terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Uma coleção. Edna Domenica Merola.





Está cada vez mais difícil manter os pertences organizados, primando pelo perfume, pela ausência de poeira e pelo brilho. No entanto, não pretendo me desfazer agora de alguns deles pelos significados acumulados. É o caso da prateleira de vidro em formato de “L” com a coleção de bules. Alguns deles me acompanham desde que saí da casa de meus pais e mobiliei a minha primeira morada particular.
Os bules que foram das minhas avós têm histórias bem diferentes. Minha avó materna o ganhou de um pretendente de minha mãe que foi rejeitado por esta por se achar muito nova para deixar a mãe. O da minha avó paterna era usado para guardar moedas que só foram achadas depois de seu falecimento.
Uma peça que foi de um conjunto de chá de minha mãe lembra-me a mesa repleta de louças, pães, café com leite, irmã, primos e primas. Outro de minha mãe, mais delicado, recorda-me a grande cristaleira que havia na sala de jantar da casa de meus pais.
 Lembro-me de que adquiri o bule de estanho em uma viagem às cidades históricas de Minas Gerais, na década de 1970. Na década seguinte, foi a vez da aquisição de dois bules de cerâmica de uma mesma artesã: uma mãe de aluno da escola onde lecionava.
Em meados da década 1990, após as mortes dos sogros de minha irmã, quatro bules remanescentes – ausentes suas xícaras e pires correspondentes – foram por mim acolhidos. Em seguida, minha irmã me presenteou com duas peças uma em cada data diferente.  No final daquela década, uma grande amiga paulistana me deu de presente um bule tipo japonês comprado, provavelmente, no bairro da Liberdade.
Em 2018, a filha daquela amiga paulistana me presenteou com uma peça feita por um artista plástico de Santo Antonio de Lisboa, em Floripa.
Em meados de 2019, avisei aos mais próximos que a coleção estava encerrada. A partir daí as lembranças dos fatos que envolvem esses objetos proliferaram, assim como detalhes a imaginar sobre as narrativas incompletas. Como foi a vida amorosa do pretendente rejeitado por minha mãe?
No jantar de hoje, olhei os bules na prateleira: herança das matriarcas as mais corajosas e competentes... E continuei a comer e a conversar...
Olhei novamente os objetos e das superfícies impermeáveis escorriam cheiros,  cores e texturas daqueles perfis femininos... Personagens introjetadas que dançavam sobre a minha cabeça.
Olhei ainda mais uma vez para a prateleira em busca dos objetos. Agora pousavam na minha mesa. Degustavam da nossa comida. Intrometiam-se em nossa conversa. As peças amealhadas eram, então, as verdadeiras, as reais anfitriãs.


Tudo o que existe no mundo material ocupa uma posição socioeconômica, habita um lócus histórico-político, realiza um potencial DNA. Por sua vez, a materialidade humana, como hoje é conhecida, se insere na relação mundo-universo em que pesam as concepções da Física Quântica.
Se tomarmos por objeto de análise uma coleção de bules cuja peça mais antiga data da primeira década do século XX e a última da segunda década do século XXI, podemos ilustrar algo sobre a relação mencionada.
A referida coleção passou por quatro moradias, sendo três na zona sul da capital de SP e uma na capital de SC. Parece querer manter sua vocação para habitar lugares históricos, já que iniciou no bairro do Ipiranga em São Paulo e, hoje, se aloja no Saco dos Limões em Florianópolis.
Essa coleção de bules expressa prerrogativas tais como o direito à propriedade e à herança, direito de ir e vir, ter cidadania, preservar memórias, manter laços familiares, usufruir do prazer estético.

A sobrevivência da coleção de bules como iniciativa e patrocínio pessoal denota que no período de tempo referido houve certa paz civil no Brasil, à revelia do ostracismo, exílio ou morte dos que militaram por um país melhor e da mortandade por fome de grande parte da população. Num contexto de guerrilha urbana, a colecionadora foi protegida pelo acaso e sobreviveu, mantendo o sentido dessa reunião de objetos domésticos que hoje repousam esteticamente em Floripa.