quinta-feira, 4 de junho de 2015

"Você me pergunta pela minha paixão?" Edna Domenica Merola


Sou professora aposentada e minha paixão continua a ser a de estudar e analisar como as pessoas aprendem, interpretam textos, analisam fatos, se comunicam, se relacionam.
Aproveitando esse espaço democrático – que as mídias oferecem a “qualquer pessoa”–  “não quero lhe falar das coisas que aprendi nos discos”  (O que eu entendo por aprender nos discos? É recorrer a conteúdos tais como os que colocávamos para tocar na vitrola e que poderíamos repeti-los ou 'cantá-los conforme o compositor' ou "dançar conforme a música").
Na escola, aprender com os discos significa aprender por meio de delongadas repetições, tais como aquelas situações em que alunos eram forçados a decorar as conjunções, as preposições ou a tabuada... Os sermões monológicos de como os alunos não devem proceder (sem partir de onde agem adequadamente) também fazem parte dessa didática de colocar sempre o mesmo disco na vitrola. 
Sei que você não se espantou pelo fato de, mesmo sendo professora com delongada experiência, me coloco aqui como alguém que viveu a “vida de qualquer pessoa”. Você sabe que, sob o aspecto da escolha profissional, minha vida foi mais envolvida do que  “a vida de qualquer pessoa”.
“Quero lhe contar” não só “como eu vivi e tudo o que aconteceu comigo” e com a minha geração, mas também quero viver esse momento com você que “me pergunta pela minha paixão”. Refiro-me a você que se espanta com o fato de, na minha idade, ter “paixão” pelos estudos.
“Você me pergunta pela minha paixão... Digo que estou encantada com uma nova invenção... Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar” para a megalópole... 
Você me pergunta pela minha paixão e eu lhe pergunto: "seremos reféns das microculturas a tal ponto de não conseguir dialogar com o que vem de fora dela"? 
Pois essa atitude bairrista (que aqui repudio) também me instiga a tentar abrir espaços de diálogos...
Aprendi com “nossos pais” a não fugir de diálogos. Quando diziam ao meu irmão que mais vale um covarde vivo do que um herói morto, eu participava da conversa com a minha opinião.
Eles diziam que “viver é melhor que sonhar" e que para isso era preciso trabalhar, incluir-se no sistema. Sem índole para trabalhar em empresas fui ser professora das séries finais do ensino fundamental, tendo o privilégio de ser professora de torneiros mecânicos cujos salários eram superiores ao meu (Onde? No ABC paulista. Quando? Década de 70 do século XX.). 
Pois BUBER me dizia que sem a utopia  seria impossível “abraçar meu irmão”. E com MORENO aprendi técnicas de como fazê-lo em sala de aula.
Como mestra em Educação sei que devo me abster de poliCIAmento bibliográfico, para poder compreender os caminhos que cada um constrói com os próprios instrumentos para organizar seu conhecimento. Mas aí vai uma explicação acadêmica do que digo:
Segundo Zuben (1990), Moreno, analogamente a Buber, percebeu os conflitos humanos como bloqueadores tanto das possibilidades de relacionamento entre o eu e o outro, como do eu consigo mesmo; quanto do eu com os aspectos transcendentes da realidade. Moreno criou um método de desbloqueio dessas possibilidades.
Traduzo (hoje, aqui-e-agora) esse método moreniano de desbloqueio como "pedagogia para abraçar meu irmão"...
A pedagogia para “abraçar meu irmão” parte do contato para criar canais de aprendizagem... É tarefa de todos, ainda que a competência técnica, pessoal e afetiva da professora conte muito para tal intento. Refiro-me a abraçar os valores, os anseios, os talentos, os sonhos de quem aprende e de quem ensina. Daí sim vale dizer, novamente, mas num novo sentido que: “viver é melhor que sonhar", pois é preciso a relação, o contato, o vínculo para criar canais de aprendizagem.
Numa tarde de junho de 2015, num seminário, ouvi o discurso dum jovem colega sobre a letra da música Velha Roupa Colorida. Explicou-nos como os autores usaram, numa mesma estrofe, citações de um autor canônico da Língua Inglesa (Edgar Alan Poe) e de um compositor como Luís Gonzaga (identificado com a cultura do Nordeste brasileiro, que, à época, era uma região pobre):

“Como Poe, poeta louco americano,
Eu pergunto ao passarinho: "Black bird, o que se faz?”.
Haven never haven never haven
Black bird me responde
Tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven
Assum-preto me responde
O passado nunca mais

As explicações dadas pelo jovem colega sobre as citações me fizeram pensar sobre a qualidade de excelência das letras das músicas de dois autores brasileiros, quer da década de setenta (vide Anexo 1) como também de cinquenta (vide anexo 2).
Esse diálogo cultural não deve ser conduzido nem com apreço ao passado e nem com elitismo e nem para valorizar o que é nosso a partir da comparação com o estrangeiro. Esse diálogo cultural só é útil, pedagogicamente, se feito para usar o diálogo para “abraçar meu irmão”, ou seja, abarcar as contribuições das falas que a academia considera, ainda, infelizmente, à margem de seu discurso.
É nesse intuito que deixo aqui o testemunho da “minha paixão” pelo diálogo em prol da inclusão. 
E aí eu exorto (agora, sim, como madura professora experiente) a que você entre em contato, primeiro com o assum-preto que vive dentro de você: "que vive solto, mas não pode voar" (Assum Preto veve sorto/ Mas num pode avuá)... 
E aí eu compactuo: todos têm de enfrentar seus medos, "meu irmão"!
É de forma despretensiosa (de uma professora aposentada) que “eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança, em breve, vai acontecer” e que ela depende da sua coragem para abrir seus espaços, dialogando sobre suas convicções, exercitando sua liberdade de expressão, sem medo ou culpa.
O espaço acadêmico dado pela Universidade deve ser o local privilegiado para esse exercício de coragem. 
Não importa se igual ou diferente dos nossos pais. 
Não importa se igual ou diferente dos nossos preceptores, mestres ou mentores intelectuais.


REFERÊNCIAS

ZUBEN, N. A. Von – Jacob Levy Moreno e Martin Buber: um encontro. In: AGUIAR, M. (coordenador) – O Psicodramaturgo, J. L. Moreno (1889-1989). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1990.

ANEXO 1

As músicas Como nossos pais e Velha Roupa Colorida são de autoria de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, conhecido simplesmente como Belchior (*Sobral, CE 26/10/1946. +Santa Cruz, RS, 30/4/2017).
Belchior foi coetâneo do músico carioca Gonzaguinha (filho de Luís Gonzaga, autor de Assum-preto).

Seguem as letras da músicas de autoria de Belchior citadas aqui:

Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz

Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração

Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem

Hoje eu sei
Que quem me deu a ideia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais


Velha Roupa Colorida. Fagner e Belchior


Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem novo
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer
Hope you like this The Beatles HD wallpaper as much as we do!

Nunca mais meu pai falou:"She ´s leaving home"

E meteu o pé na estrada, "Like a Rolling Stone..."

Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no ...Nunca mais eu convidei minha menina
Para correr no meu carro...(loucura, chiclete e som)
Nunca mais você saiu a rua em grupo reunido
O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quero cartaz

No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
Gravura de Poe e algumas de suas criações

Como Poe, poeta louco americano, 
Eu pergunto ao passarinho:
Black bird, o que se faz?
Haven never haven never haven
Black bird me responde
Tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven
Assum-preto me responde
O passado nunca mais
Você não sente, não vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era jovem novo,
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer (bis)
E precisamos rejuvenescer.

ANEXO 2

Luiz Gonzaga do Nascimento, conhecido como o Rei do Baião, (Exu, 13 de dezembro de 1912 — Recife, 2 de agosto de 1989) foi um importante compositor e cantor: um dos mais inventivos da música popular brasileira. 
Cantando acompanhado de sua sanfona, zabumba e triângulo, levou a alegria das festas juninas e dos forrós pé-de-serra, bem como a cultura do Sertão Nordestino, ao resto do país, numa época em que se ignorava o baião, o xote e o xaxado. De 1946 a 1955, foi o artista que mais vendeu discos no Brasil.
Assum-Preto foi lançada em 1950. 
A cantora baiana Gal Costa gravou Assum- Preto em 1970, no auge da Tropicália. O Tropicalismo, de certa forma, retomou o movimento pop mundial, assim como o regionalismo brasileiro.
Dr. Aureliano, faça um esforçopara levar a paz à minha terra ...



Assum Preto
Compositores: Humberto Teixeira / Luiz Gonzaga

Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor (bis)

Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió (bis)

Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vezes a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá (bis)

Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus..


Link: 


Nenhum comentário:

Postar um comentário