sábado, 13 de junho de 2015

Dois Sonetos de Amor Além de Seu Tempo. Edna Domenica Merola.

Camões e Bocage foram perseguidos pela Inquisição Portuguesa que vigorou de 1536 a 1821, em Portugal e suas colônias.
As sanções sofridas deveram-se, provavelmente, a serem os poetas pessoas além de seu tempo.
Será que a perseguição sofrida deveu-se também ao que escreveram sobre o Amor?
Para que possa responder a essa questão, leia ou releia os poemas:
Amor é fogo que arde sem se ver, de Camões (que viveu no século XVI) e A frouxidão no amor é uma ofensa, de Bocage (que viveu no século XVIII).

Soneto. Camões                                                   

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Camões
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

No soneto Amor é fogo que arde sem se ver, Camões conceitua o amor por uma série de antíteses para concluir por um paradoxo em que o amor é igual ao contrário de si mesmo, ou seja, o amor é a união de opostos.

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Bocage
A Frouxidão no Amor é uma Ofensa. Bocage         

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão; fervor, e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso;
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo, e não me faz ditoso.

Esse poema de Bocage tem 14 versos decassílabos.
As rimas: A,B,B,A/ A,B,BA/C,D,C/D,C,D.
A concepção do amor, no soneto A Frouxidão no Amor é uma Ofensa já vem em seu primeiro verso e é explicado no último: “Tem-me cativo, e não me faz ditoso”. Ao passo que o ‘eu-lírico’ arde de paixão, a sua musa é terna, branda e grata, mas está longe de expressar uma paixão ardente.
O ‘eu-lírico’ apregoa um amor que se mede por ações: perder as cores, praguejar, arder, gemer, chorar, desesperar, clamar, tremer. Essas ações remetem à concepção da arte dionisíaca que é de certa forma relacionada à exacerbação da parte motora. 
Exibindo baco.jpg
Dionísio / Baco
A arte dionisíaca é deformante da realidade. Remete ao que é ritualizado. A expressão exacerbada no ritual amoroso representaria, assim, um mecanismo de subversão do equilíbrio, mas com retorno à sua continuidade, ou seja, à felicidade. Ao passo que o equilíbrio e o controle extremos impediriam a libertação e a felicidade.
Ao tomarmos as descrições das diferenças entre a concepção do amor do 'eu-lírico' e a concepção do amor que ele projeta na 'amada' (ou interlocutora), a leitura do poema ganha um valor de reflexão sobre a CONDIÇÃO DE IGUALDADE dos parceiros não só no amor, assim como na concretização da poesia. Afinal, a crítica ( a censura quer da Inquisição, dos governos ditatoriais, ou dos críticos ferrenhos) pode provocar essa forçosa 'brandura' que mantém os poetas 'cativos' (até que a alma 'romântica os liberte!).

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