terça-feira, 14 de outubro de 2014

O teu lugar aqui na minha mesa, tua cadeira ainda está vazia. Edna Domenica Merola.

CARTA EXTEMPORÂNEA:

A um aluno cordato e gentil,

"Chinesinho", enfim vou me despedir de você. Sei que Deus o recebeu de braços abertos para você inaugurar uma escola de poesia no céu. Imagino que agora quem coordena esses trabalhos é você. E imagino que essa escola é bilíngue. E que lá todos o respeitam: Anjos, Anjinhos e Anjões.
Todos lá são cuidados e assistidos ao mesmo tempo em que são cuidadores, isto é, amparam aos demais.  Todos comungam em criação.
Por alguns anos você sentou em uma das tantas cadeiras ocupadas por aqueles a quem chamei de alunos e que me dedicavam o respeito que era de praxe, à época, sentir pelos professores. Em especial, pela professora que incentivava o aluno a escrever sobre o que ele gostava: poemas sobre a natureza.
Você ocupou sua cadeira de aluno, mas me ensinava o tempo todo de forma mágica e calada.
Pelos seus comportamentos usuais sei que não foi autor de sua saída de cena à revelia da marcação do Diretor. Sei que não teve culpa e que conduzia sua bicicleta com cautela naquela hora fatal.  Sempre foi comedido e disciplinado...
Eu sei, pois observei você atentamente durante anos. Sempre respondendo com estilo próprio.
Imagino que não gritou quando o carro o atingiu. E que nem teve tempo de ver o seu matador.
Creio por isso que o motorista daquele automóvel estava alcoolizado ou drogado.
Só quero lhe dizer que sua cadeira, nas salas de aulas que ocupei durante anos seguidos ainda tiveram algum substituto ou outro. Mas depois foram escasseando. Até que notei que ela deixara de ser preenchida...
E depois que não seria... Preenchida aqui, assim, por algum adolescente que escreva poemas cheios de seres naturais e harmônicos como você escreveu em sua breve vida, outrora.
Hoje percebi que “teu lugar aqui na minha mesa/ tua cadeira ainda está vazia”.
Pois a terra continua cheia de motoristas pródigos. E de vidas secas que clamam por presenças poéticas.
As relações entre as gerações virou caso de estatutos: primeiro o ECA e depois o dos idosos... 
Você bem sabia de meu idealismo de jovem professora... E confesso ainda sou ligada na luta pela justiça, pela ética e pelo amor ao próximo. Conto com seu testemunho em minha defesa quando chegar a vez de ventos pródigos me abaterem.
Conto também com que recomende minhas palavras em forma de preces em sua escola de Poesia e de Presença na Casa do Nosso Grande Pai: que nasçam crianças plenas de luz para virarem jovens poetas e preencherem "o teu lugar na minha mesa" de escrita poética para múltiplas idades!


Making Of

Esse texto foi escrito no intervalo de uma aula em forma de oficina de um curso sobre saúde do qual a autora do texto participou enquanto aluna. O tema foi a relação entre dois sujeitos, a saber: um profissional de saúde e uma pessoa que precisa de cuidados.
A oficina iniciou pelo trabalho do contato pelo olhar e encerrou com excelentes materiais teóricos sobre o cuidado. 

SOBRE O PERSONAGEM 'CHINESINHO'
Foi inspirado em um adolescente paulistano e que era filho de chineses. O jovem cordato, inteligente, geralmente calado, mas participativo, foi aluno (de Língua Portuguesa) da autora do texto,  na cidade de São Paulo. Escrevia poemas cheios de luz. Faleceu aos dezesseis anos, na década de oitenta do século XX. 

SOBRE O QUE É NARRADO E DESCRITO
Foi inspirado na profissão que a escritora exerceu profissionalmente e ainda exerce como voluntária. 
A autora trabalhou (durante dez anos) numa escola próxima a uma enorme avenida que liga bairros como Ipiranga e Vila Mariana à Rodovia dos Imigrantes. Nesse período, três alunos faleceram, sendo dois por atropelamento enquanto se locomoviam com bicicletas. Na frente do prédio da escola não havia ponto de ônibus como costuma ocorrer, embora fosse uma região de supermercados e motéis.

SOBRE O TÍTULO DO TEXTO
Esse título é citação de versos (da música de Lupicínio Rodrigues) que remontam a uma perda sofrida por abandono, em vida. 
No texto aqui postado, algumas perdas são mencionadas: a do aluno adolescente morto por um motorista alcoolizado, a do aluno que respeita sua mestra, a do poeta, a da poesia. Mas principalmente, a perda do contexto de encontro 'dialógico' no qual duas pessoas interagem como sujeitos, à revelia de terem ou não maiores ou menores poderes.




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