A
professora era extremosa, tinha domínio do conteúdo que ensinava e exagerava ao
se ocupar com o preparo das aulas. Num desses arroubos pedagógicos enviou um
e-mail aos alunos:
‒
Por favor, revejam as sínteses das aulas da primeira unidade. Enviem suas
dúvidas, suas perguntas, suas constatações sobre os assuntos das aulas
anteriores.
Só
a aluna mais quieta e mais discreta da sala de aula respondeu:
‒
“Entendi cada passo, mas me sinto ainda muito crua na formatação do enredo...
Ao procurar dar sentido. Sinto-me bem escrevendo. Mas vou colocando frases sem
sentido... Parecendo flashes, no ouvido... De repente paro, e não vem mais
nada. Só você faz dar sentido...”
‒
O processo de escrita criativa é assim mesmo. Primeiro escreve em flashes (como
você chamou). Depois faz outra atividade: de preferência totalmente diferente
da escrita. Essa outra ação estimulará outras regiões do cérebro diferentes
daquela responsável pela criação com a palavra. Depois volta a ler o texto
novamente. Só então poderá fazer as correções e 'dar sentido'. Essa busca de
sentido é de alto risco: não pode tirar a beleza do que parecia ‘sem sentido’ e
foi originalmente expresso na primeira versão. Nesse ponto de vista, torna-se
importante o domínio dos instrumentos linguísticos. Por exemplo, as regras de
pontuação que determinam como se dará a leitura.
‒
Outra opção é pedir para alguém ler em voz alta. Desta forma, você poderá ver
onde a pessoa dá entonação diferente da que você imaginou. Outro recurso é
pedir para alguém explicar o que entendeu, para ver se foi o que você quis
dizer. Para treinar esse processo, em 'sala de aula', é preciso haver confiança
mútua estabelecida entre pares de alunos. Considero isso básico no exercício de
entendimento do texto do outro. Enquanto isso não se estabelece, vamos usando a
interferência centrada na figura da professora que propõe inversões de
sequências de parágrafos e altera a pontuação. E isso vai:
‒
“Tornando cada texto mais bonito que o outro”. ‒ escreveu a aluna.
‒
A prática pedagógica que prioriza o saber da professora não desenvolve
autonomia do aluno por si só. Decorre daí ser necessário incluir o trabalho com
colegas de aprendizagem.
‒
Em dupla? ‒ inquiriu a aluna prontamente.
‒
A dupla é uma experiência humana ancestral. Começa com o bebê e sua mãe. E com
a mãe e seu bebê. Há dois ângulos diferentes da relação em dupla. Você percebe?
‒
Ah! Acabei de entender aquela primeira aula do semestre... Você colocou música
e pediu que fechássemos os olhos para olhar para dentro. Depois de algumas
músicas daquela forma é que abrimos os olhos para copiar o movimento do outro.
‒
E esse outro era um colega. Então para cada dupla havia um modelo diferente. ‒
explicou a Professora.
‒
E depois invertemos os papeis. Eu dançava e minha colega me imitava ‒ completou
a aluna.
‒
Isso ocorre sempre: o bebê também molda o comportamento de sua mãe. Ela deve
aprender a decifrar seu choro para alimentá-lo e confortá-lo. Senão...
‒
Dança! ‒ completou jocosamente a aluna.
‒
É isso mesmo! A formação da dupla é uma via de duas mãos: uma tarefa em dupla.
As interações em uma dupla, seus padrões de comunicação, seu estilo de
funcionamento fazem concluir que se trata de uma terceira instância. A dupla
que dança é diferente da soma do bailarino A + o bailarino B. ‒ discursou a
professora.
‒
Então vou responder ao e-mail do meu colega de dupla de entrevista. Ele acabou
de entrar on line. Tchau, Professora. ‒ despediu-se a aluna.
A
professora extremosa continuou frente ao teclado e a telinha. Considerou que
tinha dialogado de uma forma que agradaria... Talvez ao Sócrates! Achou que
não, leitor? Ou talvez à mãe do Sócrates... Quem sabe?
Só
sei que a professora arroubada considerou que aquilo poderia ser postado em seu
blog. E se não gerasse diálogo do tipo maiêutico, poderia gerar bate-papo
literário. Redigiu os flashes necessários. Corrigiu o texto já postado, já que
seu campo de visão não avistasse nenhum cristão... E nem pagão... Uma vez
estivessem os leitores ausentes, a arroubada Professora extremosa pensou em
reler o texto imaginando-se outra pessoa... Quem sabe em pé? Mas o corpo queria
permanecer na cadeira. E suas mãos continuavam a dedilhar o teclado e a
acompanhar a tela... A Professora extremosa (e que também era uma aprendiz,
sempre) avaliou que estava com sorte, pois alguém respondera... Era uma 'voz'
abalizada e amiga:
‒
A união dos "flashes" e até de textos escritos em momentos diferentes
depende de reescrita do argumento inicial da própria narrativa ('a entrada' que
aponta para algo). O título geral de um trabalho tem de ser voltado para seu
foco. A colocação de uma epígrafe (ou citação) pode diminuir a clareza do texto
se não for colocada em diálogo com o título e com o foco da narrativa. O
processo intuitivo de escrita dá mais trabalho em sua composição. Mas depois de
reescrito percebe-se a beleza não só de seu produto, mas de todo o processo.
A
Professora extremosa escreveu:
‒
Você consegue inverter o papel com quem cria. Outros só alcançam a compreensão
do Espelho, pois não conseguem desenvolver o Duplo... Necessário para a criação da terceira
instância, numa dupla. A criação dessa instância é a obra relacional:
ela é estética. Não obrigatoriamente Suave... Bela... Perfeita, mas que
denominamos obra relacional estética.
A
Professora releu sua fala e achou-a muito teórica. Tentou fazer um duplo com
sua aluna mais quieta e mais discreta da sua sala de aula. Avaliou que ela
entendia a 'obra relacional estética' por meio de seu silêncio sábio.
‒
É como vejo o silêncio que aprende e ensina. ‒ ponderaria com seu olhar
presente.
A
Professora apagou sua fala sobre "a inversão de papéis" e "a
obra relacional estética" e pensando no "silêncio sábio"
escreveu à voz amiga:
‒
Obrigada pela presença! Saudade!
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