprar as sirenes? Lá, na Nação, os chefes não andam com sirene?
E saiu, com portes de rainha. No limiar da porta sacudiu as madeixas, fazendo tilintar os ouros, multiplicados em vistosos colares no vasto colo.

ADENDO II: P 215-220:
Os meus ossos?
Árvore: nem sombra, nem sombra. Os ossos tinham-se ido no vazio. Como a inteira paisagem, a casa, a vila, a estrada, tudo engolido pelo vácuo. Que se passara ? Um homem faz um grande buraco, sim. Muitos homens fazem um buraco muito enorme. Uma cova daquela dimensão, porém , aquilo era obra da sobrenatureza.
Chamamos o italiano que se inacreditou: o país inteiro desaparecera? Sim, a nação fora engolida nesse vácuo. Face a última berma do mundo, perante a maior fenda que ele jamais vira, Massimo Risi se boquiabria.
  Os meus relatórios !!? Onde estão os meus files?
[...] Restou um silêncio. Depois, o italiano foi ao saco em que se almofadara e de lá retirou um papel e uma caneta e, ordenadamente, rabiscou umas bem alinhadas frases. Espreitei sobre o ombro triste dele e li o que ele estava escrevendo. Logo surgia o gordo título: “Último Relatório”. E mais ele anotava, em total:

Sua Excelência
O Secretário-Geral das Nações Unidas:

Cumpre-me o doloroso dever de reportar o desaparecimento total de um país em estranhas e pouco explicáveis circunstâncias. Tenho consciência que o presente relatório conduzirá à minha demissão dos quadros de consultores da ONU, mas não tenho alternativa senão relatar a realidade com que confronto: que todo este imenso país se eclipsou, como que por golpe de magia. Não há território, nem gente, o próprio chão se evaporou num imenso abismo. Escrevo na margem desse mundo, junto do último sobrevivente dessa nação.

O italiano parou, caneta trêmula apontando o precipício que se abria a seus pés. E me pediu:
‒ Espreite lá, outra vez.
‒ Já espreitei mil vezes.
‒ E não vê nada?
‒ Nada.
‒ Viu bem lá no fundo?
‒ É que nem fundo não há. O melhor é espreitar o senhor.
‒ Não consigo. Sofro de tonturas.
O italiano acabou por se sentar na margem do abismo. Peto, passavam andorinhas, riscando o céu sem se aventurarem nesse céu subterrâneo, mais recente que o próprio dia.
‒ Que vamos fazer?‒ perguntei.
‒ Vamos esperar.
A voz dele era calma, como se vinda de antiga sabedoria.
‒ Esperar por quem?
‒ Esperar por outro barco ‒ e, após uma pausa, se corrigiu: ‒ Esperar por outro voo do flamingo. Há-de-vir um outro.
Ele puxou da folha do relatório que acabara de redigir para as Nações Unidas. Fazia o quê? Dobrava e cruzava as dobras. Fazia um pássaro de papel. Esmerou no acabamento, e depois levantou-se e o lançou sobre o abismo. O papel rodopiou no ar e planou, pairando quase fluvialmente sobre a ausência de chão. Foi descendo lento, como se temesse o destino das profundezas.
Massimo sorria, em rito de infância. Me sentei, a seu lado. Pela primeira vez, senti o italiano como um irmão nascido na mesma terra. Ele me olhou, parecendo me ler por dentro, adivinhando meus receios.
Há-de-vir um outro. ‒ repetiu.
Aceitei a sua palavra como de um mais velho. Face à neblina, nessa espera, me perguntei se a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria sido o último voo do flamingo. Ainda assim, me deixei quieto, sentado. Na espera de um outro tempo. Até que escutei a canção de minha mãe, essa que ela entoava para que os flamingos empurrassem o sol do outro lado do mundo.

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