RELATO
Sob
o patrocínio da bibliotecária do CIC Esni Soares realizamos uma oficina via
Meet. Gilberto Motta e Edna Merola coordenaram a pauta: um jogral, relatos
sobre como cada um experimenta o processo de produção da escrita criativa,
criação coletiva de um poema e produções individuais.
ADENDO I: Produções individuais
1. Produções de Clara Amélia de Oliveira
Alfarrábio
Alçou voo, levada pelo vento
Longe está esta palavra especial
Foi-se ... escafedeu-se
Antes popular e comum
Roída pelas traças do papel de cartas
Rompeu-se sílaba por sílaba
A tinta a precedeu nesta fuga veloz
Brandiu-se ao som seco de muitas páginas que caíram abraçadas com ela
Indo para tão longe, unidas por solidariedade ou identidade
Onde te encontrarás palavra especial?
Making Of da produção de Alfarrábio: Palavras Antigas
As palavras tem vida através de nós, dado que as armazenamos na memória, assim como também guardamos cenas de filmes e experiências importantes. Quais neurônios são responsáveis pela memorização da palavra? Pensando sobre isto durante horas não veio nenhuma palavra especial, que eu goste de guardar comigo. Dormi uma noite e, pela manhã, finalmente, ela apareceu. Alfarrábio. Uma palavra importante. Fui procurar seu significado exato pois só lembrava que se referia à papelada velha. Precisamente, se refere a livros antigos. Pejorativamente, se refere a livro velho e inútil. Interessante pois assim alguns jovens se referem a pessoas velhas, chamando-as de seu velho inútil. Lembrei da primeira vez que me identificaram como velha. Dei muita risada mas foi triste perceber o estado de desespero em que se encontrava o jovem que as proferiu. Estava com meu carro parado na sinaleira fechada e um poeta me ofereceu, para comprar, uma folha de xerox com sua poesia. Delicadamente recusei. Não tinha dinheiro trocado no momento. Ele ficou revoltado. Gritou para mim: sua velha idiota! Eu tive que rir da situação. Idealizamos poetas como românticos e sonhadores. Mas há os poetas estressados também. Isto faz uns bons anos já. Então sou o equivalente ao alfarrábio, mas, humano. Porém, alfarrábio também tem o significado positivo possível. Livro antigo e precioso. Como os vinhos antigos, podemos dizer que temos nosso valor. De alfarrábio, o dicionário me ofereceu, de graça, a palavra calhamaço. Eu também guardei esta palavra e gostava de pronunciá-la. Para mim era quando pegava uma papelada. Um calhamaço de folhas. O dicionário diz que é o mesmo que alfarrábio. E, por fim, uma palavra, em uso ainda, mas, que me causou espanto, quando eu, já idosa, descobri que, durante todo meu passado, dizia errado. Coadjuvante. Li esta milhões de vezes, mas meu cérebro havia armazenado errado desde a primeira vez. Percebo que o meu cérebro, durante uma leitura, identifica uma palavra conhecida e fica na síntese. Ele não mergulha no detalhe da repetição por leitura das letras, ou sílabas, novamente. Hoje reconheço que estes mergulhos nos detalhes me estressam bastante. O detalhe é importante e, para muitas pessoas, ele é criativo e inovador. Mas eu tenho esta dificuldade de processar neste nível. E por eu ter uma certa dificuldade auditiva, em termos de processamento de conteúdo de fala. Assim, eu dizia co-ajudante, pensando que se tratava do ator de apoio num filme. Como não existia corretor na máquina de escrever antiga, nunca percebi o erro e também, nunca ninguém ouviu e percebeu meu erro. Atualmente, ainda tropeço com a língua nesta palavra mas estou melhorando.
2. Produções por Edna Domenica Merola
Resposta ao poema Movimento de Gilberto Motta
Por Edna Domenica Merola
Eu vou levando
Com a calma rotineira
Com as mãos vou acenando
Acariciando o luar
Vou pesquisando
Com curiosidade faceira
Com o grupo partilhando
Aprendendo a twetar.
Absinto
Tendo por mote a palavra “absinto”
Evoco famosos:
Abdutor Verlaine
Abnegador Hemingway
Abjeto Gato Preto e o duplo de Pound,
No duplo terror sanitário de 2020,
Pressinto a ab gênese, até...
Parir palavras:
- Ab amar, ab afagar, ab aconchegar...
- Ab canto...
- Ab sinto...
Making of de Absinto: Poetagem pandêmica
Escolhi a palavra absinto porque sua primeira sílaba é travada como a do meu primeiro nome. Fui pesquisar sobre essa bebida e verifiquei que diversos autores canônicos a degustavam. Como não me passa pela cabeça, em hipótese nenhuma consumi-la, fiquei com vontade de beber novamente nas fontes dos escritores franceses tais como Verlaine e Mallarmé, e de outros de língua inglesa tal como Ernest Hemingway e Edgar Alan Poe. Após a escrita, percebi que grande parte do que escrevi durante o isolamento social teve por mote a própria pandemia ou algo a ela relacionado.
3. Produções por Clara Pelaez Alvarez
Lamento de uma brasileira sem eira
Se eu pudesse decretaria o revertátus.
Colêmbulos se apropriaram da pátria.
Axelhos crescem por todos os lados.
Neste momento cabuloso,
Tudo que eu queria era por um orobó
Naquele que orneia.
O quinhoeiro antigo virou bedegueba.
Um rapazelho mal ajambrado.
Um cabungueiro agarrado ao cabungo.
Um homem que só faz cacaborradas.
Orbitado por caçambeiros.
Virá o dia em que conseguiremos coleá-lo.
Cobri-lo de barrufadas e beiçoladas.
Metê-lo num cabrestilho e num tintureiro.
Do povo, ninguém escapa.
Making of de Lamento de uma brasileira sem eira
Abri o dicionário (Aurélio) aleatoriamente e me diverti imensamente com palavras que não conhecia. Aí, sei lá como, algumas delas começaram a se entrelaçar e saiu isso: um texto que os algorítimos não vão rastrear.
4. Produções de Marlene Xavier Nobre
Ratatuia
Uma ratatuia invadiu aquele Palácio sombrio
O povo eclodiu,
ninguém sorriu.
Ficamos a ver navios
Cheios de dor, de frio e de calafrios.
Naquela rampa se esconde uma corja:
Verdadeira ratatulha
Contra a qual não há patrulha.
Sem molho, sem emoção,
aqui nessa nação (onde não tem pão)
todos gritam e ninguém tem razão!
Making of de Ratatuia: Palavra ouvida na Infância
Ao escolher essa palavra tinha em mente a situação política do país. "Ratatulha" é o termo popular que ouvia, em criança, em Floripa, aplicada a pessoas que não eram boas.
5. Produção de Brígida de Poli
Palavras em Alvoroço
Minha mãe falava “algariados” quando os filhos faziam “algazarra”. Minha avó usava “alarido”. Minhas tias diziam “escarcéu” e “balbúrdia”. Meu tio intelectual foi o único que ouvi usar “azáfama”, linda como todas as proparoxítonas.
Mas minha favorita sempre foi “algaravia”, que eu pensava vir do espanhol, língua que amo. Mais tarde descobri que quem nos deu essa palavra apaixonante foram os árabes. E também soube que “algariados” de minha mãe nasceu de “algaravia”. E tudo fez sentido para mim. Desde então, dia sim, dia não, faço boca a boca e coloco no meio da frase:
- Algaravia, algaravia, algaravia.
E ela segue existindo.
ADENDO II
Criação
conjunta espontânea em 18/08/2020
Ai
que vida boa (1)
nessa
pandemia à toa (1)
Acordei
e vi no espelho (2)
uma
senhora sem cabeleireiro, (2)
ai,
ai, ai, assim não dá! (2)
Peguei
um trem, (2)
Piui,
piuuuí (1)
onde
não tinha ninguém (2)
fiquei
num vai e vem (2)
cha,
cha, cha, chu, chu, cha, cha (1)
Sentei
descalça na calçada, sempre boba... (1)
Olha
a véia...ha, ha, ha. (1)
Ah!
Ah! Ah! Uh! Uh! Ah! Ah! Ah! (2)
Quem
diz ser genial seria? (1)
- Será? Será? (1)
Só
queria brincar de escrever... (1)
-
Serei? Serei? (2)
Uh,
uh, uh (1)
Só
brincar... (1)
Há
poetas que lembram guerreiros (1)
Ao
invés de feitos nas batalhas (2)
contam
conquistas de... (2)
-
Palavras: travas e ouro. Amadas e odiadas. Posses de poetas. (1)
E o
que o poeta quis dizer com: “...”? (2)
-
"Não te amo como se fosses rosas de sal, topázios ou flechas de cravo que
atiram chamas..." (Neruda) (3)
E em
que a leitura da autora diverge da leitora? (2)
Eu,
leitora, acho que a crônica da Brígida tem música que vem da alma, mas ela
nega! (2)
Podria
escribir los versos más tristes esta noche...
Como
já dizia Neruda... (1)
“...
embora seja a última dor que ela me causa e estes sejam os últimos versos que
lhe escrevo". (Citado por 3)
Fui
no cemitério de palavras, elas não estavam lá. (2)
Procurei-as
em Igrejas e templos (2)
Busquei
nos cabarés (2)
No
puteiro nacional do Cazuza, (2)
nas
bocas das crianças esfaimadas, (2)
na
lua, na terra, no mar (2)
Procurei
palavras agonizantes nos hospitais, (2)
Nas
ruas gélidas dos mendigos... (2)
Acabei
encontrando-as vivas na minha memória. (3)
Todas
desde as que ouvi no útero da minha mãe. (3)
Guardo-as
como um tesouro, (3)
pois
como disse o poeta e príncipe (3)
-
" eu não vivo no passado, mas o passado vive em mim". (3)
Ouço
o presente (2)
Há
música na sirene da ambulância que passa (4)
quem
sabe outra intubação (4)
Sons, zumbidos (4)
E a
emoção de viver para sempre em silêncio pandêmico (4)
Ao
longe, o gato da vizinha mia, mia, mia. (4)
-
Miado larápio! (2)
-
Mas! Nem! (2)
Mas
vi que as palavras estavam indo embora mesmo, (5)
saindo
pelas folhas das florestas cortadas, (5)
se
esfumaçando na poluição da atmosfera. (5)
Elas
estavam indo embora, mas junto com o mundo todo. (5)
Sem
o mundo não há sobreviventes, (5)
Nem
mesmo palavras. (5)
No vídeo,
os cães de amigos latem, latem, latem (2)
Encontrei-os
pelo Meet, (2)
quis
ouvir seus corações que batem, batem, batem (2)
à
revelia da distância (2).
Não
fossem as palavras (6)
vivas,
quase vivas, mortas, quase mortas (6)
eu
estaria morto (6)
tal qual
o ar do cemitério (6)
tal
qual a frieza das ruas (6)
tal
qual o semblante da criança que não sou mais... (6)
Graças
às palavras (6)
todas
as coisas (6)
vivas,
quase vivas, mortas, quase mortas (6)
(ainda)
me compõem (6)
à
revelia da distância. (6)
Autores
Clara
Pelaez Alvarez (1)
Edna Domenica Merola (2)
Ema
Brígida de Poli (3)
Gilberto
Pinto da Motta (4)
Clara
Amélia Oliveira (5)
Fábio
Dantas Amaral Lisbôa da Silva (6)
ADENDO III Composição musical e letra
“EM MOVIMENTO"
Gilberto Motta
Vamos remando
Se com barcos barqueando
Se com braços bracejando
Desafiando o flutuar
Vamos sonhando
Se com versos versejando
Se com pragas praguejando
Contra quem não quer pulsar
Vamos rezando
Língua solta estradando
Destilada na maneira
da nossa alma sangrear
Vamos correndo
Tropeçando movimento
Braço a braço monumento
Livre piroletear
Que giro é este?
Corpo torto zunzonzeira
Que trava trevas canseira
Pernas a fricotear
Virá o dia: destrambelhada carreira,
em que o passo descompasso
mundo redemoinhoará