terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A Escrita Criativa e o Ato de Observar o Outro. Edna Domenica Merola.

A compreensão do texto O Exercício contido no Exercício demanda a leitura prévia dos textos que poderão ser lidos nos adendos desta postagem ou pelos links:
1- POE, Edgar Allan. O Homem na multidão. 


O Exercício Contido no Exercício
                                                Edna Domenica Merola

Após as aulas de Teoria Literária com o Professor Anderson Costa (CCE, UFSC, segundo semestre de 2017), tive a ideia de incentivar outras pessoas a me acompanharem num exercício que extraí de O Homem da Multidão (1), de Edgar Allan Poe. O narrador se propõe a contar o que observara, numa tarde de outono, em que sentara perto da janela de um café londrino. Começa, no entanto, por descrever o próprio estado de espírito. O narrador se recuperara de uma enfermidade e recobrara suas forças, de maneira a sentir que sua visão mental estava bem aguçada. É nesse estado que descreve, com maestria, vários transeuntes de Londres do século XIX.
– Hoje, todos são repórteres de si mesmos! Observar o outro, no próprio entorno, tornou-se uma operação existencial altamente complexa. – pensei em tom profético.
Lembrei-me, então, de amigos moradores de diferentes cidades a quem poderia enviar o convite para participar de tal exercício. Notei que minha memória elegera os nomes daqueles que se dedicam a ajudar o próximo e que cultivam o hábito ou o gosto pela escrita, a exemplo de Oleni de Oliveira Lobo e Marlene Xavier Nobre.
Feitos os convites, aguardei. Recebidos os textos, fiz uma primeira leitura e me propus algumas indagações para a próxima: 
 – Qual o estado de espírito da narradora? 
– A história de vida da autora me revela que ela viveu algo semelhante ao representado no texto?
– A narradora apontou, para o leitor, o local de onde está observando o entorno? Usou um só ângulo ou o alterou durante a narrativa?
O primeiro texto que vou comentar é de autoria de Oleni Lobo. 
– O estado de espírito da narradora é de proatividade. Transmite alento e força ao leitor.
– A história de vida da autora me revela que ela é voluntária na ala infantil de hospital. A narradora é uma observadora que interage com os fatos relatados. Entra no mundo do faz de conta infantil que dá suporte ao enfrentamento da dura realidade da criança interna num hospital.
– A narradora aponta como local de observação “um espaço em um hospital, no qual compartilha momentos assustadores com um companheiro ao lado. Limitados a uma ala, um quarto com entra e sai de pessoas que trazem líquidos com sabores não agradáveis, agulhas que provocam dores.”
– A narradora usou dois ângulos durante a narrativa: o de integrante de trabalho voluntário em ala de internação infantil e o de paciente.
Como voluntária: “A empatia fez com que os adultos percebessem como este mundo é assustador e recheado de receio e medo. Mamães são preparadas para que seu filho possa aproveitar da melhor forma este momento. Paredes coloridas, brinquedoteca contadores de história tanto para as crianças quanto para as mamães.”
Como paciente é a personagem Senhora Unicórnio que encontra, na sala de espera do hospital, um garoto que lhe diz: “tiraram seu chifre da testa, mas deixa passar a mão pra fazer um pedido, porque chifre de unicórnio ainda tem a força mesmo quando tiram... deixa, deixa Senhora Unicórnio?”.
O segundo texto a comentar é de autoria de Marlene Xavier Nobre. 
A narradora do texto “Uma grande Viagem” apontou para o leitor o local de onde observava o entorno: um banco de jardim em frente a uma igreja, de onde olhava (sem desdém) para as pessoas. A narradora descreve como se dá uma experiência de observação que vai do normal até o paranormal. 
A princípio, agia “como uma caçadora de borboletas, procurando gente”, ou seja, assumia uma atitude "classificatória" (ou imparcial) perante as pessoas observadas. Em seguida, passa a perceber que cada pessoa carrega uma história diferente e experimenta “uma fissura de olhar cada pessoa bem vestida ou maltrapilha.” 
Na sequência, abandona totalmente o projeto de ser imparcial e entra num estado especial de observação que chama de “uma grande viagem”. No final, revela ter tido uma premonição sobre um dos transeuntes desconhecidos que irá se casar com a filha da dona da casa vizinha. 

(1)   O Homem da Multidão. Edgar Allan Poe. Tradução: Dorothée de Bruchard

Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul. — LA BRUYERE

Foi muito bem dito, a respeito de um certo livro alemão, que “er lasst sich nicht lesen” — ele não se deixa ler. Há certos segredos que não se deixam contar. Homens morrem toda noite em suas camas, torcendo as mãos de fantasmagóricos confessores e fitando-os lamentosamente nos olhos — morrem com desespero no coração e convulsões na garganta, por causa do horror de mistérios que não aceitam ser revelados. Infelizmente, a consciência humana às vezes carrega tão pesado fardo de pavor que só no túmulo consegue desembaraçar-se dele. E assim a essência de todo crime permanece irrevelada.
Não faz muito tempo, pelo final de uma tarde de outono, sentei junto à ampla janela abaulada do café D..., em Londres. Eu tinha estado doente durante alguns meses, mas estava agora convalescendo e, recobrando minhas forças, me encontrava num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o contrário do ennui — estados de espírito de aguçadíssima apetência, quando se abre o véu que encobre a visão mental — o aklus eh prin ephen — e o intelecto, eletrizado, ultrapassa tanto sua condição ordinária quanto a ardente, ainda que ingênua, razão de Leibniz ultrapassa a louca e flácida retórica de Gorgias. O simples fato de respirar era um deleite; e eu extraía um prazer positivo até mesmo de muitas genuínas fontes de dor. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto na boca e um jornal nas mãos, eu tinha me divertido a maior parte da tarde, ora percorrendo anúncios, ora observando o grupo heterogêneo do salão, ora sondando a rua através dos vidros enfumaçados.
A rua em questão é uma das principais artérias da cidade, e tinha estado apinhada de gente o dia inteiro. Mas à medida que escurecia, a massa ia aumentando; e, quando os lampiões já estavam todos acesos, dois fluxos densos e contínuos de gente corriam diante da porta. Eu nunca estivera antes em situação parecida naquele momento específico da noite, e o mar tumultuoso de cabeças humanas me enchia, portanto, com uma emoção deliciosamente nova. Renunciei, afinal, a todo interesse pelas coisas de dentro do hotel e fiquei absorto na contemplação da cena lá fora.
A princípio minhas observações tomaram um rumo abstrato e generalizante. Olhava para os transeuntes em massa, e considerava-os em suas relações coletivas. Logo, no entanto, passei para os detalhes, e examinava com minucioso interesse as inúmeras variedades de figura, vestuário, jeito, andar, rosto e expressões fisionômicas.
A grande maioria dos que passavam tinha uma atitude satisfeita e eficiente, e parecia só pensar em abrir caminho na torrente. Tinham as sobrancelhas franzidas e moviam os olhos com rapidez; quando esbarrados por outros passantes, não expressavam nenhum sinal de impaciência, apenas ajeitavam a roupa e seguiam se apressando. Outros, de uma classe também numerosa, tinham movimentos agitados, o rosto vermelho e falavam e gesticulavam sozinhos, como que se sentindo solitários exatamente por causa da densidade do agrupamento à sua volta. Quando impedidas de prosseguir, estas pessoas paravam repentinamente de murmurejar, mas redobravam suas mímicas e esperavam, com um sorriso ausente e exagerado nos lábios, que passassem aqueles que os interrompiam. Se empurradas, saudavam profundamente os empurradores, e pareciam tomadas de embaraço. — Não havia nada de muito distintivo entre estas duas grandes classes além daquilo que observei. Seu vestuário pertencia àquele estilo significativamente denominado decente. Eram indiscutivelmente fidalgos, negociantes, advogados, comerciantes, agiotas — os eupátridas e o comum da sociedade — homens de lazer e homens ativamente envolvidos em seus próprios negócios — conduzindo empreendimentos por responsabilidade própria. Não estimulavam muito a minha atenção.
A casta dos funcionários saltava aos olhos; e nela identifiquei duas categorias dignas de reparo. Havia os pequenos funcionários de estabelecimentos chiques — jovens cavalheiros com casacos apertados, botas brilhantes, cabelos engomados e lábios insolentes. Não fosse uma certa distinção de porte, que pode ser chamada de escritorismo, na falta de palavra melhor, o comportamento destas pessoas parecia ser uma reprodução exata do que havia sido o perfeito bon ton uns doze ou dezoito meses antes. Usavam o refugo dos encantos da elite — e isto abrange, me parece, a melhor definição desta classe.
A categoria dos altos funcionários de firmas sérias, ou dos “senhores estáveis”, não havia como confundir. Eram reconhecíveis por seus casacos e calças em preto ou marrom, feitos para sentar confortavelmente, gravatas e coletes brancos, amplos sapatos de aparência sólida, e grossas meias ou polainas. Eram todos levemente calvos e a ponta de suas orelhas direitas tinha adquirido, pelo longo hábito de suster uma pena, um desvio esquisito. Observei que sempre tiravam ou ajeitavam o chapéu com ambas as mãos, e usavam relógios com curtas correntes de ouro de um modelo durável e antigo. Sua afetação era a respeitabilidade — se é que possa haver tão honesta afetação.
Havia muitos indivíduos de garbosa aparência, que facilmente identifiquei como pertencendo à espécie dos batedores de carteira requintados, de que todas as grandes cidades estão infestadas. Olhava com grande curiosidade para esta fina-flor, e achava difícil imaginar como chegavam a ser confundidos com cavalheiros pelos próprios cavalheiros. O tamanho exagerado de seus punhos de camisa e um ar de franqueza excessiva deveriam traí-los imediatamente.
Os jogadores, não poucos dos quais identifiquei, eram ainda mais facilmente reconhecíveis. Usavam todo tipo de traje, do cafetão de indumentária infame, com colete de veludo, lenço extravagante no pescoço, correntes douradas e botões filigranados, até o do clérigo cuidadosamente despojado, menos que tudo passível de suspeita. Ainda assim, todos se distinguiam por uma morenice crestada da pele, um escurecimento velado dos olhos, e pela compressão e palidez dos lábios. Havia mais dois traços, além destes, pelos quais eu sempre conseguia identificá-los: um tom de voz discreto ao conversar, e uma propensão incomum do polegar de abrir-se em ângulo reto com os outros dedos. Notei muitas vezes, em companhia destes patifes, um tipo de homens um tanto diferentes na aparência, mas ainda assim farinha do mesmo saco. Podem ser definidos como cavalheiros que vivem da sua esperteza. Parecem assaltar o público em duas frentes — a dos dândis e a dos militares. Da primeira categoria os traços principais são cabelos longos e sorrisos; da segunda, casacos alamarados e sobrancelhas franzidas.
Descendo na escala da chamada elite, encontrei temas mais sombrios e mais profundos para especulação. Vi camelôs judeus, com olhos de lince faiscando em rostos de que todas as outras feições expressavam apenas abjeta humildade; robustos mendigos profissionais fazendo cara feia para pedintes de melhor aparência, a quem somente o desespero tinha jogado na noite a pedir caridade; inválidos débeis e cadavéricos, sobre os quais a morte pusera uma mão firme, e que mancavam e titubeavam em meio à multidão, encarando a todos com um olhar suplicante, como que em busca de alguma consolação fortuita, alguma esperança perdida; garotas modestas vindo de uma lida longa e tardia para um lar infeliz, e retraindo-se mais por aflição do que indignação diante do olhar de bandidos com os quais sequer o contato direto podia ser evitado; mulheres da vida de todo tipo e toda idade — a inequívoca beldade no primor de sua feminilidade, lembrando a estátua em Luciano, com sua superfície de mármore de Paros e seu interior recheado de lixo — a nojenta e absolutamente decaída leprosa em andrajos — a bruxa enrugada, coberta de bijuterias e encoberta pela maquiagem, fazendo um derradeiro esforço de juventude — a mera criança de formas imaturas, mas já iniciada, por longa convivência, nos terríveis dengos do seu comércio, e ardendo na voraz ambição de se igualar ao nível de suas veteranas no vício; incontáveis e indescritíveis bêbados — alguns deles em farrapos e remendos, cambaleantes, desarticulados, com rostos machucados e olhos mortiços — outros com roupas intactas porém imundas, uma fanfarronice ligeiramente vacilante, lábios grossos e sensuais, caras rechonchudas e de aparência cordial — outros vestidos com tecidos que tinham sido bons um dia, e que mesmo agora estavam escrupulosamente escovados — homens que andavam com um passo mais firme e flexível do que o natural, mas cujos rostos eram assustadoramente pálidos, cujos olhos eram pavorosamente vermelhos e desvairados, e que agarravam com dedos trêmulos, ao transitar a passos largos pela multidão, todo objeto que estivesse a seu alcance; além disto, doceiros, mensageiros, carregadores de carvão, limpadores de chaminé; tocadores de realejo, exibidores de macacos, mercadores de canções, os que vendiam com os que cantavam; artesãos maltrapilhos e trabalhadores exaustos de toda espécie, e todos cheios de uma ruidosa e desordenada animação que rangia destoante nos ouvidos e trazia aos olhos uma sensação dolorosa.
À medida que a noite avançava, avançava em mim o interesse pela cena; pois não só ia se alterando materialmente o caráter geral da multidão (suas feições mais amenas iam sumindo com a retirada gradativa da porção mais disciplinada das pessoas e as mais grosseiras surgindo em mais acentuado relevo, à medida que a hora adiantada trazia toda espécie de infâmia para fora da toca), como também os reflexos dos lampiões de gás, antes enfraquecidos em sua disputa com o dia esvanecente, tinham agora enfim alcançado a supremacia e derramavam sobre todas as coisas uma luminosidade ofuscante e cambiante. Tudo era esplêndido, ainda que negro — como o ébano a que foi comparado o estilo de Tertuliano.
Os efeitos fantásticos da luz me obrigavam a um exame individual de cada rosto; e ainda que a rapidez  com que o mundo de luz borboleteava diante da janela me impedisse de lançar mais do que um olhar em cada semblante, mesmo assim parecia que, no peculiar estado de espírito em  que me encontrava, eu muitas vezes conseguia ler, até neste breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa na vidraça, estava deste modo ocupado em perscrutar a massa, quando de repente apareceu um rosto (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco, setenta anos de idade) — um rosto que imediatamente chamou e absorveu toda a minha atenção, por causa da absoluta idiossincrasia de sua expressão. Eu nunca tinha visto nada nem de longe parecido com esta expressão. Lembro bem que a primeira coisa em que pensei, ao avistá-la, foi que Retzch, se a houvesse contemplado, a teria muitíssimo preferido às suas próprias incarnações pictóricas do demônio. Como eu tentasse, durante o breve instante de meu inusitado estudo, formar uma análise daquilo que ela me transmitia, em minha mente despontavam, confusa e paradoxalmente, as imagens de imensa capacidade mental, cautela, indigência, avareza, frieza, maldade, sede sanguinária, triunfo, alegria, terror excessivo, intenso — supremo desespero. Me senti estranhamente desperto, maravilhado, fascinado. “Que história fantástica ”, pensei comigo mesmo, “não estará escrita neste peito!” Me veio então um ardente desejo de não perder o homem de vista — de saber mais sobre ele. Vestindo precipitadamente um sobretudo e apanhando meu chapéu e minha bengala, me dirigi para a rua e abri caminho pela multidão na direção que eu o vira tomar; pois ele já tinha sumido. Com alguma dificuldade finalmente o avistei, me aproximei e o segui de perto, mas cautelosamente, de modo a não chamar sua atenção.
Eu tinha agora uma boa oportunidade de examinar a sua pessoa. Era de baixa estatura, muito magro e aparentemente muito frágil. Suas roupas estavam, no geral, imundas e rasgadas; mas passando ele de vez em quando pelo brilho forte de uma lâmpada, percebi que sua roupa branca, ainda que suja, era de boa qualidade; e, se meus olhos não me enganaram, entrevi, por um rasgão do roquelaure* cuidadosamente abotoado e obviamente de segunda mão que o envolvia, um diamante e um punhal. Estas observações exaltaram minha curiosidade e resolvi seguir o desconhecido aonde quer que ele fosse.
Era agora noite escura, e uma espessa névoa úmida pairava sobre a cidade, logo desaguando numa chuva densa e pesada. Esta mudança de tempo teve um estranho efeito sobre a multidão, que se abalou toda em novo tumulto e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A ondulação, o empurra-empurra e o burburinho ficaram dez vezes maiores. De minha parte, eu não me importava muito com a chuva — o resquício de uma febre antiga em meu metabolismo dava à umidade um quê de perigosamente agradável. Atando um lenço na boca, continuei firme. Durante meia hora o velho seguiu seu caminho com dificuldade pela grande artéria, e eu ali andava bem perto dele por medo de perdê-lo de vista. Não tendo uma vez sequer se voltado e olhado para trás, ele não me notou. Em seguida tomou uma rua transversal, a qual, ainda que cheia de gente, não estava tão apinhada como a principal de que tinha saído. Ali tornou-se evidente uma mudança na sua atitude. Ele andava mais devagar e com menos determinação do que antes — mais hesitantemente. Atravessou e reatravessou a rua repetidas vezes, sem objetivo aparente; e a massa ainda era tão densa que, a cada um daqueles movimentos, eu era obrigado a segui-lo de perto. Era uma rua estreita e comprida, e ele a percorreu por quase uma hora, durante a qual o número dos transeuntes foi se reduzindo àquele comumente visto à noite na Broadway perto do parque — tão imensa é a diferença entre uma multidão londrina e a da mais populosa cidade americana. Uma segunda mudança de direção nos trouxe a uma praça esplendidamente iluminada e transbordante de vida. O antigo jeito do desconhecido reapareceu. Seu queixo caiu sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam desvairadamente por baixo das sobrancelhas franzidas, para todo lado, para os que o cercavam. Ele apressou seu passo firme e obstinadamente. Contudo, fiquei surpreso ao perceber que, depois de ter contornado a praça, ele se virava e retornava sobre seus próprios passos. Ainda mais atônito fiquei ao vê-lo repetir a mesma caminhada várias vezes — quase me descobrindo uma vez em que deu a volta num movimento súbito.
Neste exercício ele gastou mais de uma hora, ao fim da qual éramos muito menos perturbados pelos transeuntes do que no princípio. A chuva caía com força; o ar esfriava; e as pessoas estavam voltando para casa. Com um gesto impaciente, o andarilho entrou numa rua secundária comparativamente deserta. Ao longo dela, por cerca de um quarto de milha, correu com uma presteza que eu nunca teria imaginado em alguém daquela idade, e que tive bastante dificuldade em acompanhar. Em poucos minutos chegamos a um vasto e tumultuado bazar, com cujos locais o desconhecido parecia bem familiarizado, e onde sua atitude inicial fez-se notar novamente enquanto ele abria caminho para lá e para cá, sem objetivo, por entre o bando de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, ou cerca disto, que passamos neste lugar, foi preciso muito cuidado de minha parte para mantê-lo ao meu alcance sem chamar sua atenção. Por sorte, eu usava um par de galochas de borracha, e podia ir e vir em perfeito silêncio. Em momento algum ele percebeu que eu o observava. Entrava numa loja atrás da outra, não perguntava o preço de nada, não dizia uma palavra, e mirava todos os objetos com um olhar ausente e desvairado. Eu estava a estas alturas totalmente espantado com sua conduta, e decidi firmemente não me separar dele até que tivesse de alguma forma satisfeito minha curiosidade a seu respeito.
Um sonoro relógio bateu onze horas e os freqüentadores deixavam rapidamente o bazar. Um lojista, ao fechar uma persiana, esbarrou no velho, e vi um violento arrepio instantaneamente percorrer todo o seu corpo. Ele se precipitou para a rua, olhou ansiosamente ao seu redor por um momento, e saiu correndo com uma rapidez incrível por várias ruazinhas tortuosas e desertas até que alcançamos novamente a grande artéria de onde tínhamos partido — a rua do Hotel D.... Ela, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Ainda brilhava sob o gás; mas a chuva caía furiosamente, e só se avistavam poucas pessoas. O desconhecido ficou pálido. Deu alguns passos mal-humorados no que fora uma avenida populosa e então, com um profundo suspiro, tomou a direção do rio e, mergulhando em inúmeros desvios, foi parar, afinal, diante de um dos principais teatros. Este estava para fechar, e o público formigava pelas portas. Vi o velho como que sufocar enquanto se jogava em meio à multidão; mas achei que a agonia intensa de sua fisionomia tinha, de certa forma, diminuído. Sua cabeça caiu novamente sobre seu peito; ele se mostrava tal qual eu o tinha visto no princípio. Notei que ele agora se dirigia para onde se fora a maior parte do público — mas, no geral, não compreendia absolutamente a indocilidade de suas ações.
Enquanto ele avançava, as pessoas iam rareando, e seu velho mal-estar e vacilação ressurgiram. Durante algum tempo ele seguiu de perto um grupo de uns dez ou doze arruaceiros; mas deste número um por um foi sumindo, até que apenas três permaneceram juntos, numa travessa estreita e sombria, pouco freqüentada. O desconhecido deteve-se e, por um momento, pareceu perdido em reflexões; então, evidentemente perturbado, tomou rapidamente um caminho que nos trouxe ao extremo da cidade, por zonas bem diferentes daquelas que tínhamos atravessado até então. Era o mais repulsivo bairro de Londres, onde cada coisa é revestida da pior marca da mais deplorável pobreza e do crime mais desesperado. À luz de um eventual lampião viam-se casas de madeira altas, antigas, titubeantes e atacadas por cupins, em tantas e tão caprichosas direções que mal se percebia entre elas algo parecido com uma passagem. Os paralelepípedos jaziam a esmo, arrancados de seus lugares pela grama crescendo solta. Uma imundície horrível apodrecia nas sarjetas entupidas. A atmosfera toda era repleta de desolação. No entanto, enquanto avançávamos, os ruídos da vida humana ressurgiam clara e gradualmente, e afinal avistamos grandes bandos dos maiores marginalizados de um populacho londrino, cambaleando daqui e dali. O ânimo do velho tremulou novamente, como uma lamparina prestes a expirar. Ele mais uma vez saiu andando a passos largos e elásticos. De repente, dobrou-se uma esquina, um clarão de luz nos explodiu nos olhos, e nos deparamos com um dos imensos templos suburbanos da Intemperância — um dos palácios do demônio, o Gin.
Já quase amanhecia; mas inúmeros bêbados miseráveis ainda se espremiam dentro e fora da ostensiva entrada. Com um grito contido de alegria, o velho abriu passagem para dentro, reassumiu de imediato sua postura inicial e se pôs a circular para lá e para cá, sem desígnio aparente, em meio à massa. Ele, no entanto, não estivera há muito assim ocupado quando um movimento intenso rumo às portas indicou que o proprietário estava por cerrá-las. Foi algo ainda mais intenso que desespero que observei então na fisionomia deste ser singular que eu vinha espiando tão obstinadamente. Contudo, não hesitou em sua carreira e, com louca energia prontamente retornou sobre seus passos para o coração da imponente Londres. Correu rápida e longamente, enquanto eu o seguia com o mais desvairado espanto, decidido a não abandonar uma investigação pela qual sentia agora um interesse de todo absorvente. O sol nasceu enquanto avançávamos e, quando mais uma vez alcançamos o apinhadíssimo centro comercial da populosa cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava um ar de alvoroço e atividade humanas pouco menor do que o que eu tinha visto na noite anterior. E ali, por muito tempo, em meio à confusão que aumentava sem cessar, persisti em minha perseguição ao desconhecido. Mas ele, como sempre, andava para lá e para cá, e durante o dia não se afastou do turbilhão daquela rua. E, como se aproximassem as sombras da segunda noite, fui ficando mortalmente cansado e, parando bem em frente ao andarilho, o encarei resolutamente. Ele não reparou em mim, e retomou sua caminhada solene, enquanto eu, deixando de segui-lo, fiquei absorto em contemplação. “Este velho,” eu disse afinal, “é o modelo e o gênio do crime profundo. Ele se nega a ficar sozinho. Ele é o homem da multidão. Vai ser inútil segui-lo; pois não vou aprender mais nada, nem com ele, nem com seus atos. O pior coração do mundo é um livro mais repulsivo  do que o “Hortulus Animae”*, e talvez seja apenas uma das grandes misericórdias de Deus que “er lasst sich nicht lesen”.”

* O “Hortulus Animae cum Oratiunculis Aliquibus Superadditis” de Grüninger.

POE, Edgar A. O Homem da multidão. Tradução de Dorothée de Bruchard. Edição Bilíngüe. Porto Alegre: Paraula, 1993.


(2) Momentos desafiantes: um novo olhar.
                                               Oleni Oliveira Lobo

Um dos momentos mais imprevisíveis da vida e menos desejados na vida? Acredito que seja a falta de saúde, principalmente em crianças. Uma fase para aproveitar, experimentar ludicamente o que a vida tem a oferecer, correr, brincar, se jogar no chão, andar descalço, explorando tudo que tem a sua volta, tudo completamente inédito, seu olhar e desejo é conhecer o universo.
Algo novo surge: seu quarto trocado por um espaço em um hospital, no qual compartilha momentos assustadores com um companheiro ao lado. Limitados a uma ala, um quarto com entra e sai de pessoas que trazem líquidos com sabores não agradáveis, agulhas que provocam dores. Cadê a comidinha? Exames exigem muitas vezes três dias sem alimentos apenas soro.
Tudo tão assustador! Nada pode ser feito! Existe apenas este lado! Lembre-se “se Maomé não vai à montanha...”.
A empatia fez com que os adultos percebessem como este mundo é assustador e recheado de receio e medo. Mamães são preparadas para que seu filho possa aproveitar da melhor forma este momento. Paredes coloridas, brinquedoteca contadores de história tanto para as crianças quanto para as mamães.
Uma experiência em uma ala pediátrica com pacientes terminais, tudo isto existia, cenas que eles mesmos escolhiam, nunca falavam em morte e nem perguntavam sobre a criança que não voltava mais ao quarto.
Uma ocasião uma criança ficou fora por trinta dias para realizar exames sendo necessário o isolamento. Percebi que a menininha observava tudo com estranhamento, perguntava nossos nomes. Ao retornar ao quarto, ainda nos corredores da pediatria, as crianças ficaram olhando para a menina com curiosidade, e uma delas perguntou: “como é morrer?”. E a menininha respondeu “tudo lá é igual a aqui: a mamãe, o tio Pedro, tio Renato, nossa tia das brincadeiras... Tudo igual! Só que tem uma luz azul. Deus eu não vi, e procurei muito, mas eu ouvi um barulho da respiração dele e foi bom, deu alegria”. E as crianças continuaram perguntando. Pareciam jornalistas cobrindo uma notícia em primeira mão.
Emocionou a todos e descobrimos que aquilo que as assustava, as crianças deixavam pra lá e pensavam no hoje, no dia que tinham apetite para saborear o que gostavam, um dia sem picadas. Ah! As picadas daquela grande vilã a dona agulha?
Bem, a agulha foi transformada em um túnel para transportar os super-heróis e superpoderosas, iriam disfarçadamente entrar no corpo combater o dodói. As grandes frases ao receberem estes protetores: “tia este está usando laser, arde muito. Se eu chorar o dodói vai perceber?”.
Ao que dizíamos: “pode chorar daqui a pouco a guerra diminui.”.
Outros diziam: “espada forte até eu sentido cortar” “ sentido o dodói fugindo. Este homem aranha é bom mesmo”.
Uma conversa de uma criança preparando outra para cirurgia: “fica com medo não! (exibindo sua cicatriz), eles colocaram aqui dentro um chip que me avisa tudo, mas vou te avisar: eles vão tirar uma coisa de ti, fica sem chorar porque eles devolvem coisa melhor! Acredite: a sala é uma grande espaçonave e tem até gente da lua que te faz dormir aquele soninho como se fosse no colo da mamãe, por isto não dói. Não vou mentir: depois deste soninho dói. Aí vem um extraterrestre disfarçado e faz você dormir de novo. Eles são bons!”.
As crianças têm muito a nos ensinar a sentir o invisível, a acreditar em magia. Ao vestir uma fantasia da Frozen, do Batman, Minie, Capitão América, Unicórnio, eles se transformam nestes personagens, mesmo sabendo que é um faz de conta para tudo aliviar e amenizar.
Eu mesma passei por estes momentos mágicos. Fizera um procedimento em minha testa, quando encontrei com um garoto na sala de espera de uma consulta. A cicatriz recente estava bem visível. O menininho ficava olhando em minha direção sem desviar em nenhum momento seu olhar instigador. Dei um sorriso para ele o que o incentivou a vir falar comigo. Ele disse: “tiraram seu chifre da testa, mas deixa passar a mão pra fazer um pedido, porque chifre de unicórnio ainda tem a força mesmo quando tiram... deixa, deixa Senhora Unicórnio?”.
É claro que permiti. Então ele fechou os olhinhos e passou aquela mãozinha tão fofa! Baixinho, ele disse: “não posso contar o que pedi, mas tem um pra ti, Senhora Unicórnio. Vai ser bom! Hum! Que vontade de contar...”.
Mas o médico o chamou para consulta. Dei um beijo nele que saiu todo feliz. E eu? Fechei os olhos, coloquei minha mão em minha cicatriz... Ops, no local do meu antigo chifre de unicórnio! E fiz um grande pedido, algo muito bom para ti que está lendo este texto, eu pedi... Ah! Não vou contar. Afinal, se contar não acontece!


(3) Uma grande viagem
                            Marlene Nobre Xavier.

Numa tarde sombria e fria, me sentia um pouco vazia. Uma apatia me invadia. Estava cansada. Na maior agonia, assim me via. Após tomar um banho, saí para aliviar minhas dores. Fui passear em São José (SC).
Depois de alguns meses corroída, quase enlouquecida, precisava tomar um ar. Caminhava calmamente e observava cada ser que ao meu lado passava.
Resolvi entrar num bar, pensei em pedir algo para me esquentar (que não fosse aguardente!). Escolhi um licor. Estava consciente de que iria para algum lugar e conheceria todo aquele local.
Ali mesmo, pedi informação para o garçom. Queria saber um pouco mais daquela cidade. Foi quando me deparei com um jardim pequeno, mas bem cuidado.
Paguei a conta, agradeci pelo atendimento. Atravessei a rua e me sentei no banco do jardim em frente a uma igreja. Ali fiquei a observar (sem desdém).
Minha mente, naquele momento, fazia uma grande viagem. Não era sonho, nem ficção, era fato, era real que estava à frente dos meus olhos que por muitas vezes ficaram esbugalhados de tão assustados com o que via:
– Pessoas de todos os gostos e rostos.
Quantos seres ainda vivem na maior correria! Num sufoco do dia a dia.
Não fiz com mau propósito, mas não deixei ninguém escapar do meu olhar.
Sentia-me como uma caçadora de borboletas, procurando gente. Em cada pessoa via uma história. Vi gente de toda a espécie, de gostos e estilos diversos.
Altos, magros, gordos, rostos marcados pelo tempo e maltrato; jovens, idosos; gente bonita, elegante, bem vestidas, mal vestidas, maltrapilhos; apressados.
Era uma mistura de gente, e de tudo. Sentia uma fissura de olhar cada pessoa bem vestida ou maltrapilha.
Vi muita encenação e uma mistura de obsessão; pessoas divertidas, contidas, felizes ou tristes. Todas ali tinham um destino certo: iam para algum local definido.
Gente cansada, suada, pedintes, doentes, carentes, na correria do dia.
No meio da multidão, muita gente decente no meio de muita confusão.
Muitas eram assustadoras. Cada uma com a sua maneira de viver.
Todas me encheram os olhos que ficaram arregalados.
Ali fiquei por muitas horas. Algumas vezes cheguei a me compadecer com algumas delas. Tão marcadas pelo destino, muitos olhares perdidos, muitos desencontros e desencontrados. Sentia que faltava em algumas pessoas mais sorrisos, encantamentos, alegrias e cores. Nos rostos, olhares sem direção. Muita confusão, indecisão. Corações sangrando.
Vi uma senhora entrando na igreja, com um rosário nas mãos. Talvez fosse a salvação, no meio de tantos sofrimentos. Naquele momento me recolhi e vi que estava realmente de frente com a realidade nua e crua.
Em seguida, passou um jovem alto, magro de olhos claros, de jaqueta de couro de cor preta e que me chamou a atenção. No meio de tanta gente, me sentia mais uma à procura de algo.
Foi quando deu um estalo na minha cabeça e conversei comigo mesma.
– Sabe? Gostei desse jovem. Formatei um encontro um tanto louco. E imaginei que ele seria um par perfeito para a filha da minha vizinha que passava por sérios problemas depressivos. E ainda no meio da multidão, tomei uma decisão mental: fiz o casamento do jovem que acabava de encontrar e que só de olhá-lo parecia que estava vendo o seu mundo íntimo.
Meses depois, contou-me a mãe, a filha iria casar com alguém que se apaixonara à primeira vista. Os noivos levariam o convite na minha casa, naquela mesma noite. Quando anoiteceu, tocaram a campainha. Ao abrir a porta vi o jovem casal: ela que eu conhecia desde o nascimento e um jovem alto, magro de olhos claros, de jaqueta de couro de cor preta. O mesmo que me chamara a atenção, na multidão, meses antes.

Textos de Oleni Oliveira Lobo

Momentos desafiantes: um novo olhar.
                                               Oleni Oliveira Lobo

Um dos momentos mais imprevisíveis da vida e menos desejados na vida? Acredito que seja a falta de saúde, principalmente em crianças. Uma fase para aproveitar, experimentar ludicamente o que a vida tem a oferecer, correr, brincar, se jogar no chão, andar descalço, explorando tudo que tem a sua volta, tudo completamente inédito, seu olhar e desejo é conhecer o universo.
Algo novo surge: seu quarto trocado por um espaço em um hospital, no qual compartilha momentos assustadores com um companheiro ao lado. Limitados a uma ala, um quarto com entra e sai com pessoas que trazem líquidos com sabores não agradáveis, agulhas que provocam dores. Cadê a comidinha? Exames exigem muitas vezes três dias sem alimentos apenas soro.
Tudo tão assustador! Nada pode ser feito! Existe apenas este lado! Lembre-se “se Maomé não vai à montanha...”.
A empatia fez com que os adultos percebessem como este mundo é assustador e recheado de receio e medo. Mamães são preparadas para que seu filho possa aproveitar da melhor forma este momento. Paredes coloridas, brinquedoteca contadores de história tanto para as crianças quanto para as mamães.
Uma experiência em uma ala pediátrica com pacientes terminais, tudo isto existia, cenas que eles mesmos escolhiam, nunca falavam em morte e nem perguntavam sobre a criança que não voltava mais ao quarto.
Uma ocasião uma criança ficou fora por trinta dias para realizar exames sendo necessário o isolamento. Percebi que a menininha observava tudo com estranhamento, perguntava nossos nomes. Ao retornar ao quarto, ainda nos corredores da pediatria, as crianças ficaram olhando para a menina com curiosidade, e uma delas perguntou: “como é morrer?”. E a menininha respondeu “tudo lá é igual a aqui: a mamãe, o tio Pedro, tio Renato, nossa tia das brincadeiras... Tudo igual! Só que tem uma luz azul. Deus eu não vi, e procurei muito, mas eu ouvi um barulho da respiração dele e foi bom, deu alegria”. E as crianças continuaram perguntando. Pareciam jornalistas cobrindo uma notícia em primeira mão.
Emocionou a todos e descobrimos que aquilo que as assustava, as crianças deixavam pra lá e pensavam no hoje, no dia que tinham apetite para saborear o que gostavam, um dia sem picadas. Ah! As picadas daquela grande vilã a dona agulha?
Bem, a agulha foi transformada em um túnel para transportar os super-heróis e superpoderosas, iriam disfarçadamente entrar no corpo combater o dodói. As grandes frases ao receberem estes protetores: “tia este está usando laser, arde muito. Se eu chorar o dodói vai perceber?”.
Ao que dizíamos: “pode chorar daqui a pouco a guerra diminui.”.
Outros diziam: “espada forte até eu sentido cortar” “ sentido o dodói fugindo. Este homem aranha é bom mesmo”.
Uma conversa de uma criança preparando outra para cirurgia: “fica com medo não! (exibindo sua cicatriz), eles colocaram aqui dentro um chip que me avisa tudo, mas vou te avisar: eles vão tirar uma coisa de ti, fica sem chorar porque eles devolvem coisa melhor! Acredite: a sala é uma grande espaçonave e tem até gente da lua que te faz dormir aquele soninho como se fosse no colo da mamãe, por isto não dói. Não vou mentir: depois deste soninho dói. Aí vem um extraterrestre disfarçado e faz você dormir de novo. Eles são bons!”.
As crianças têm muito a nos ensinar a sentir o invisível, a acreditar em magia. Ao vestir uma fantasia da Frozen, do Batman, Minie, Capitão América, Unicórnio, eles se transformam nestes personagens, mesmo sabendo que é um faz de conta para tudo aliviar e amenizar.
Eu mesma passei por estes momentos mágicos. Fizera um procedimento em minha testa, quando encontrei com um garoto na sala de espera de uma consulta. A cicatriz recente estava bem visível. O menininho ficava olhando em minha direção sem desviar em nenhum momento seu olhar instigador. Dei um sorriso para ele o que o incentivou a vir falar comigo. Ele disse: “tiraram seu chifre da testa, mas deixa passar a mão pra fazer um pedido, porque chifre de unicórnio ainda tem a força mesmo quando tiram... deixa, deixa Senhora Unicórnio?”.
É claro que permiti. Então ele fechou os olhinhos e passou aquela mãozinha tão fofa! Baixinho, ele disse: “não posso contar o que pedi, mas tem um pra ti, Senhora Unicórnio. Vai ser bom! Hum! Que vontade de contar...”.

Mas o médico o chamou para consulta. Dei um beijo nele que saiu todo feliz. E eu? Fechei os olhos, coloquei minha mão em minha cicatriz... Ops, no local do meu antigo chifre de unicórnio! E fiz um grande pedido, algo muito bom para ti que está lendo este texto, eu pedi... Ah! Não vou contar. Afinal, se contar não acontece!

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Os narradores em A Quinta História e Noite e Neblina. Edna Domenica Merola.

Os narradores em A Quinta História e Noite e Neblina foi escrito como atividade acadêmica. Na disciplina Literatura e Cinema, cursada  no segundo semestre de 2017 (CCE,UFSC), a professora Ana Luísa Andrade propôs que a escrita de um ensaio sobre o tema da disciplina, considerasse alguns aspectos trabalhados durante o semestre. 
           
                        Ao pensar um possível diálogo entre o conto a Quinta-História de Clarice Lispector e o filme Noite e Neblina de Resnais, considerou-se que as duas produções ocorreram no período consecutivo à Segunda Guerra do século XX, e que a contemporaneidade da construção narrativa de ambas é útil para ilustrar a abordagem benjaminiana sobre o narrador:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois [:] alguém que vem de longe [e] o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1987).

            Frequentemente, as narrativas ocidentais se distanciam das histórias orais e constituem um aparato hegemônico cujo proselitismo se sustenta, ao longo da História – canonizada pelo poder dos impérios. Padre Antonio Vieira nomeou os impérios: Assírio, Persa, Grego, Romano, e, sob a égide da crença milenarista, pleiteou, no Sermão do Esposo da Mãe de Deus, que o quinto império seria o de Portugal. Em Mensagem, Fernando Pessoa retoma o sebastianismo português no poema O Quinto Império (1934). Em A Quinta-História de Clarice Lispector – desde seu título – percebe-se a denúncia às narrativas fundamentalistas (tais como a referente ao quinto império).
            Publicado em Felicidade Clandestina, em 1971, mas referente ao universo que trata dos anos 1950-1960, o conto A Quinta História propõe cinco versões narrativas dos seguintes fatos: “queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. [...] Assim fiz. Morreram.”.
            O conto apresenta cinco diferentes maneiras de narrar como se deu a aprendizagem do preparo e da aplicação de um veneno infalível na eliminação de baratas. Os títulos das versões que a narradora considera “verdadeiras” são: “Como Matar Baratas”, “O Assassinato” e “As Estátuas”.
            “Como Matar Baratas” permanece no nível discursivo do senso comum, é informativo, factual, denotativo e informal. Traz a receita: “Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram.”.
            A segunda história do conto narra “O Assassinato”: “Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia formar parte da natureza.”.        Conforme a teoria darwinista da evolução, constata-se a vitória do mais forte sobre o mais fraco: “Já era de madrugada. [...] No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome amanhecia.” A expressão “nosso nome” sinaliza que a dona de casa representa uma classe social ou uma raça. E a palavra “amanhecia” adquire uma conotação positivista ou de construção do progresso.
            Na terceira história (“As Estátuas”), a narradora descreve as baratas mortas pela evocação da imagem do desaparecimento da antiga cidade romana de Pompeia, devido à erupção do vulcão Vesúvio: “Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia”. (LISPECTOR, 1998).
            A história da profana Pompeia que desaparecera pelo fogo preservou-se por meio da narrativa oral, mas foi tida por mito durante quinze séculos, até obter comprovação material, em 1748, quando foram feitas escavações no local. Os corpos dos antigos habitantes foram encontrados como estátuas que reproduziam a ação feita no momento da catástrofe. De maneira similar, Lispector narra a morte das baratas por envenenamento:

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. [...] E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. (LISPECTOR, 1998).

            “As Estátuas” remete a um universo das verdades que não bastam ser narradas, mas demandam comprovações materiais. No texto, essa materialidade se dá pela atribuição de comportamentos e sentimentos humanos às baratas:

Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de...” (LISPECTOR, 1998).

            A remissão aos cadáveres das baratas como estátuas é “figura chave para a alegoria, pois cria, através do seu espectro materializado, o espaço do imaginário que sonha com a vida.” (ANDRADE, 2016).
            A quarta história menciona as sensações da narradora e o pressentimento de que novas baratas surgiriam:
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde essa mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal como quem já não dorme sem a avidez de um rito? (LISPECTOR, 1998).

            Na quarta história, a narradora reflete sobre “o vício de viver” que rebenta seu “molde interno” perante a escolha entre sobreviver ou salvar a sua alma:

Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou a minha alma. (LISPECTOR, 1998).

            A escolha redunda em passar a ostentar “secretamente no coração uma placa de virtude: Esta casa foi dedetizada” (LISPECTOR, 1998).
            A placa, “Esta casa foi dedetizada”, [é] como um prêmio de virtude, uma cena alegórica da limpeza étnica nazista” (ANDRADE, 2016). A menção ao genocídio coloca a narrativa de Lispector em estado de diálogo com o filme Noite e Neblina (Resnais, 1955).
            Segundo Osmo (2012), o filme foi encomendado a Alain Resnais pelo Comitê Histórico da Segunda Guerra Mundial. O diretor só aceitou quando Jean Cayrol – um sobrevivente do campo de concentração de Mauthausen que escrevera, em 1946, o livro Poèmes de la nuit et brouillard – se propôs a colaborar para o projeto. A trilha sonora foi feita por Hanns Eisler, um judeu alemão que fugira da Alemanha em 1933.
            Noite e Neblina não se propõe a explicar o genocídio, mas seria um esforço de análise e compreensão do que ocorreu.
            O filme alterna imagens coloridas com imagens em preto e branco. As coloridas datam de dez anos após o genocídio, em que são exibidos (sem identificação) diferentes campos de concentração. Elas contrastam com as imagens em preto e branco, que consistem em fotos e filmes, retirados de arquivos, relativos ao período em que o horror nazista estava sendo perpetrado.
            Uma narrativa discursiva e poética, acompanha as duas diferentes narrativas imagéticas, e inicia como segue:

Inclusive uma paisagem tranquila.
Inclusive uma pradaria com voo de corvos, com colheitas e com fogos de ervas.
Inclusive uma estrada por onde passam carros, camponeses, parelhas.
Inclusive um povo de veraneio, com uma feira e um campanário, pode conduzir simplesmente a um campo de concentração.
Struhhof, Oranienburg, Auschwitz, Neuengamme, Belsen, Ravensbruck, Dachau foram nomes como os outros sobre os mapas e os guias. (CAYROL, 1946).

            As cenas de Noite e Neblina são todas chocantes, posto que referentes ao abominável como a imagem dos diversos fornos, todos vazios e limpos como se fossem um produto fora de moda. “O crematório não é mais usado. As astúcias nazis já passaram de moda. Nove milhões de mortos espreitam esta paisagem.” (CAYROL, 1946).
            Outros destaques vão para as cenas em que são mostrados monte de objetos iguais e montes de corpos humanos mortos. São imagens que ecoam no alerta de Cayrol sobre a responsabilidade histórica de todas as nações:

E estamos nós que olhamos sinceramente estas ruínas como se o velho monstro concentracionário estivesse morto sob os escombros; nós que fingimos recuperar a esperança diante desta imagem que se afasta, como se nos sanássemos da peste concentracionária; nós que fingimos acreditar que tudo isso pertence a um só tempo e a uma só nação, e que não pensamos em olhar à nossa volta e que não ouvimos que se grita interminavelmente.” (CAYROL, 1946).

            Passados setenta e um anos de quando foram proferidas, as palavras supra alertam para questões presentes. Tais como: as massas de excluídos de sua própria pátria por pobreza ou guerra, a separação entre os que conseguirão trabalhar sob regime de escravidão (ainda que voluntária) e os que permanecerão abaixo da linha da pobreza, a alienação do indivíduo frente o problema do outro, a formação de falsas redes que giram em torno de si mesmas, o fim do dialogismo.
            A Quinta História é um laboratório do processo narrativo em que uma única narradora se abre ao projeto de construção da alteridade a partir do “senso prático [que] é uma das características de muitos narradores natos.” (BENJAMIN, 1987). As diferentes narrativas do conto a Quinta História resultam dos esforços da vivência do papel de narradora nata que se modifica ao experimentar o contido nas próprias narrativas.
            A narradora conta “três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (LISPECTOR, 1998). Tal qual Sherazade, pretende sobreviver pela manutenção da tradição oral. As repetições ao longo dos diferentes momentos narrativos tentam construir tal tradição. A identidade da voz que narra determina o convencimento sobre a verdade do que é narrado. Lispector não dá pronta essa identidade. Apenas constrói pistas de identificações em cada um dos segmentos narrativos do conto.
            A quarta narrativa (“Esta casa foi dedetizada”), assim como a quinta (“Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia”) não são reconhecidas como literalmente verdadeiras pela narradora, à revelia de referirem, metaforicamente, a fatos históricos.
            “Esta casa foi dedetizada” dialoga com o filme Noite e Neblina que, em relação ao projeto de higienização relata as ameaças: Um piolho é a sua morte e Limpeza é saúde. Os ambulatórios médicos dos campos de concentração realizavam pesquisas com humanos que incluíam mutilações e envenenamentos, ao invés de prestar atendimento aos mais frágeis. A sopa era servida somente aos aptos ao trabalho.
            Em “Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia” há várias chaves de leitura sobrepostas. Leibniz (1646 - 1716) foi filósofo, mas também diplomata alemão. Daí considerar como primeira chave a do olhar estrangeiro sobre os fatos narrados. Como filósofo, Leibniz tentou encontrar o princípio que rege a ordem da existência das verdades de fato. Essa tentativa também comparece na busca da narradora de A Quinta História. Como germânico, Leibniz remete à imagem de povo alemão que, no século XIX, foi associada ao Romantismo (em seus temas de amor, morte, idealismo), mas, no século XX, ao nazismo. A menção à Transcendência do amor remete ao amor que as baratas foram impedidas de declarar ao serem envenenadas. A Polinésia é um conjunto de ilhas no Sul do Oceano Pacífico. Muitas delas são colônias dos Estados Unidos – protagonista tanto da destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki, como do contexto mundial da Guerra Fria. Essa comparece sob a metáfora da noite, presente no título do filme que por sua vez fora inspirado no livro de Cayrol: Poèmes de la nuit et brouillard. A noite ou cenário da destruição planejada por algozes vitoriosos contra a inocência das vítimas ou das baratas: “Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite.” (LISPECTOR, 1998).
            O final do conto mantém a abertura para um novo recomeço a ser tecido pela leitora. O conceito de verdade fica no plano existencial; é algo que precisa ser experimentado por quem assim o define. Em Noite e Neblina de Resnais ocorre algo similar pela inclusão do testemunho de Cayrol sobre o campo de concentração.
            No conto A Quinta História, as baratas agonizantes morrem em movimento. Em Noite e Neblina, os prisioneiros doentes “morrem de olhos abertos” (CAYROL, 1946) nas enfermarias do campo de concentração, sinal de nada fora feito para amenizar suas dores. Em A Quinta História, as vozes das baratas agonizantes comparecem entrecortadas pelos efeitos do veneno algoz. Em Noite e Neblina, a voz da testemunha se ergue soberana às imagens de dois tempos antitéticos: o do horror do genocídio e o da filmagem que tem por cenário os campos de concentração inativos.
            Conclui-se que o projeto filosófico de Walter Benjamin – que pretende que a voz dos vencidos se coloque como antítese às teses das classes dominantes – foi contemplado tanto por Lispector como por Resnais.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Ana Luísa. Insetos. A modernidade de uma linguagem em ruínas: contra-arquiteturas. In: Ruinologias. Editora da UFSC. 2016.

BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAYROL, Jean. Texto do poeta Jean Cayrol, para o filme de Alain Resnais, com tradução do poeta Juan Hernandez. Disponível em: http://cinemaholocausto.wordpress.com/tag/jean-cayrol

LISPECTOR, Clarice. A Quinta História. In Felicidade Clandestina, Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Disponível em https://nesgadeterra.blogspot.com.br/2013/12/a-quinta-historia-clarice-lispector.html

MARCONATTO, Arildo Luiz. Gotfried Leibniz. Disponível em http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=76

OSMO, Alan. Análise: “Noite e Neblina”. Disponível desde 10/09/2012, em http://www.forum18.com.br/analise-noite-e-neblina/

RESNAIS, Alain. Noite e Neblina. 1955. Disponível em http://www.veoh.com/watch/v6446064d3pmtMhM