COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
“O Último voo do Flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência ‒ a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.” (p 224).
O Último voo do flamingo é um romance cuja narrativa envolve explosões súbitas de militares da ONU e outros estranhos acontecimentos, em Tizangara ‒ vilarejo imaginário ao sul de Moçambique.
Estevão Jonas administrador da cidade é casado com Dona Ermelinda. O filho dela é surpreendido pelo policial Sulplício, enquanto caçava elefante (caça ilegal). A primeira dama defende o filho e acusa Sulplício de ser contra o país. Ele se torna um banido e vai viver à margem da vila, enquanto a mãe e o filho permanecem no vilarejo. O filho preserva o afeto paterno e relembra, já adulto, dum bote que fora do pai e ao qual dera o nome de “barco-íris”. Esse termo inventado por Mia Couto pelo processo de amálgama ilustra a natureza poética do romance.
Sulplício é pai do tradutor de Tizangara que vai acompanhar um estrangeiro encarregado de emitir um relatório para ONU sobre os estranhos acontecimentos. Com a chegada do relator o pai volta à vila. A mãe já morrera, enquanto o pai se exilara na praia de Inhamudzi. A mãe é um símbolo da esperança da reconstrução do país. O pai simboliza o suplício pelo qual o povo de Moçambique passou, principalmente os habitantes do sul do país.
O romance inicia com cenas cada vez mais engraçadas até chegar à sátira. Em meio a uma solene inspeção feita por autoridades locais e representantes da ONU um cabrito é atropelado e agoniza. As falas dos ilustres são permeadas pelo balido do animal. “Com o embate, um chifre saltou com tal ímpeto que veio esbarrar no adjunto Chupanga. O homem pegou no desirmanado corno e entregou-o ao administrador.” Como o cabrito fosse do administrador, Chupanga lhe entregou o chifre e disse que era dele.
A prostituta Ana Deusqueira foi chamada para reconhecer “o todo pela parte” ou o órgão sexual que havia explodido e disse não ser de ninguém da cidade. Diz ao italiano da ONU: “Esse homem aí era do sexo maisculino.”.
O italiano hospeda-se num hotel cujo nome é “Pensão Martelo Jonas” e cujo nome antigo fora “Pensão Martelo Proletário”. A citação fica no limite entre o cômico e a crítica.
A partir da chegada à pensão o tom do discurso se torna sério: “Chegamos, enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva.”.
As descrições dos personagens são feitas de forma gradativa ou conforme o desenrolar dos fatos, corroborando o enunciado pelo “ditado Tizangara”: “O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” Por exemplo, o personagem inicialmente descrito como “um tal Massimo Risi, um italiano, homem sem gerais patentes. Seria esse que iria estacionar uns tempos em Tizangara”. (COUTO, 2005, p 23), posteriormente, é descrito pelo mesmo narrador personagem como: “Eu seguia atrás, respeitosamente. No enquanto, observava o estrangeiro: como a alma dele se via pelas suas traseiras! Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza, mas, estranhamente, produzem muito barulho.”. ( p 35).
Na pensão, Massimo tem encontros noturnos com Temporina uma personagem fantástica (bruxa ou fada) e ao matar uma louva-deus (Hortênsia) fica sabendo que e outros insetos são antepassados que visitam seus entes queridos.
Massimo vai à casa de Hortênsia que é tia de um moço doente e de Temporina. Tia e sobrinha são solteironas. A casa coberta pelo mato lembra uma árvore. Temporina diz a Massimo que na mesma casa habitam os vivos e os mortos. E que há “três vilas com seus respectivos nomes ‒ Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água.”.
Pode-se perceber que a cosmovisão do povo é fundamentada nos elementos, mas Temporina descarta o fogo. Na lenda de Namaroi (COUTO) pode-se depreender que na tradição cultural moçambicana o fogo é associado à procriação.
Temporina ensina Massimo a andar, já que “saberpisar neste chão é assunto de vida ou morte.” Ela o instrui assim: “pise como quem ama, pise como se fosse sobre o peito de uma mulher”. (p 68).
O administrador distrital Estevão Jonas que chegara a dar a ambulância da cidade para o enteado trabalhar como transportador (ato imoral) passa a sentir as mãos queimarem e escreve ao ministro: " O povo é a concha que nos abriga. Mas pode, repentemente, tornar-se no fogo que nos vai queimar. Até me dá arrepio pensar nisso, eu que já senti as mãos queimarem-se. Essa luta, Excelência, é da vida e da morte e vice-versamente."(p 96).
O feiticeiro Andorinho é consultado e adverte “quando caminhar olhe bem onde pisa.” Sobre a explosão dos estrangeiros, o feiticeiro responde que o consultor da ONU deve perguntar aos mortos e não aos vivos. E fecha sua fala: “que eu viva mais que o pangolim que cai do céu sempre que chove.”
O padre e a prostituta, cada um a sua vez foram incriminados pelas explosões. Mas afinal a mulher do administrador descobre que o marido e o filho dela foram os mandantes das explosões para angariar verbas estrangeiras para a desminagem. Ao ser descoberto o administrador manda romper a barragem da represa para que não fiquem vestígios de seus crimes que envolviam as verbas da desminagem e as mortes de pessoas que explodiram para provar que ainda havia minas 'armadas', mesmo após a guerra.
Sulplício pede que o filho chegue à barragem antes do administrador Estevão Jonas. Organizam um grupo para tal aprisionar os mandantes, encontram Chupanga, mas poupam sua vida.
A catástofre é provocada e a cidade se locomove no vazio como uma jangada no mar.
Sem ser visto, o personagem narrador segue o pai (Sulplício) até a margem do Rio Madzima: lugar sagrado. Presencia a cena do pai pendurando os próprios ossos numa árvore. O consultor da ONU Massimo Risi chega ao lugar. Os três dormiram ao relento. O narrador acordou e deparou-se com um abismo enorme e que fez sumir tudo. Avisou o seu pai que indaga por seus ossos. Vão buscá-los. O pai se evade, após recuperar os ossos.
Massimo quer registrar o desaparecimento de tudo, mas não há como mensurar algo que não tem mais chão. Pega a folha do relatório e faz um pássaro de papel que atira no abismo.
No final, o narrador passa sua esperança ao italiano: a de que o voo do flamingo faz o sol voltar a brilhar depois de um período de trevas e opressão.
“O Último voo do Flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência ‒ a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.” (p 224).
O Último voo do flamingo é um romance cuja narrativa envolve explosões súbitas de militares da ONU e outros estranhos acontecimentos, em Tizangara ‒ vilarejo imaginário ao sul de Moçambique.
Estevão Jonas administrador da cidade é casado com Dona Ermelinda. O filho dela é surpreendido pelo policial Sulplício, enquanto caçava elefante (caça ilegal). A primeira dama defende o filho e acusa Sulplício de ser contra o país. Ele se torna um banido e vai viver à margem da vila, enquanto a mãe e o filho permanecem no vilarejo. O filho preserva o afeto paterno e relembra, já adulto, dum bote que fora do pai e ao qual dera o nome de “barco-íris”. Esse termo inventado por Mia Couto pelo processo de amálgama ilustra a natureza poética do romance.
Sulplício é pai do tradutor de Tizangara que vai acompanhar um estrangeiro encarregado de emitir um relatório para ONU sobre os estranhos acontecimentos. Com a chegada do relator o pai volta à vila. A mãe já morrera, enquanto o pai se exilara na praia de Inhamudzi. A mãe é um símbolo da esperança da reconstrução do país. O pai simboliza o suplício pelo qual o povo de Moçambique passou, principalmente os habitantes do sul do país.
O romance inicia com cenas cada vez mais engraçadas até chegar à sátira. Em meio a uma solene inspeção feita por autoridades locais e representantes da ONU um cabrito é atropelado e agoniza. As falas dos ilustres são permeadas pelo balido do animal. “Com o embate, um chifre saltou com tal ímpeto que veio esbarrar no adjunto Chupanga. O homem pegou no desirmanado corno e entregou-o ao administrador.” Como o cabrito fosse do administrador, Chupanga lhe entregou o chifre e disse que era dele.
A prostituta Ana Deusqueira foi chamada para reconhecer “o todo pela parte” ou o órgão sexual que havia explodido e disse não ser de ninguém da cidade. Diz ao italiano da ONU: “Esse homem aí era do sexo maisculino.”.
O italiano hospeda-se num hotel cujo nome é “Pensão Martelo Jonas” e cujo nome antigo fora “Pensão Martelo Proletário”. A citação fica no limite entre o cômico e a crítica.
A partir da chegada à pensão o tom do discurso se torna sério: “Chegamos, enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva.”.
As descrições dos personagens são feitas de forma gradativa ou conforme o desenrolar dos fatos, corroborando o enunciado pelo “ditado Tizangara”: “O mundo não é o que existe, mas o que acontece.” Por exemplo, o personagem inicialmente descrito como “um tal Massimo Risi, um italiano, homem sem gerais patentes. Seria esse que iria estacionar uns tempos em Tizangara”. (COUTO, 2005, p 23), posteriormente, é descrito pelo mesmo narrador personagem como: “Eu seguia atrás, respeitosamente. No enquanto, observava o estrangeiro: como a alma dele se via pelas suas traseiras! Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza, mas, estranhamente, produzem muito barulho.”. ( p 35).
Na pensão, Massimo tem encontros noturnos com Temporina uma personagem fantástica (bruxa ou fada) e ao matar uma louva-deus (Hortênsia) fica sabendo que e outros insetos são antepassados que visitam seus entes queridos.
Massimo vai à casa de Hortênsia que é tia de um moço doente e de Temporina. Tia e sobrinha são solteironas. A casa coberta pelo mato lembra uma árvore. Temporina diz a Massimo que na mesma casa habitam os vivos e os mortos. E que há “três vilas com seus respectivos nomes ‒ Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água.”.
Pode-se perceber que a cosmovisão do povo é fundamentada nos elementos, mas Temporina descarta o fogo. Na lenda de Namaroi (COUTO) pode-se depreender que na tradição cultural moçambicana o fogo é associado à procriação.
Temporina ensina Massimo a andar, já que “saberpisar neste chão é assunto de vida ou morte.” Ela o instrui assim: “pise como quem ama, pise como se fosse sobre o peito de uma mulher”. (p 68).
O administrador distrital Estevão Jonas que chegara a dar a ambulância da cidade para o enteado trabalhar como transportador (ato imoral) passa a sentir as mãos queimarem e escreve ao ministro: " O povo é a concha que nos abriga. Mas pode, repentemente, tornar-se no fogo que nos vai queimar. Até me dá arrepio pensar nisso, eu que já senti as mãos queimarem-se. Essa luta, Excelência, é da vida e da morte e vice-versamente."(p 96).
O feiticeiro Andorinho é consultado e adverte “quando caminhar olhe bem onde pisa.” Sobre a explosão dos estrangeiros, o feiticeiro responde que o consultor da ONU deve perguntar aos mortos e não aos vivos. E fecha sua fala: “que eu viva mais que o pangolim que cai do céu sempre que chove.”
O padre e a prostituta, cada um a sua vez foram incriminados pelas explosões. Mas afinal a mulher do administrador descobre que o marido e o filho dela foram os mandantes das explosões para angariar verbas estrangeiras para a desminagem. Ao ser descoberto o administrador manda romper a barragem da represa para que não fiquem vestígios de seus crimes que envolviam as verbas da desminagem e as mortes de pessoas que explodiram para provar que ainda havia minas 'armadas', mesmo após a guerra.
Sulplício pede que o filho chegue à barragem antes do administrador Estevão Jonas. Organizam um grupo para tal aprisionar os mandantes, encontram Chupanga, mas poupam sua vida.
A catástofre é provocada e a cidade se locomove no vazio como uma jangada no mar.
Sem ser visto, o personagem narrador segue o pai (Sulplício) até a margem do Rio Madzima: lugar sagrado. Presencia a cena do pai pendurando os próprios ossos numa árvore. O consultor da ONU Massimo Risi chega ao lugar. Os três dormiram ao relento. O narrador acordou e deparou-se com um abismo enorme e que fez sumir tudo. Avisou o seu pai que indaga por seus ossos. Vão buscá-los. O pai se evade, após recuperar os ossos.
Massimo quer registrar o desaparecimento de tudo, mas não há como mensurar algo que não tem mais chão. Pega a folha do relatório e faz um pássaro de papel que atira no abismo.
No final, o narrador passa sua esperança ao italiano: a de que o voo do flamingo faz o sol voltar a brilhar depois de um período de trevas e opressão.
Desenho: galeria de Personagens de O último voo do flamingo.
Em
O último Voo do Flamingo, Mia Couto
criou um narrador-personagem que é o tradutor de Tizangara. No entanto, há
momentos em que o “tradutor” ouve histórias, ao invés de contá-las. Nas
situações narradas por outros personagens, o narrador está presente e ouve
essas narrativas, ou seja, desloca-se para o papel de narratário ou substituto
do leitor. Esse complementar do
narrador – é um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as
respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE. 2011. P. 90). A narrativa literária criada torna-se dialógica já
que o ser narrativo é potencialmente provedor da busca de identidade pelo diálogo.
A
seguir, trecho narrado pela (falecida) mãe do Tradutor de Tizangara.
Rezava:
havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até
que, certa vez, o flamingo disse:
‒ Hoje farei meu último voo!
As aves,
desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não chorara. Tristeza de pássaro não
inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva
que nunca cai.
Ao aviso
do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se
conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em
rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse,
todos se demandavam:
‒ Mas vai voar para onde?
‒ Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O
pernalta, enfim, chegou e explicou ‒ que havia dois céus, um de cá, voável, e
um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa
fronteira.
‒ Por que essa viagem tão sem regresso?
O
flamingo desvalorizava seu feito:
‒ Ora aquilo é longe, mas não é distante.
Depois
ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só apareceu
quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram
na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas
então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os
outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
‒ Por favor, não vá!
‒ Tenho que ir!
A
avestruz se interpôs e lhe disse:
‒ Veja, eu nunca voei, carrego as asas como
duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
‒ Não posso, me cansei de viver num só corpo.
E falou.
Queria ir onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a
ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer
que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
‒ Não quero pousar mais. Só repousar.
E olhou
para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que
se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então o
flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito,
elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se
vertebrara e a nuvem, adiante, não era a própria luz que voava. E o pássaro ia
desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de
plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vemelhava. Transitava
de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se passando como se um
incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a
noite se estreou naquela terra. (COUTO, 2005. P 113-115).
REFERÊNCIAS
COUTO,
Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
LODGE,
David. A Arte da Ficção. Trad. Bras. Porto Alegre: L& PM Pocket, 2011.
Glossário de O Último Voo do Flamingo (COUTO, 2005, pp 221-222).
Canhoeiro: árvore fruta nkanhu de se
extrai a bebida usada em cerimônias tradicionais do Sul de Moçambique. Nome
científico: Sclerocarya birrea. “Nos intervalos da machamba, nos
sentávamos, eu e minha mãe, sob a brisa do canhoeiro”. (COUTO, 2005, p 47).
Chanfuta: árvore (nome científico: Atzelia
quanzensis).
Chimuanzi: língua falada em Tizangara.
“Estava tão cheio com sono que, no princípio, falou em chimuanzi”. (COUTO,
2005, p 75).
Concho: canoa, pequena embarcação.
Halakavuma: pangolim, mamífero coberto de
escamas que se alimenta de formigas. Em muitas regiões de África se acredita
que o pangolim habita os céus, descendo à terra para transmitir aos chefes
tradicionais as novidades sobre o futuro. "Vamos não fica aí, entremetido,
envergonahdo, parece o halakavuma.
Konone: árvore (nome científico:
Terminalea sericea). “Se anichava rente ao chão e acariciava a termiteira.
Depois, se erguia e apontavapara além de uns frondosos konones.” (COUTO, 2005,
p 52).
Kufa mbalame: mata o pássaro (expressão da
língua xi-sena). “Meu pai corria e mandava: ‒ Kufa mbalame!”
Machamba: terreno agrícola. “Nos meses
devidos eu ajudava minha mãe na machamba”. (COUTO, 2005, p 47).
Masuíti: corruptela de sweet (doce, em
inglês). “com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando doces. ‒ Masuíti, patrão. Masuíti.” (COUTO, 2005,
p 35).
Matumi:
árvore da floresta ribeirinha (nome científico: Preonatia sp.).
Mbolo:
testículos (em xi-sena). (COUTO,
2005, p 123).
Muchém: térmite. “Não ia muito longe.
Ali, junto a um enorme morro de muchém, ele parava”. (COUTO, 2005, p 52).
Ngoma: tambor(em várias línguas de
Moçambique). “ Na realidade os ngomas tinham barulhado toda a noite,
num pãodemônio.”(COUTO, 2005, p 74).
Nhenhenhar-se: engasgar-se. “O motor nhenhenhou-se em tentativas sucessivamente
frustradas.” (COUTO, 2005, p 31).
Nyanga:
feiticeiro. A seguir o sacerdote [...] foi ter com o nyanga que ele chamava de ‘colega’. (COUTO, 2005, p 123).
Quizumba: hiena. Estremeci de medo: não
saltara eu da boca da quizumba para entrar na garganta do leão?
(COUTO, 2005, p 109).
Quizumbar: farejar como uma hiena.
“Ermelinda [...] dorme com os ouvidos de fora, quizumbando, sempre à espreita (COUTO, 2005,
p 73).
Satanhoco:
malandro. "‒ Vá, meu filho, se apresse a evitar essa tragédia. Vá à barragem, antes que esse satanhoco lá chegue."
Sura:
aguardente. "Junto com o portador desta carta seguem os cabritos que me pediu e alguns garrafões de sura."
Tchovar: empurrar. “O representante do
mundo, de janelas fechadas, esperava certamente uma mão generosa para tchovar a viatura.” (COUTO, 2005, p 31).
Txarra!:
caramba!
Ufa:
farinha de milho. Se escutavam apenas os dedos emagrecendo a farinha, molhando
e remolhando a ufa no caril de
peixe seco.
Xicuembo: espírito feiticeiro.
“Juntávamos juras, sagrados xicuembos: que eu lhe iria visitar no momento em que ela se
estivesse despedindo de viver.” (COUTO, 2005, p 48).
Xidakwa: bêbedo. "Lhe digo, por descargo de inconsciência: me converti num trejeitoso, pareço um daqueles xidakwas sem destino."
Zuezuado: de zuezué, tontura (em algumas
línguas de Moçambique). O italiano ainda estava zuezuado. (COUTO, 2005, p
103).
ADENDO I: Trecho inicial do livro:
Fui
eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são
vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não
da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais
sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da
administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga. [...] preciso
livrar-me dessas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima.
Estávamos
nos primeiros anos do pós-guerra e tudo aprecia correr bem, contrariando as
gerais expectativas de que as violências não iriam nunca parar. Já tinham
chegado os soldados das Nações Unidas que vinham vigiar o processo de paz.
Chegavam com a insolência de qualquer militar. Eles, coitados, acreditavam ser
donos de fronteiras, capazes de fabricar concórdias.
Tudo começou com eles, os capacetes
azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente,
começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã mais outro. Até somarem, todos descontados,
a quantia de cinco falecidos.
Agora, pergunto: explodiram na inteira
realidade? Diz-se, em falta de verbo. Porque de um explodido sempre resta
alguma sombra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e
desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz
morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas
páginas.
(Assinado: O tradutor de Tizangara)
1
UM
SEXO AVULTADO E AVULSO
O
mundo não é o que existe, mas o que acontece.
Dito
de Tizangara
Nu
e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à
entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes
relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de
gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parado nas fileiras
mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se
vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos
espreitam, mas poucos descem a buscá-la.
Na
nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Em Tizangara só os fatos
são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos. Por isso, tudo acorreu,
ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa, cozinhando rumores. Vocabuliam-se
dúvidas, instantaneavam-se ordens:
‒
Alguém que apanhe... a coisa, antes que ela seja atropelada.
‒
Atropelada ou atropilada?
‒
Coitado, o gajo ficou manco central!
A
gentania se agitava, bazarinhando. Estava-se naquele aparvalhamento
quando alguém avistou, suspenso no céu, um boné azul.
‒
Olhem, lá, no cimo da árvore!
Era
um desses bonés dos soldados das Nações Unidas. Pendurado num galho, balançava
na vontade das brisas. No instante que se confirmou a identidade da boina foi
como navalha golpeando a murmuração. E logo-logo a multidão se irresponsabilizou.
Não valia a pena empernar na confusão. E a gente se dispersou, imediata,
comentando que nada acontecera, até admiravam tanto o que nunca haviam visto. E
desfalavam:
‒
Agora é que vem aí chuva de molhar vento.
‒
Sim, é melhor voltarmos às vidas.
‒
Se emborem,
pá!
E
destroçaram,
todos destrocados. Sobre o asfalto quente ficou o apêndice órfão. No ramo seco
restou o chapéu missionário, plenamente só no meio das aragens. Azul em fundo
azul.
Sobrei
para ali, sozinho, com um estranho pressentimento. Em minha alma, um espinho me
magoava. Eu, a dizer, retirava o fel do vinagre. Aquilo não era ainda o
sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. Quando o silêncio clareia é
que se escutam os escuros presságios. Foi nesse momento que me surpreendeu a
voz, esbaforida:
‒
Está ser chamado!
‒
Chamado, eu?
Eu
conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o adjunto do administrador.
Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso
com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer,
ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo
ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o
cavalo.
‒
Não é você que fala afluentemente as outras línguas?
‒
Falo umas línguas, sim.
‒
Línguas locais ou mundiais?
‒
Umas e outras. Umas, de estrada. Outras, de corta-mato.
O
mensageiro bateu os tacões das botas, moda os militares. Esse ruído, singelo
que era, me soou como um aviso. Parecia um anjo escapando pelos arredores dos
ares. E, realmente, era. Os anjos é que vêem o que não se passa. No exacto
desse momento, começavam os primeiros problemas, esquinas onde o meu destino se
haveria de labirintoar. Fora de mim, a voz de Chupanga insistia:
‒
Está ser chamado por Sua Excelência.
Sua
Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se duvida. Ouvimos, calamos
e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem vale a pena invocar ousadia.
Existe um alguém a quem primeiro nascem os dentes e só depois os lábios? Quanto
mais um lugar é pequenito, maior é o tamanho da obediência.
Foi
assim que, momentos depois, desemboquei direito e directo na sede da
administração. Era o mesmo edifício dos tempos coloniais, já depurado de
espíritos. O casarão tinha sido tratado pelos feiticeiros, consoante as
crenças. A voz de comando se abreviou, de afiados cantos:
‒
Entre, meu amigo. Precisamos de seus serviços.
Estêvão
Jonas, o administrador da vila, ocupava a inteira largura da porta. A
preocupação pingava-lhe no rosto. Um lenço branco ia e vinha a lhe enxugar a
testa. Um gerador enchia tudo de ruído e o administrador teve que forçar a voz:
‒
Entre, meu camarada... isto é, meu amigo.
Entrei.
Dentro havia mais fresco. No tecto, uma ventoinha espanejava o ar. Eu sabia,
como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o gerador do hospital
para seus mais privados serviços. Dona Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os
equipamentos públicos das enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num
jornal da capital que aquilo era abuso do poder. Jonas ria-se: ele não abusava;
os outros é que não detinham poderes nenhuns. E repetia o ditado: cabrito come
onde está amarrado.
‒
Mandei-lhe chamar porque precisamos de uma acção mais que imediata.
O
administrador até enrugava a voz. Com razão e motivo: uma delegação oficial
devia estar prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo decepado. Haviam
de vir os do governo de dentro, mais os do governo de fora. Até das Nações
Unidas viriam. Vinham investigar o caso do sexo decepado. E os outros casos que
envolviam os capacetes azuis desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha
recebido tais altas individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas
tremia quando apontou para mim e disse:
‒
Pois você fica, de imediato, nomeado tradutor oficial.
‒
Tradutor? Mas para que língua?
‒
Isso não interessa nada. Qualquer governo prezável tem seus tradutores. Você é
o meu tradutor particular. Está compreender?
Não
entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada necessita de entendimento.
Ainda pigarreei para sugerir minhas objecções. Foi quando deu entrada Dona
Ermelinda, a respectiva do administrador. Ela se fazia conhecer como "a
Primeira Dama". Olhou-me como se eu não chegasse sequer a ser gente. E
falou, prestando grandes favores ao mundo:
‒
Dizem que vem um italiano e que vai ficar aqui a fazer a investigação. Você
fala italiano?
‒
Eu não.
‒
Óptimo. Porque os italianos nunca falam italiano.
‒
Mas, desculpe, senhor administrador, traduzo para qual língua?
‒
Inglês, alemão. Uma qualquer, desenrasca-se.
A
administratriz de novo se interpôs, deixando invisível o esposo. Falava
ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda clamava que eram
vestes típicas de África. Mas nós éramos africanos, de carne e alma, e jamais
havíamos visto tais indumentárias. No momento, ela reiterava:
‒
O que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles fiquem a saber que nós, em
Tizangara, temos tradução simultânea.
Remexeu
nos dedos, ajeitando os enfeites. Ela exibia mais anéis que Saturno. Virando-se
para o marido, quis saber se tinham mandado chamar a cultura.
‒
A cultura?
‒
Sim, os grupos de dança.
‒
Eles não hão-de aceitar vir. Sem pagamento não aceitam.
‒
Mas será que nesta terra já ninguém faz nada só por vontade do amor?
A
Primeira Dama mais quis saber: se o povo ainda se concentrava na estrada.
Porque ela pretendia realizar uma visita oficial ao local da ocorrência. O
marido, incomodado, perguntou:
‒
Vai ver aquilo, Ermelinda?
‒
Vou.
‒
Sabe que coisa está ali, desfalecida, no meio da estrada?
‒
Sei.
‒
Eu não acho bem, uma mulher com o seu estatuto... com aquela gente toda a ver.
‒Vou,
mas não como Ermelinda. Desloco-me oficialmente em tanto que Primeira Dama. E,
entretanto, mande tirar aquela gentalha dali.
‒
Mas como é que posso dispersar as massas?
‒
Eu já não disse para você comprar as sirenes? Lá, na Nação, os chefes não andam
com sirene?
E
saiu, com portes de rainha. No limiar da porta sacudiu as madeixas, fazendo
tilintar os ouros, multiplicados em vistosos colares no vasto colo.
ADENDO II: P 215-220:
‒ Os meus ossos?
Árvore:
nem sombra, nem sombra. Os ossos tinham-se ido no vazio. Como a inteira
paisagem, a casa, a vila, a estrada, tudo engolido pelo vácuo. Que se passara ?
Um homem faz um grande buraco, sim. Muitos homens fazem um buraco muito enorme.
Uma cova daquela dimensão, porém , aquilo era obra da sobrenatureza.
Chamamos
o italiano que se inacreditou: o
país inteiro desaparecera? Sim, a nação fora engolida nesse vácuo. Face a
última berma do mundo, perante a maior fenda que ele jamais vira, Massimo Risi se boquiabria.
‒ Os meus relatórios !!? Onde estão os meus files?
[...]
Restou um
silêncio. Depois, o italiano foi ao saco em que se almofadara e de lá retirou
um papel e uma caneta e, ordenadamente, rabiscou umas bem alinhadas frases.
Espreitei sobre o ombro triste dele e li o que ele estava escrevendo. Logo
surgia o gordo título: “Último Relatório”. E mais ele anotava, em total:
Sua
Excelência
O
Secretário-Geral das Nações Unidas:
Cumpre-me
o doloroso dever de reportar o desaparecimento total de um país em estranhas e
pouco explicáveis circunstâncias. Tenho consciência que o presente relatório
conduzirá à minha demissão dos quadros de consultores da ONU, mas não tenho
alternativa senão relatar a realidade com que confronto: que todo este imenso
país se eclipsou, como que por golpe de magia. Não há território, nem gente, o
próprio chão se evaporou num imenso abismo. Escrevo na margem desse mundo,
junto do último sobrevivente dessa nação.
O
italiano parou, caneta trêmula apontando o precipício que se abria a seus pés.
E me pediu:
‒ Espreite lá,
outra vez.
‒ Já espreitei
mil vezes.
‒ E não vê nada?
‒ Nada.
‒ Viu bem lá no
fundo?
‒ É que nem
fundo não há. O melhor é espreitar o senhor.
‒ Não consigo.
Sofro de tonturas.
O
italiano acabou por se sentar na margem do abismo. Peto, passavam andorinhas,
riscando o céu sem se aventurarem nesse céu subterrâneo, mais recente que o
próprio dia.
‒ Que vamos
fazer?‒
perguntei.
‒ Vamos esperar.
A
voz dele era calma, como se vinda de antiga sabedoria.
‒ Esperar por
quem?
‒ Esperar por
outro barco ‒ e,
após uma pausa, se corrigiu: ‒ Esperar
por outro voo do flamingo. Há-de-vir um outro.
Ele
puxou da folha do relatório que acabara de redigir para as Nações Unidas. Fazia
o quê? Dobrava e cruzava as dobras. Fazia um pássaro de papel. Esmerou no
acabamento, e depois levantou-se e o lançou sobre o abismo. O papel rodopiou no
ar e planou, pairando quase fluvialmente sobre a ausência de chão. Foi descendo
lento, como se temesse o destino das profundezas.
Massimo
sorria, em rito de infância. Me sentei, a seu lado. Pela primeira vez, senti o
italiano como um irmão nascido na mesma terra. Ele me olhou, parecendo me ler
por dentro, adivinhando meus receios.
Há-de-vir um
outro. ‒
repetiu.
Aceitei
a sua palavra como de um mais velho. Face à neblina, nessa espera, me perguntei
se a viagem em que tinha embarcado meu pai não teria sido o último voo do
flamingo. Ainda assim, me deixei quieto, sentado. Na espera de um outro tempo.
Até que escutei a canção de minha mãe, essa que ela entoava para que os
flamingos empurrassem o sol do outro lado do mundo.
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