Para
começar a gostar de ler algo, vale saber quem é o autor. Mia Couto, membro
correspondente da Academia Brasileira de Letras, considera-se um "contador
de histórias". Nasceu em 1955, na Beira, em Moçambique. O autor assim fala
sobre ele: “eu nasci junto ao mar, numa cidade a que eu chamo de “água natal”
porque a cidade era inundada nas marés vivas, eu tinha o meu riachinho privado
que era a nossa rua que transbordava sazonalmente.” (COUTO. Prefácio de
Estórias Abensonhadas).
É
um dos principais escritores africanos em atividade. Seu romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos
dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio
Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007, o prêmio União Latina
de Literaturas Românicas. A Companhia das Letras vem publicando toda a sua
obra.
Segundo
Mia Couto, “repensar o pensamento é transformar o universo em pluriverso.
Vivemos em estado de guerra com a alteridade. O pensamento é organizado em
fronteiras que é um termo de guerra. Fronteira vem de ‘front’, frente de
batalha. Precisamos questionar o mundo, já que estamos sem aldeia. Temos de
desobedecer para alcançar o paraíso. Precisamos de novas fábulas para
reconciliar com o que vive dentro de nós. Não é da luz do sol que nós nascemos.
Carecemos do nascer da Terra.” (COUTO, Entrevista disponível em:
Ainda
segundo Mia Couto, “há quem tenha medo que o medo acabe. Não há muros que
separam os que têm medo dos que não têm medo”. Em nome da segurança nacional
foram colocados no poder os ditadores mais sanguinários de toda a história. A
fome será sem dúvida a maior causa de insegurança mundial.” (COUTO. Entrevista
disponível em:
O Gato e o
Escuro é um livro para crianças?
Questionado
sobre se escreve para crianças, Mia Couto respondeu: “Quando escrevo não vejo
os destinatários. Estou em diálogo com os meus personagens interiores. Alguns desses
personagens poderão ser crianças, pedaços de infância que sobrevivem em mim. Mas
não há nenhuma preocupação de alinhar o que faço com as características de certo
tipo de público. No dia em que pensasse nisso deixava de escrever.”.
O
Gato e o Escuro toca aquilo que é talvez mais profundo num ser que descobre o
mundo e os seus perigos: o medo. O temor do escuro é algo muito comum na
infância. A sugestão é vencer o medo por via da palavra. Quando convertermos o
escuro e a morte numa história criada pela nossa própria palavra, então é mais
fácil não ser vencido pelo medo.
No
texto de Mia Couto, o Escuro não é uma entidade fantasmagórica: é um personagem
que sofre porque todos têm medo dele. A humanização dele é algo que instiga os leitores
a repensarem a ordem do mundo.
O
escuro é o que vem de fora do circuito eurocêntrico, é a pobreza, a fome, o
outro. O medo do escuro é o medo das "ideias escuras que temos sobre o
escuro"...
No
livro O Medo e o Escuro, Mia Couto inventou os substantivos: Pintalgato,
trespassagem, noitidão, antecoisa. E os adjetivos: ataratonto, sobrancelhado.
Criou os verbos: namoriscando, arco-iriscando, pirilampiscavam, despersianar,
tiquetaqueava.
A
palavra pintalgato remete a pintassilgo + gato, ou ainda, a pintagol+ gato.
O pintassilgo, além de seu canto característico, imita o canto de outras aves.
O pintagol é uma ave híbrida mistura de canário com pintassilgo. Portanto, Pintalgato remete à imitação, ao hibridismo e à alteridade.
O pintassilgo, além de seu canto característico, imita o canto de outras aves.
O pintagol é uma ave híbrida mistura de canário com pintassilgo. Portanto, Pintalgato remete à imitação, ao hibridismo e à alteridade.
Cito
o trecho no qual consta a palavra tiquetaqueava: Quando regressava de sua
desobediência, olhou as patas adianteiras e se assustou. Estavam pretas, mais
que o breu. Escondeu-se num canto, mais enrolado que o pangolim. Não queria ser
visto em flagrante escuridão. Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na
brincadeira. E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade. À
medida que avançava, seu coração tiquetaqueava. Temia o castigo.
Tiquetaqueava
é uma formação por amálgama: pode ser entendida como uma pequena “estória”. A
onomatopeia que refere ao som do relógio é transformada num verbo: na ação de
apropriar-se do tempo, de incorporar o medo do momento ou do medo pela
transgressão.
Cito
o trecho no qual consta a palavra: arco-iriscando: Quando despertou, viu que as
suas costas estavam das cores todas da luz. Metade de seu corpo brilhava,
arco-iriscando. Afinal?
O
substantivo composto arco-íris foi transformado num verbo no gerúndio, passando
a indicar a ação contínua de construir a própria luminosidade ou identidade.
Em
O Gato e o Escuro, a prosa de Mia Couto é poética, como se pode ler em:
"Aconteceu assim: o gatinho gostava passear-se nessa linha onde o dia faz
fronteira com a noite. Faz de conta o pôr do sol fosse um muro. Faz mais de
conta ainda os pés felpudos pisassem o poente."
Nesse trecho a linha do horizonte comparece como fronteira entre o dia e a noite. A palavra muro (presente no texto de Mia Couto) é usada por Baumann para referir à preocupação com a segurança na contemporaneidade e à crença de que erguer muros é suficiente para se defender do outro. Para Mia Couto, a solução contra a violência é a erradicação da fome do planeta.
Nesse trecho a linha do horizonte comparece como fronteira entre o dia e a noite. A palavra muro (presente no texto de Mia Couto) é usada por Baumann para referir à preocupação com a segurança na contemporaneidade e à crença de que erguer muros é suficiente para se defender do outro. Para Mia Couto, a solução contra a violência é a erradicação da fome do planeta.
Em
O Gato e o Escuro, o poente é o limiar, a zona fronteiriça entre o dia (sol,
razão) e a noite (lua, intuição). É nessa zona limiar (ou de passagem) que se
dá a criação do novo e da emancipação. "Porque o Pintalgato chegava ao
poente e espreitava o lado de lá. Namoriscando o proibido, seus olhos
pirilampiscavam."
O Gato e o
Escuro
pode ser visto como um desenho dessa linha onde nasce a utopia.
Glossário de Estórias Abensonhadas
CANGANHIÇAVA:
aportuguesamento da expressão local canganhiça, que significa enganar,
ludibriar.
Citação
de O adivinhador das mortes
—
Então me faz favor explicar: que dia eu, afinal, morri?
—
Ontem à noite. O senhor, em verdade, é um recém-falecido.
Adabo
se embrumou. Fora o sonho? Pode a morte suceder em terras enevoadas do sonho?
Nunca ouvira. Mentira, devia ser mentira do adivinho. O fulano canganhiçava.
CONCHO:
canoa, pequena embarcação.
Citação
de Nas águas do tempo
Meu
avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele
remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito
cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco
desabandonado.
Arquétipo
da Alteridade: conexão entre o "eu" e os “outros”.
MAKA:
zanga, conflito.
Citação
de O Adivinhador das Mortes
A
zanga de Adabo não sabia se havia de rir. Acabou por levedar a maka:
—
Está bom. Então se estou morto, como você adianta, não posso pagar consulta.
Vou embora assim mesmo.
MAMANAS:
termo com que se designam as mulheres casadas no Sul de Moçambique.
Citação
de Pranto de Coqueiro
—
Esta ventania não vai autorizar nenhum barco.
Me
sento ali, milvagaroso para mostrar que não tenho opinião. Desembrulho os
bolinhos que comprei faz pouco às mamanas do mercado. Um miúdo se aproxima.
Penso:
lá vem mais um pedinchorar. Mas não, a criança se guarda para além da
mendigável distância. Já meus dentes se preparam para o sabor quando o miúdo se
arregala, subindo o grito na garganta:
—
Senhor, não come esse bolo!
MUENE:
autoridade tradicional.
Citação
de Lenda de Namarói
—
As mulheres têm uma parte vermelha: é dela que sai o fogo. Então, o muene que
chefiava os homens mandou que fossem buscar o fogo e lho entregassem intacto. E
dois atravessaram o rio para cumprir a ordem. Mas eles desconseguiram: as
chamas se entornavam, esvaídas. O fogo não tinha competência de atravessar o
rio.
MUTI:
tradicional aglomerado de casas de um mesmo grupo familiar, nas zonas rurais de
Moçambique.
Citação
de O Adeus da Sombra
Chegamos
pouco depois ao lugar da curandeira. Ficamos sentados na entrada do muti,
conforme os pedidos da licença. Em boa casa africana o dia transcorre fora da
casa, no pátio. Por ali rondam crianças, ciscam galinhas. Nãozinha demora a
chegar. Por fim, dá aparecimento.
NENECAR:
no sentido original significa trazer uma criança às costas; utilizado aqui como
adormecer, embalar.
Citação
de Pranto de Coqueiro
—
É para quê esse fruto?
—
É para mandar analisar lá no Hospital.
Antes
que eu debitasse lógica, ele contrapôs: aquele sangue sabe-se lá em que veias
andara brincando? Sabe-se lá se era matéria adoecida ou, antes, adoesida?
E
voltou a embrulhar o fruto com carinhos que só a filhos se destinam. E se
afastou, embalando em canção de nenecar. Seria esse meninar de Suleimane, quase
eu juro, mas me pareceu escutar um lamento vindo do coco, um chorar da terra,
em mágoa de ser mulher.
PETROMAX:
candeeiro a petróleo.
Citação
de O Caximbo (cachimbo) de Felisberto
—
Se vou sair daqui tenho que levar todas essas árvores.
O
nacional funcionário economizou paciência e lhe disse que, mais semana, eles voltariam
para o carregarem, nem que fosse à bruta força. E foram.
No
dia sequente, o homem pôs-se a desenterrar as árvores, escavando pelas raízes.
Começou
pela árvore sagrada do seu quintal. Trabalhou fundo: lá aonde ia covando já se
desabria um escuro total. Para dar seguimentos na fundura passou a levar um
petromax, desses que trouxera do Johnne. E tempo após tempo, se demorou nesse
serviço.
TCHOVA-XITADUMA:
expressão com que, no Sul de Moçambique, se designam as carroças de tração
humana. Traduzindo à letra: empurra, que há-de pegar”.
Citação
de O calcanhar de Virigílio
Nunca
mais ela terá que carregar o peso dele. Esta é a derradeira transportação do
seu corpo. Todo dinheiro ela gastara no funeral. O carro era despesa demasiada.
Assim, se arrumou o caixão em tchova-xitaduma. As tábuas não uniam bem e a luz,
às fatias, deixava entrever, dentro, o deitado corpo. O caixão fora feito de
emendas. Hortência juntou mesa, cadeira e caixotes. Montoou aquela madeira para
lhe dar aquele escuro destino. O carpinteiro do bairro, Virigílio Prego, não
cobrou mão de obra.
TCHOVAR:
empurrar.
Citação
de O perfume
Vamos ao baile, sim. Você não costumava
dançar, antes?
—
E os meninos?
—
Já organizei com o vizinho, não se preocupa.
E
foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para
ajudar. Mas o marido recusou: desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que
se vira?
XIPEFO:
lamparina a petróleo.
Citação
de As flores de Novidade
Muitas
noites além, a família repadeceu os acontecimentos. Jonasse não se encontrava.
O mineiro esburacava a terra, em turno noturno. Em casa, a mãe ainda deixou
seus olhos sobrarem na copa da luz do xipefo. Costurava tecido nenhum, roupinhas
para um filho que, conforme o sabido, nunca haveria de vir.
Em O Gato e o Escuro e Estórias Abensonhadas, a poética de Mia Couto traz o
pluriverso (ou universo plural) à baila. Assim os elementos Água, Terra, Fogo e
Ar são presentes a exemplo de Nas Águas do Tempo (água e terra: pântano); O
Gato e o Escuro (terra e ar); Lenda de Namarói (fogo).
A
construção de neologismos (brincriações) é o próprio estado lúdico de criação
pela linguagem. A poesia é presente para
narrar a morte em Nas águas do Tempo
assim como é presente para narrar o ritual de passagem ou ingresso no mundo
'adulto'. Trata-se de um desaguar que é choro de nascimento, mas também
desaguar do rio da vida para o mar da infinitude. Trata-se de uma construção
circular "rio acima" e "rio abaixo" que revela o ciclo da
vida.
Mind Mapping por Edna Domenica Merola |
REFERÊNCIAS
BACHELARD,
Gaston. A Água. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BALMANN,
Zygmunt. Sobre os laços humanos, redes sociais, liberdade e segurança.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LcHTeDNIarU&nohtml5=False
CARREIRO,
José Mª A. Lusofonia - plataforma de apoio ao estudo a língua portuguesa no
mundo. 2.ª ed: http://lusofonia.x10.mx/mia.htm,
2016.
COUTO,
Mia. Estórias Abensonhadas. Le Livros.
____________
O Medo e o Escuro. São Paulo: Companhia da Letrinhas, 2008.
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