Sou professora aposentada e minha paixão continua a ser a de estudar e analisar como as pessoas aprendem, interpretam textos, analisam fatos, se comunicam, se relacionam.
Aproveitando esse espaço democrático – que as
mídias oferecem a “qualquer
pessoa”– “não quero lhe falar das coisas que aprendi nos discos” (O que eu entendo
por aprender nos discos? É recorrer a conteúdos tais como os que
colocávamos para tocar na vitrola e que poderíamos repeti-los ou 'cantá-los
conforme o compositor' ou "dançar conforme a música").
Na escola, aprender com os discos significa
aprender por meio de delongadas repetições, tais como aquelas situações em que
alunos eram forçados a decorar as conjunções, as preposições ou a tabuada... Os
sermões monológicos de como os alunos não devem proceder (sem partir de onde agem adequadamente)
também fazem parte dessa didática de colocar sempre o mesmo disco na
vitrola.
Sei que você não se espantou pelo fato de, mesmo
sendo professora com delongada experiência, me coloco aqui como alguém que
viveu a “vida de qualquer pessoa”. Você sabe que, sob o aspecto da escolha
profissional, minha vida foi mais envolvida do que “a vida de qualquer
pessoa”.
“Quero lhe contar” não só
“como eu vivi e tudo o que aconteceu comigo” e
com a minha geração, mas também quero viver esse momento com você que “me pergunta pela minha paixão”. Refiro-me
a você que se espanta com o fato de, na minha idade, ter “paixão” pelos
estudos.
“Você me pergunta pela
minha paixão... Digo que estou encantada com uma nova invenção... Eu vou ficar
nesta cidade, não vou voltar” para a
megalópole...
Você me pergunta pela minha paixão e eu lhe
pergunto: "seremos reféns das microculturas a tal ponto de não conseguir
dialogar com o que vem de fora dela"?
Pois essa atitude bairrista (que aqui repudio)
também me instiga a tentar abrir espaços de diálogos...
Aprendi com “nossos pais” a não fugir de diálogos.
Quando diziam ao meu irmão que mais vale um covarde vivo do que um
herói morto, eu participava da conversa com a minha opinião.
Eles diziam que “viver é melhor que sonhar" e que para
isso era preciso trabalhar, incluir-se no sistema. Sem índole para trabalhar em
empresas fui ser professora das séries finais do ensino fundamental, tendo o
privilégio de ser professora de torneiros mecânicos cujos salários eram
superiores ao meu (Onde? No ABC paulista. Quando? Década de 70 do século
XX.).
Pois BUBER me dizia que sem a utopia seria impossível “abraçar meu irmão”. E com MORENO aprendi técnicas de
como fazê-lo em sala de aula.
Como mestra em
Educação sei que devo me abster de poliCIAmento bibliográfico, para poder
compreender os caminhos que cada um constrói com os próprios instrumentos para
organizar seu conhecimento. Mas aí vai uma explicação acadêmica do
que digo:
Segundo Zuben (1990), Moreno, analogamente a Buber, percebeu os
conflitos humanos como bloqueadores tanto das possibilidades de relacionamento
entre o eu e o outro, como do eu consigo mesmo; quanto do eu com os aspectos
transcendentes da realidade. Moreno criou um método de desbloqueio dessas
possibilidades.
Traduzo (hoje, aqui-e-agora) esse método moreniano de desbloqueio como
"pedagogia para abraçar meu irmão"...
A pedagogia para “abraçar meu irmão” parte do
contato para criar canais de aprendizagem... É tarefa de todos, ainda que a
competência técnica, pessoal e afetiva da professora conte muito para tal
intento. Refiro-me a abraçar os valores, os anseios, os talentos, os sonhos de
quem aprende e de quem ensina. Daí sim vale dizer, novamente, mas num novo
sentido que: “viver é melhor que sonhar", pois é preciso a relação, o contato, o vínculo para criar canais de
aprendizagem.
Numa tarde de junho de 2015, num seminário, ouvi o discurso dum jovem colega sobre a letra da música Velha Roupa Colorida. Explicou-nos como os autores usaram,
numa mesma estrofe, citações de um autor canônico da Língua Inglesa (Edgar Alan
Poe) e de um compositor como Luís Gonzaga (identificado com a cultura do
Nordeste brasileiro, que, à época, era uma região pobre):
“Como Poe, poeta louco
americano,
Eu pergunto ao
passarinho: "Black bird, o que se faz?”.
Haven never haven never haven
Black bird me responde
Tudo já ficou atrás
Haven never haven never
haven
Assum-preto me responde
O passado nunca mais”
As explicações dadas pelo jovem colega sobre as citações me fizeram
pensar sobre a qualidade de excelência das letras das músicas de dois autores brasileiros,
quer da década de setenta (vide Anexo 1) como também de cinquenta (vide anexo
2).
Esse diálogo cultural não deve ser conduzido nem com apreço ao passado e
nem com elitismo e nem para valorizar o que é nosso a partir da comparação com
o estrangeiro. Esse diálogo cultural só é útil, pedagogicamente, se feito para
usar o diálogo para “abraçar meu irmão”, ou seja, abarcar as contribuições das
falas que a academia considera, ainda, infelizmente, à margem de seu discurso.
É nesse intuito que deixo aqui o testemunho da “minha paixão” pelo
diálogo em prol da inclusão.
E aí eu exorto (agora, sim, como madura professora experiente)
a que você entre em contato, primeiro com o assum-preto que vive dentro de
você: "que vive solto, mas não pode voar" (Assum Preto veve
sorto/ Mas num pode avuá)...
E aí eu compactuo: todos têm de enfrentar seus medos, "meu
irmão"!
É de forma despretensiosa (de uma professora aposentada) que “eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que
uma nova mudança, em breve, vai acontecer” e que ela depende da sua coragem para
abrir seus espaços, dialogando sobre suas convicções, exercitando sua liberdade
de expressão, sem medo ou culpa.
O espaço acadêmico dado pela Universidade deve
ser o local privilegiado para esse exercício de coragem.
Não importa se igual ou diferente dos nossos
pais.
Não importa se igual ou diferente dos nossos
preceptores, mestres ou mentores intelectuais.
REFERÊNCIAS
ZUBEN, N. A. Von – Jacob Levy Moreno e Martin Buber: um encontro. In: AGUIAR, M. (coordenador) – O Psicodramaturgo, J. L. Moreno (1889-1989). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1990.
ANEXO 1
As músicas Como nossos pais e Velha Roupa
Colorida são de autoria de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle
Fernandes, conhecido simplesmente como Belchior (*Sobral, CE 26/10/1946. + Santa Cruz, RS, 30/4/2017).
Belchior foi coetâneo do músico carioca Gonzaguinha (filho de Luís
Gonzaga, autor de Assum-preto).
Seguem as letras da músicas de autoria de Belchior citadas aqui:
Não quero
lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é
melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Hoje eu sei
Que quem me deu a ideia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais
Velha Roupa Colorida. Fagner e Belchior
Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem novo
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer
Nunca mais meu pai falou:"She ´s leaving home"
E meteu o
pé na estrada, "Like a Rolling Stone..."
Para
correr no meu carro...(loucura, chiclete e som)
Nunca
mais você saiu a rua em grupo reunido
O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quero cartaz
O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quero cartaz
No
presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
Como Poe, poeta louco americano,
Eu
pergunto ao passarinho:
Black
bird, o que se faz?
Haven never haven never haven
Black bird me responde
Tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven
Tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven
Assum-preto
me responde
O passado
nunca mais
Você não
sente, não vê
Mas eu
não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma
nova mudança em breve vai acontecer
O que há
algum tempo era jovem novo,
Hoje é
antigo
E precisamos todos rejuvenescer (bis)
E precisamos todos rejuvenescer (bis)
E
precisamos rejuvenescer.
ANEXO 2
Luiz Gonzaga do Nascimento, conhecido como o Rei do Baião, (Exu, 13 de
dezembro de 1912 — Recife, 2 de agosto de 1989) foi um importante compositor e
cantor: um dos mais inventivos da música popular brasileira.
Cantando acompanhado de sua sanfona, zabumba e triângulo, levou a
alegria das festas juninas e dos forrós pé-de-serra, bem como a
cultura do Sertão Nordestino, ao resto do país, numa época em que se ignorava o
baião, o xote e o xaxado. De 1946 a 1955, foi o artista que mais vendeu discos
no Brasil.
Assum-Preto foi lançada em 1950.
A cantora baiana Gal Costa gravou Assum- Preto em 1970, no auge da
Tropicália. O Tropicalismo, de certa forma, retomou o movimento pop mundial,
assim como o regionalismo brasileiro.
Assum
Preto
Compositores:
Humberto Teixeira / Luiz Gonzaga
Tudo
em vorta é só beleza
Sol
de Abril e a mata em frô
Mas
Assum Preto, cego dos óio
Num
vendo a luz, ai, canta de dor (bis)
Tarvez
por ignorança
Ou
mardade das pió
Furaro
os óio do Assum Preto
Pra
ele assim, ai, cantá mió (bis)
Assum
Preto veve sorto
Mas
num pode avuá
Mil
vezes a sina de uma gaiola
Desde
que o céu, ai, pudesse oiá (bis)
Assum
Preto, o meu cantar
É
tão triste como o teu
Também
roubaro o meu amor
Que
era a luz, ai, dos óios meus..
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