Os
narradores em A Quinta História e Noite e Neblina foi escrito como atividade acadêmica. Na disciplina Literatura e Cinema, cursada no segundo semestre de 2017 (CCE,UFSC), a professora Ana Luísa Andrade propôs que a escrita de um ensaio sobre o tema da disciplina, considerasse alguns aspectos trabalhados durante o semestre.
Ao
pensar um possível diálogo entre o conto a Quinta-História
de Clarice Lispector e o filme Noite e Neblina de Resnais, considerou-se
que as duas produções ocorreram no período consecutivo à Segunda Guerra do século XX, e que a contemporaneidade da
construção narrativa de ambas é útil para ilustrar a abordagem benjaminiana
sobre o narrador:
A experiência
que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E,
entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das
histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes,
existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do
narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois [:]
alguém que vem de longe [e] o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair
do seu país e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1987).
Frequentemente,
as narrativas ocidentais se distanciam das histórias orais e constituem um
aparato hegemônico cujo proselitismo se sustenta, ao longo da História – canonizada
pelo poder dos impérios. Padre Antonio Vieira nomeou os impérios: Assírio,
Persa, Grego, Romano, e, sob a égide da crença milenarista, pleiteou, no Sermão do Esposo da Mãe de Deus, que o
quinto império seria o de Portugal. Em Mensagem,
Fernando Pessoa retoma o sebastianismo português no poema O Quinto Império (1934). Em A
Quinta-História de Clarice Lispector – desde seu título – percebe-se a denúncia
às narrativas fundamentalistas (tais como a referente ao quinto império).
Publicado
em Felicidade Clandestina, em 1971,
mas referente ao universo que trata dos anos 1950-1960, o conto A Quinta História propõe cinco versões
narrativas dos seguintes fatos: “queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a
queixa. Deu-me a receita de como matá-las. [...] Assim fiz. Morreram.”.
O
conto apresenta cinco diferentes maneiras de narrar como se deu a aprendizagem
do preparo e da aplicação de um veneno infalível na eliminação de baratas. Os
títulos das versões que a narradora considera “verdadeiras” são: “Como Matar
Baratas”, “O Assassinato” e “As Estátuas”.
“Como
Matar Baratas” permanece no nível discursivo do senso comum, é informativo,
factual, denotativo e informal. Traz a receita: “Que misturasse em partes
iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso
esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram.”.
A
segunda história do conto narra “O Assassinato”: “Como para baratas espertas
como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia formar parte da
natureza.”. Conforme a teoria darwinista
da evolução, constata-se a vitória do mais forte sobre o mais fraco: “Já era de
madrugada. [...] No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a
noite eu matara. Em nosso nome amanhecia.” A expressão “nosso nome” sinaliza
que a dona de casa representa uma classe social ou uma raça. E a palavra
“amanhecia” adquire uma conotação positivista ou de construção do progresso.
Na
terceira história (“As Estátuas”), a narradora descreve as baratas mortas pela
evocação da imagem do desaparecimento da antiga cidade romana de Pompeia,
devido à erupção do vulcão Vesúvio: “Sou a primeira testemunha do alvorecer em
Pompéia”. (LISPECTOR, 1998).
A
história da profana Pompeia que desaparecera pelo fogo preservou-se por meio da
narrativa oral, mas foi tida por mito durante quinze séculos, até obter comprovação
material, em 1748, quando foram feitas escavações no local. Os corpos dos
antigos habitantes foram encontrados como estátuas que reproduziam a ação feita
no momento da catástrofe. De maneira similar, Lispector narra a morte das
baratas por envenenamento:
A terceira
história que ora se inicia é a das “Estátuas”. [...] E na escuridão da aurora,
um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras:
dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de
dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que
não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca.
(LISPECTOR, 1998).
“As
Estátuas” remete a um universo das verdades que não bastam ser narradas, mas
demandam comprovações materiais. No texto, essa materialidade se dá pela
atribuição de comportamentos e sentimentos humanos às baratas:
Em algumas o
gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com
movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias
da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em
espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras –
subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição
de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assim
como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em
vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja
de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não
ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais
para dentro de...” (LISPECTOR, 1998).
A
remissão aos cadáveres das baratas como
estátuas é “figura chave para a alegoria, pois cria,
através do seu espectro materializado, o espaço do imaginário que sonha com a
vida.” (ANDRADE, 2016).
A
quarta história menciona as sensações da narradora e o pressentimento de que
novas baratas surgiriam:
A quarta
narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas.
Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho
para os canos, por onde essa mesma noite renovar-se-á uma população lenta e
viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal como
quem já não dorme sem a avidez de um rito? (LISPECTOR, 1998).
Na
quarta história, a narradora reflete sobre “o vício de viver” que rebenta seu
“molde interno” perante a escolha entre sobreviver ou salvar a sua alma:
Estremeci de mau
prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do
gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero
instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e
certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou a minha alma. (LISPECTOR,
1998).
A
escolha redunda em passar a ostentar “secretamente no coração uma placa de virtude:
Esta casa foi dedetizada” (LISPECTOR, 1998).
A placa, “Esta casa foi dedetizada”, [é] como
um prêmio de virtude, uma cena alegórica da limpeza étnica nazista” (ANDRADE,
2016). A menção ao genocídio coloca a narrativa de
Lispector em estado de diálogo com o filme Noite
e Neblina (Resnais, 1955).
Segundo
Osmo (2012), o filme foi encomendado a Alain Resnais pelo Comitê Histórico da Segunda Guerra Mundial. O diretor só aceitou quando
Jean Cayrol – um sobrevivente do campo de concentração de Mauthausen que escrevera,
em 1946, o livro Poèmes de la nuit et
brouillard – se propôs a colaborar para o projeto. A trilha sonora foi
feita por Hanns Eisler, um judeu alemão que fugira da Alemanha em 1933.
Noite e Neblina
não se propõe a explicar o genocídio, mas seria um esforço de análise e
compreensão do que ocorreu.
O
filme alterna imagens coloridas com imagens em preto e branco. As coloridas datam
de dez anos após o genocídio, em que são exibidos (sem identificação) diferentes
campos de concentração. Elas contrastam com as imagens em preto e branco, que
consistem em fotos e filmes, retirados de arquivos, relativos ao período em que
o horror nazista estava sendo perpetrado.
Uma
narrativa discursiva e poética, acompanha as duas diferentes narrativas
imagéticas, e inicia como segue:
Inclusive
uma paisagem tranquila.
Inclusive
uma pradaria com voo de corvos, com colheitas e com fogos de ervas.
Inclusive
uma estrada por onde passam carros, camponeses, parelhas.
Inclusive
um povo de veraneio, com uma feira e um campanário, pode conduzir simplesmente
a um campo de concentração.
Struhhof,
Oranienburg, Auschwitz, Neuengamme, Belsen, Ravensbruck, Dachau foram nomes
como os outros sobre os mapas e os guias. (CAYROL, 1946).
As cenas de Noite e
Neblina são todas chocantes, posto que referentes ao abominável como a
imagem dos diversos fornos, todos vazios e limpos como se fossem um produto
fora de moda. “O crematório não é mais usado. As astúcias nazis já passaram de
moda. Nove milhões de mortos espreitam esta paisagem.” (CAYROL, 1946).
Outros destaques vão para as cenas em que são mostrados
monte de objetos iguais e montes de corpos humanos mortos. São imagens que ecoam
no alerta de Cayrol sobre a responsabilidade histórica de todas as nações:
E
estamos nós que olhamos sinceramente estas ruínas como se o velho monstro concentracionário
estivesse morto sob os escombros; nós que fingimos recuperar a esperança diante
desta imagem que se afasta, como se nos sanássemos da peste concentracionária;
nós que fingimos acreditar que tudo isso pertence a um só tempo e a uma só nação,
e que não pensamos em olhar à nossa volta e que não ouvimos que se grita
interminavelmente.” (CAYROL, 1946).
Passados setenta e um anos de quando foram proferidas, as
palavras supra alertam para questões presentes. Tais como: as massas de
excluídos de sua própria pátria por pobreza ou guerra, a separação entre os que
conseguirão trabalhar sob regime de escravidão (ainda que voluntária) e os que
permanecerão abaixo da linha da pobreza, a alienação do indivíduo frente o
problema do outro, a formação de falsas redes que giram em torno de si mesmas,
o fim do dialogismo.
A Quinta História
é um laboratório do processo narrativo em que uma única narradora se abre ao
projeto de construção da alteridade a partir do “senso prático [que] é uma das
características de muitos narradores natos.” (BENJAMIN, 1987). As diferentes
narrativas do conto a Quinta História
resultam dos esforços da vivência do papel de narradora nata que se modifica ao
experimentar o contido nas próprias narrativas.
A
narradora conta “três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a
outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (LISPECTOR,
1998). Tal qual Sherazade, pretende sobreviver pela manutenção da tradição
oral. As repetições ao longo dos diferentes momentos narrativos tentam construir
tal tradição. A identidade da voz que narra determina o convencimento sobre a
verdade do que é narrado. Lispector não dá pronta essa identidade. Apenas
constrói pistas de identificações em cada um dos segmentos narrativos do conto.
A
quarta narrativa (“Esta casa foi dedetizada”), assim como a quinta (“Leibniz e
a Transcendência do Amor na Polinésia”) não são reconhecidas como literalmente verdadeiras pela narradora,
à revelia de referirem, metaforicamente, a fatos históricos.
“Esta
casa foi dedetizada” dialoga com o filme Noite
e Neblina que, em relação ao projeto de higienização relata as ameaças: Um piolho é a sua morte e Limpeza é saúde. Os ambulatórios
médicos dos campos de concentração realizavam pesquisas com humanos que incluíam mutilações e envenenamentos, ao
invés de prestar atendimento aos mais frágeis. A sopa era servida somente aos
aptos ao trabalho.
Em
“Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia” há várias chaves de leitura
sobrepostas. Leibniz (1646 - 1716)
foi filósofo, mas também diplomata alemão. Daí considerar como primeira chave a
do olhar estrangeiro sobre os fatos narrados. Como filósofo, Leibniz tentou
encontrar o princípio que rege a ordem da existência das verdades de fato. Essa
tentativa também comparece na busca da narradora de A Quinta História. Como germânico, Leibniz remete à imagem de povo alemão que, no século XIX, foi
associada ao Romantismo (em seus temas de amor, morte, idealismo), mas, no
século XX, ao nazismo. A menção à Transcendência
do amor remete ao amor que as baratas foram impedidas de declarar ao serem
envenenadas. A Polinésia é um
conjunto de ilhas no Sul do Oceano Pacífico. Muitas delas são colônias dos
Estados Unidos – protagonista tanto da destruição nuclear de Hiroshima e
Nagasaki, como do contexto mundial da Guerra
Fria. Essa comparece sob a metáfora da
noite, presente no título do filme
que por sua vez fora inspirado no livro de Cayrol: Poèmes de la nuit et brouillard. A noite ou cenário da destruição
planejada por algozes vitoriosos contra a inocência das vítimas ou das baratas: “Mas se elas, como os males
secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite.” (LISPECTOR, 1998).
O
final do conto mantém a abertura para um novo recomeço a ser tecido pela
leitora. O conceito de verdade fica no plano existencial; é algo que precisa
ser experimentado por quem assim o define. Em Noite e Neblina de Resnais ocorre algo similar pela inclusão do testemunho
de Cayrol sobre o campo de concentração.
No conto A Quinta História, as baratas agonizantes morrem em movimento.
Em Noite e Neblina, os prisioneiros
doentes “morrem de olhos abertos” (CAYROL, 1946) nas enfermarias do campo de
concentração, sinal de nada fora feito para amenizar suas dores. Em A Quinta
História, as vozes das baratas agonizantes comparecem entrecortadas pelos efeitos
do veneno algoz. Em Noite e Neblina, a
voz da testemunha se ergue soberana às imagens de dois tempos antitéticos: o do
horror do genocídio e o da filmagem que tem por cenário os campos de
concentração inativos.
Conclui-se que o projeto filosófico
de Walter Benjamin – que pretende que a voz dos vencidos se coloque como
antítese às teses das classes dominantes – foi contemplado tanto por Lispector
como por Resnais.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Ana Luísa. Insetos. A modernidade de
uma linguagem em ruínas: contra-arquiteturas. In: Ruinologias. Editora da UFSC.
2016.
BENJAMIN,
Walter. O Narrador. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São
Paulo: Brasiliense, 1987.
CAYROL,
Jean. Texto do poeta Jean Cayrol, para o filme de Alain Resnais, com tradução
do poeta Juan Hernandez. Disponível em: http://cinemaholocausto.wordpress.com/tag/jean-cayrol
LISPECTOR,
Clarice. A Quinta História. In Felicidade Clandestina, Rio de Janeiro: Rocco,
1998. Disponível em https://nesgadeterra.blogspot.com.br/2013/12/a-quinta-historia-clarice-lispector.html
MARCONATTO,
Arildo Luiz. Gotfried Leibniz. Disponível em
http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=76
OSMO,
Alan. Análise: “Noite e Neblina”. Disponível desde 10/09/2012, em http://www.forum18.com.br/analise-noite-e-neblina/
Muito bom, parabéns!!!
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