segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Os narradores em A Quinta História e Noite e Neblina. Edna Domenica Merola.

Os narradores em A Quinta História e Noite e Neblina foi escrito como atividade acadêmica. Na disciplina Literatura e Cinema, cursada  no segundo semestre de 2017 (CCE,UFSC), a professora Ana Luísa Andrade propôs que a escrita de um ensaio sobre o tema da disciplina, considerasse alguns aspectos trabalhados durante o semestre. 
           
                        Ao pensar um possível diálogo entre o conto a Quinta-História de Clarice Lispector e o filme Noite e Neblina de Resnais, considerou-se que as duas produções ocorreram no período consecutivo à Segunda Guerra do século XX, e que a contemporaneidade da construção narrativa de ambas é útil para ilustrar a abordagem benjaminiana sobre o narrador:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois [:] alguém que vem de longe [e] o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1987).

            Frequentemente, as narrativas ocidentais se distanciam das histórias orais e constituem um aparato hegemônico cujo proselitismo se sustenta, ao longo da História – canonizada pelo poder dos impérios. Padre Antonio Vieira nomeou os impérios: Assírio, Persa, Grego, Romano, e, sob a égide da crença milenarista, pleiteou, no Sermão do Esposo da Mãe de Deus, que o quinto império seria o de Portugal. Em Mensagem, Fernando Pessoa retoma o sebastianismo português no poema O Quinto Império (1934). Em A Quinta-História de Clarice Lispector – desde seu título – percebe-se a denúncia às narrativas fundamentalistas (tais como a referente ao quinto império).
            Publicado em Felicidade Clandestina, em 1971, mas referente ao universo que trata dos anos 1950-1960, o conto A Quinta História propõe cinco versões narrativas dos seguintes fatos: “queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. [...] Assim fiz. Morreram.”.
            O conto apresenta cinco diferentes maneiras de narrar como se deu a aprendizagem do preparo e da aplicação de um veneno infalível na eliminação de baratas. Os títulos das versões que a narradora considera “verdadeiras” são: “Como Matar Baratas”, “O Assassinato” e “As Estátuas”.
            “Como Matar Baratas” permanece no nível discursivo do senso comum, é informativo, factual, denotativo e informal. Traz a receita: “Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram.”.
            A segunda história do conto narra “O Assassinato”: “Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia formar parte da natureza.”.        Conforme a teoria darwinista da evolução, constata-se a vitória do mais forte sobre o mais fraco: “Já era de madrugada. [...] No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome amanhecia.” A expressão “nosso nome” sinaliza que a dona de casa representa uma classe social ou uma raça. E a palavra “amanhecia” adquire uma conotação positivista ou de construção do progresso.
            Na terceira história (“As Estátuas”), a narradora descreve as baratas mortas pela evocação da imagem do desaparecimento da antiga cidade romana de Pompeia, devido à erupção do vulcão Vesúvio: “Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia”. (LISPECTOR, 1998).
            A história da profana Pompeia que desaparecera pelo fogo preservou-se por meio da narrativa oral, mas foi tida por mito durante quinze séculos, até obter comprovação material, em 1748, quando foram feitas escavações no local. Os corpos dos antigos habitantes foram encontrados como estátuas que reproduziam a ação feita no momento da catástrofe. De maneira similar, Lispector narra a morte das baratas por envenenamento:

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. [...] E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. (LISPECTOR, 1998).

            “As Estátuas” remete a um universo das verdades que não bastam ser narradas, mas demandam comprovações materiais. No texto, essa materialidade se dá pela atribuição de comportamentos e sentimentos humanos às baratas:

Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de...” (LISPECTOR, 1998).

            A remissão aos cadáveres das baratas como estátuas é “figura chave para a alegoria, pois cria, através do seu espectro materializado, o espaço do imaginário que sonha com a vida.” (ANDRADE, 2016).
            A quarta história menciona as sensações da narradora e o pressentimento de que novas baratas surgiriam:
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde essa mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal como quem já não dorme sem a avidez de um rito? (LISPECTOR, 1998).

            Na quarta história, a narradora reflete sobre “o vício de viver” que rebenta seu “molde interno” perante a escolha entre sobreviver ou salvar a sua alma:

Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou a minha alma. (LISPECTOR, 1998).

            A escolha redunda em passar a ostentar “secretamente no coração uma placa de virtude: Esta casa foi dedetizada” (LISPECTOR, 1998).
            A placa, “Esta casa foi dedetizada”, [é] como um prêmio de virtude, uma cena alegórica da limpeza étnica nazista” (ANDRADE, 2016). A menção ao genocídio coloca a narrativa de Lispector em estado de diálogo com o filme Noite e Neblina (Resnais, 1955).
            Segundo Osmo (2012), o filme foi encomendado a Alain Resnais pelo Comitê Histórico da Segunda Guerra Mundial. O diretor só aceitou quando Jean Cayrol – um sobrevivente do campo de concentração de Mauthausen que escrevera, em 1946, o livro Poèmes de la nuit et brouillard – se propôs a colaborar para o projeto. A trilha sonora foi feita por Hanns Eisler, um judeu alemão que fugira da Alemanha em 1933.
            Noite e Neblina não se propõe a explicar o genocídio, mas seria um esforço de análise e compreensão do que ocorreu.
            O filme alterna imagens coloridas com imagens em preto e branco. As coloridas datam de dez anos após o genocídio, em que são exibidos (sem identificação) diferentes campos de concentração. Elas contrastam com as imagens em preto e branco, que consistem em fotos e filmes, retirados de arquivos, relativos ao período em que o horror nazista estava sendo perpetrado.
            Uma narrativa discursiva e poética, acompanha as duas diferentes narrativas imagéticas, e inicia como segue:

Inclusive uma paisagem tranquila.
Inclusive uma pradaria com voo de corvos, com colheitas e com fogos de ervas.
Inclusive uma estrada por onde passam carros, camponeses, parelhas.
Inclusive um povo de veraneio, com uma feira e um campanário, pode conduzir simplesmente a um campo de concentração.
Struhhof, Oranienburg, Auschwitz, Neuengamme, Belsen, Ravensbruck, Dachau foram nomes como os outros sobre os mapas e os guias. (CAYROL, 1946).

            As cenas de Noite e Neblina são todas chocantes, posto que referentes ao abominável como a imagem dos diversos fornos, todos vazios e limpos como se fossem um produto fora de moda. “O crematório não é mais usado. As astúcias nazis já passaram de moda. Nove milhões de mortos espreitam esta paisagem.” (CAYROL, 1946).
            Outros destaques vão para as cenas em que são mostrados monte de objetos iguais e montes de corpos humanos mortos. São imagens que ecoam no alerta de Cayrol sobre a responsabilidade histórica de todas as nações:

E estamos nós que olhamos sinceramente estas ruínas como se o velho monstro concentracionário estivesse morto sob os escombros; nós que fingimos recuperar a esperança diante desta imagem que se afasta, como se nos sanássemos da peste concentracionária; nós que fingimos acreditar que tudo isso pertence a um só tempo e a uma só nação, e que não pensamos em olhar à nossa volta e que não ouvimos que se grita interminavelmente.” (CAYROL, 1946).

            Passados setenta e um anos de quando foram proferidas, as palavras supra alertam para questões presentes. Tais como: as massas de excluídos de sua própria pátria por pobreza ou guerra, a separação entre os que conseguirão trabalhar sob regime de escravidão (ainda que voluntária) e os que permanecerão abaixo da linha da pobreza, a alienação do indivíduo frente o problema do outro, a formação de falsas redes que giram em torno de si mesmas, o fim do dialogismo.
            A Quinta História é um laboratório do processo narrativo em que uma única narradora se abre ao projeto de construção da alteridade a partir do “senso prático [que] é uma das características de muitos narradores natos.” (BENJAMIN, 1987). As diferentes narrativas do conto a Quinta História resultam dos esforços da vivência do papel de narradora nata que se modifica ao experimentar o contido nas próprias narrativas.
            A narradora conta “três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (LISPECTOR, 1998). Tal qual Sherazade, pretende sobreviver pela manutenção da tradição oral. As repetições ao longo dos diferentes momentos narrativos tentam construir tal tradição. A identidade da voz que narra determina o convencimento sobre a verdade do que é narrado. Lispector não dá pronta essa identidade. Apenas constrói pistas de identificações em cada um dos segmentos narrativos do conto.
            A quarta narrativa (“Esta casa foi dedetizada”), assim como a quinta (“Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia”) não são reconhecidas como literalmente verdadeiras pela narradora, à revelia de referirem, metaforicamente, a fatos históricos.
            “Esta casa foi dedetizada” dialoga com o filme Noite e Neblina que, em relação ao projeto de higienização relata as ameaças: Um piolho é a sua morte e Limpeza é saúde. Os ambulatórios médicos dos campos de concentração realizavam pesquisas com humanos que incluíam mutilações e envenenamentos, ao invés de prestar atendimento aos mais frágeis. A sopa era servida somente aos aptos ao trabalho.
            Em “Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia” há várias chaves de leitura sobrepostas. Leibniz (1646 - 1716) foi filósofo, mas também diplomata alemão. Daí considerar como primeira chave a do olhar estrangeiro sobre os fatos narrados. Como filósofo, Leibniz tentou encontrar o princípio que rege a ordem da existência das verdades de fato. Essa tentativa também comparece na busca da narradora de A Quinta História. Como germânico, Leibniz remete à imagem de povo alemão que, no século XIX, foi associada ao Romantismo (em seus temas de amor, morte, idealismo), mas, no século XX, ao nazismo. A menção à Transcendência do amor remete ao amor que as baratas foram impedidas de declarar ao serem envenenadas. A Polinésia é um conjunto de ilhas no Sul do Oceano Pacífico. Muitas delas são colônias dos Estados Unidos – protagonista tanto da destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki, como do contexto mundial da Guerra Fria. Essa comparece sob a metáfora da noite, presente no título do filme que por sua vez fora inspirado no livro de Cayrol: Poèmes de la nuit et brouillard. A noite ou cenário da destruição planejada por algozes vitoriosos contra a inocência das vítimas ou das baratas: “Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite.” (LISPECTOR, 1998).
            O final do conto mantém a abertura para um novo recomeço a ser tecido pela leitora. O conceito de verdade fica no plano existencial; é algo que precisa ser experimentado por quem assim o define. Em Noite e Neblina de Resnais ocorre algo similar pela inclusão do testemunho de Cayrol sobre o campo de concentração.
            No conto A Quinta História, as baratas agonizantes morrem em movimento. Em Noite e Neblina, os prisioneiros doentes “morrem de olhos abertos” (CAYROL, 1946) nas enfermarias do campo de concentração, sinal de nada fora feito para amenizar suas dores. Em A Quinta História, as vozes das baratas agonizantes comparecem entrecortadas pelos efeitos do veneno algoz. Em Noite e Neblina, a voz da testemunha se ergue soberana às imagens de dois tempos antitéticos: o do horror do genocídio e o da filmagem que tem por cenário os campos de concentração inativos.
            Conclui-se que o projeto filosófico de Walter Benjamin – que pretende que a voz dos vencidos se coloque como antítese às teses das classes dominantes – foi contemplado tanto por Lispector como por Resnais.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Ana Luísa. Insetos. A modernidade de uma linguagem em ruínas: contra-arquiteturas. In: Ruinologias. Editora da UFSC. 2016.

BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAYROL, Jean. Texto do poeta Jean Cayrol, para o filme de Alain Resnais, com tradução do poeta Juan Hernandez. Disponível em: http://cinemaholocausto.wordpress.com/tag/jean-cayrol

LISPECTOR, Clarice. A Quinta História. In Felicidade Clandestina, Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Disponível em https://nesgadeterra.blogspot.com.br/2013/12/a-quinta-historia-clarice-lispector.html

MARCONATTO, Arildo Luiz. Gotfried Leibniz. Disponível em http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=76

OSMO, Alan. Análise: “Noite e Neblina”. Disponível desde 10/09/2012, em http://www.forum18.com.br/analise-noite-e-neblina/

RESNAIS, Alain. Noite e Neblina. 1955. Disponível em http://www.veoh.com/watch/v6446064d3pmtMhM

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