O Velho
Francisco e Leite Derramado:
pluralidade do eu e visibilidade do
periférico.
Para
discorrer sobre O Velho Francisco e Leite Derramado, tomaremos por recurso a
“relação triádica do real com o ficcional e o imaginário”, conforme o conceito
de transcodificação (ISER, 2013) que
será convalidado para a análise dessas duas produções de Chico Buarque sob o
viés da pluralidade do eu e da visibilidade do periférico.
O imaginário não é um mero jogo de
representações, tem uma finalidade prática. O mundo representado no texto
representa algo diverso de si mesmo. O mundo representado não é propriamente
mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, deve ser representado como se
o fosse. O como se tem caráter
remissivo. O como se compara algo
existente com as consequências necessárias de um caso imaginário.
O fictício é a tradução do imaginário na
configuração concreta. A semantização é a tradução de um acontecimento
experimentado na compreensão do produzido.
O fictício oferece ao imaginário a possibilidade de que se faça presente no produto
verbal do texto, na medida em que a própria língua é transgredida e enganada,
para que, no engano da língua, o
imaginário, como causa possibilitadora do texto, se torne presente.
Para
a arte, vale o compromisso com a reelaboração imaginária da realidade. A ficção
se alimenta da realidade. A narrativa fantástica se parece com o mundo real que
inclui fatos, mas também produções musicais e literárias publicadas. A ficção é
fingimento, já uma notícia falsa é fraude. O texto ficcional estabelece
relações diferentes com a realidade. Nesse há transgressões, excessos. Não
importa o que o autor quis dizer, já que o sentido depende da materialidade da
obra.
Na
transcodificação, o caráter remissivo
(que compara algo existente com as consequências necessárias de um caso imaginário) diz respeito não só ao mundo
como se fosse real que é representado, como também à obra de ficção tomada por fonte.
O
romance contemporâneo e a canção (ou poema
musical) são textos de materialidades diferentes. Estabelecem relações
com a realidade de diferentes modos e, portanto, transgressões de ordens
técnicas diferentes. Como se dão as transgressões ou enganos da língua são
decorrências: do uso da linguagem inerente a cada uma dessas expressões
artísticas, e do fazer estético que se consuma em cada criação.
Nesta
análise dos dois trabalhos artísticos de Chico Buarque, o romance Leite Derramado comparece como transcodificação da música O Velho Francisco. A fonte considerada
aqui dá-se sob o viés da performance de Monica Salmaso (2007) com o grupo Pau
Brasil, do álbum Noites de Gala, Samba na
Rua. Previne-se que outras performances, a exemplo da de Suzana Salles não
sustentam as análises aqui contidas.
No
CD Noites de Gala, Samba na Rua,
Monica Salmaso recriou canções imortalizadas por Chico Buarque, inclusive O Velho Francisco. O CD da intérprete foi
produzido por Rodolfo Stroeter; a direção musical foi realizada por Mônica
Salmaso e Rodolfo Stroeter. Foi gravado no estúdio MOSH dias 8, 9 e 10 de
novembro e 27, 28 e 29 de dezembro de 2006. Foram engenheiros de som: Gustavo
Lenza e Paulo Penov; assistentes de estúdio: Gustavo Galisi e Rui Galisi. O CD
foi mixado no Rainbow Studio Oslo/Noruega por Jan Erik Kongshaug, em dois e três
de março de 2007; masterizado no estúdio Classic
Master por Carlos Freitas dia 15 de março de 2007.
Ao
lado do Grupo Pau Brasil, a cantora
Mônica Salmaso apresentou o repertório do CD: Noites de Gala, Samba na Rua, no Teatro FECAP, em temporadas de
março e de outubro de 2008. O Grupo Pau
Brasil tem em sua formação o veterano Nelson Ayres (piano), Paulo Belinatti
(violão), Rodolfo Stroeter (contrabaixo), Teco Cardoso (saxofone e flautas) e
Ricardo Mosca (bateria). Dedica-se à interpretação de composições que marcam a
música brasileira e a seus temas peculiares.
Passa-se
à apresentação da performance de O Velho
Francisco (https://www.youtube.com/watch?v=yiPN1NANULE)
cujo foco de audição sugerido é o uso de instrumentos artesanais de percussão e
sopro ao lado da bateria, do piano e do violão.
Já
gozei de boa vida
Tinha
até meu bangalô
Cobertor,
comida
Roupa
lavada
Vida
veio e me levou
Fui
eu mesmo alforriado
Pela
mão do Imperador
Tive
terra, arado
Cavalo
e brida
Vida
veio e me levou
Hoje
é dia de visita
Vem
aí meu grande amor
Ela
vem toda de brinco, vem
Todo
domingo
Tem
cheiro de flor
Quem
me vê, vê nem bagaço
Do
que viu quem me enfrentou
Campeão
do mundo
Em
queda de braço
Vida
veio e me levou
Li
jornal, bula e prefácio
Que
aprendi sem professor
Frequentei
palácio
Sem
fazer feio
Vida
veio e me levou
Hoje
é dia de visita
Vem
aí meu grande amor
Ela
vem toda de brinco, vem
Todo
domingo
Tem
cheiro de flor
Eu
gerei dezoito filhas
Me
tornei navegador
Vice-rei
das ilhas
Da
Caraíba
Vida
veio e me levou
Fechei
negócio da China
Desbravei
o interior
Possuí
mina
De
prata, jazida
Vida
veio e me levou
Hoje
é dia de visita
Vem
aí meu grande amor
Hoje
não deram almoço, né?
Acho
que o moço até
Nem
me lavou
Acho
que fui deputado
Acho
que tudo acabou
Quase
que
Já
não me lembro de nada
Vida
veio e me levou
Em
O Velho Francisco, a narrativa do eu
poético é não linear, não tece relações de causa e efeito. O eu é plural e ocupa diferentes lugares e
épocas. Lugares tais como: latifúndio, hospital ou asilo, ilhas da Caraíba; e
épocas: o fim do Império no Brasil, hoje,
todo domingo, busca da prata no
Brasil que se inicia no século XVI. Remete a sentimentos de perda, expectativa
por uma visita, abandono e solidão.
O
universo vocabular refere ao centro e a uma faceta do caráter nacional
brasileiro que é a do personalismo: fui
eu mesmo alforriado pela mão do Imperador, tive terra, arado, cavalo e brida,
campeão do mundo, frequentei palácio, (me tornei) vice-governador, fechei
negócio da china, desbravei o interior, possuí mina de prata, acho que fui
deputado.
É sabido que a
região das ilhas da Caraíba abriga paraísos fiscais. Os versos “Eu gerei
dezoito filhas/ Me tornei navegador/ Vice-rei das ilhas/ Da Caraíba” denunciam o
funcionamento de mecanismos que protegem as grandes fortunas e agravam a
situação da população periférica. Já a composição musical remete a algo mais
agregador e alegre do que os sentimentos expressos nas palavras do poema.
Na
performance de Monica Salmaso, há elementos (arranjo, instrumentos utilizados,
alternância do solo vocal com o solo instrumental) que reforçam: – a
pluralidade do eu pela diversidade e
evocação das regiões brasileiras periféricas; – tornam o periférico visível.
No
objeto transcodificado tomado para análise, ou seja, no livro Leite Derramado, o caráter remissivo diz
respeito não só ao mundo como se
fosse real que é representado, como
também à obra de ficção tomada por fonte (ou seja, a música O Velho Francisco).
A
construção do imaginário em Leite
Derramado conta com um narrador que se encontra entre o limiar do sono e da
vigília. Em princípio, a vigília é da ordem do real e o sonho da criação
ficcional. Ambos têm suas linguagens próprias, mas que são transgredidas por meio
da memória hipnagógica do narrador que a descreve assim: “O sonífero não tem
mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio
de pensamentos. [...] Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma
expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros
cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as
profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.” (BUARQUE, 2009, p 8).
A
voz narrativa do romance é a de um idoso moribundo que pertence à elite
brasileira decadente. O narrador personagem, nascido em 1907, é Eulálio Montenegro
d’Assumpção, que conta passagens de sua vida e de seus ancestrais, de maneira
fragmentada, mas que adquire força pela construção de imagens.
A
estruturação narrativa do livro lembra a da rapsódia por conter fragmentos que
incluem os épicos. O discurso do narrador, em cada fragmento de suas lembranças
é permeado pelas circunstâncias afetivas, culturais, socioeconômicas e
históricas. No romance, a memória é entendida sob os signos da pluralidade e da
diversidade: “A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro,
depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode
é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para
espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na
ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto.” (BUARQUE, 2009, p. 41).
Pode-se
buscar construir uma eventual linearidade a partir de pistas precisas tais como
a data de nascimento do personagem narrador, numa família da aristocracia
rural, em 16/6/1907. Ou a partir de pistas genéricas como as constantes da saga
dos casamentos que começa pelo dos pais do narrador que retrata os chamados
casamentos por interesses e união de famílias aristocratas, em que o homem
tinha toda a liberdade e a mulher tolerava sua vida dupla. Já a narrativa do
casamento do próprio personagem narrador alega afinidades da pele. A filha dele
tem um casamento com um italiano e duas uniões: uma com uma mulher artista
plástica e outra com um homem sem profissão definida que dá um neto afrodescendente
ao personagem narrador.
Vários
períodos históricos são mencionados: chegada de D João VI (1808, e do trisavô
do narrador), governo de D Pedro I (1822-1831. Época do bisavô escravocrata), governo
de D Pedro II (1840 – 1889. Época do avô abolicionista); governo de Campos
Sales (1898; época da juventude do pai); governo de Venceslau Brás (1914-1918;
época em que o pai de Eulálio presidia a comissão de assuntos agrários do
Senado); a queda da bolsa de Nova York (1929, juventude do narrador), a segunda
guerra mundial do século XX (1939-1945, maturidade do narrador) e a ditadura
brasileira iniciada com o golpe de 1964 (época do neto do narrador que morre na
militância contra a ditadura). O momento da narrativa é o da juventude do
bisneto (traficante).
As
projeções da vida pessoal do narrador e das memórias de família vão formando a
galeria de imagens do que se costuma chamar de retrato social. Nele transparece
a pluralidade do eu, e o periférico se torna visível.
A
imagem do eu plural é construída (sob
o viés da diversidade) pela evocação de diferentes personagens que compõem a
genealogia de Eulálio e o eixo Rio de Janeiro e Minas Gerais.
O eu plural é de certa forma resultante
da diversidade cultural, de tal maneira que o narrador refere a si mesmo como
vítima das forças culturais exercidas sobre sua própria história de vida.
Os
materiais do inconsciente afloram na voz do narrador moribundo que é refém de
sua própria condição de dependência. Relatos da fuga da esposa durante o
desmame da filha de ambos são repetidos insistentemente pelo narrador do
romance como se fosse o refrão da música “Vida veio e me levou” (BUARQUE, 1987).
Tais relatos do velho agonizante são tecidos sob a óptica do seio mau ou do
seio que se nega a prover alimento e afeto (KLEIN, 1991). O abandono e a
carência são marcas do periférico que se torna visível pela condição do
narrador que é a de um idoso sem recursos financeiros próprios que está
internado num hospital. Essa condição é apresentada literalmente no romance, em:
“E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta
ferida.” (BUARQUE, 2009, p. 10).
As
imagens construídas como representações de estados hipnagógicos remontam ao
inconsciente individual, no romance. Já, no poema
musical, tais imagens comparecem nas representações da inconsciência do
tempo histórico peculiar ao homem contemporâneo. A personalidade de filho dependente
do personagem do romance e o eu
lírico do poema musical que se define
por identificações com personagens expoentes em algum país periférico que se
acha à sombra do centro expressam proximidades entre a fonte e sua
transcodificação. Pode-se concluir que tanto em O Velho Francisco, sob o viés da performance de Monica Salmaso,
como na galeria de imagens da sociedade brasileira de Leite Derramado, há representações da diversidade, da dialética
centro e periferia, das relações dominador e dominado pela apresentação da
pluralidade do eu.
REFERÊNCIAS
BUARQUE,
Chico. O Velho Francisco; música da faixa 1 do Álbum Francisco. RCA, 1987.
_______________________Vídeo
clipe da música O Velho Francisco. Performance
de Chico Buarque. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/chico-buarque/o-velho-francisco.html
_______________________
Leite Derramado. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
ISER,
Wolfgan. Atos de fingir. Ed UERJ, 2013,
2ª ed.
KLEIN, Melanie. Inveja e
Gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MEROLA.
Palestra do Prof. Alberto sobre Leite
Derramado. Disponível em https://netiativo.blogspot.com.br/2014/06/palestra-do-prof-alberto-goncalves.html
SAPO:
site sobre Economia. OCDE retira três paraísos fiscais das Caraíbas. Disponível
em: http://economico.sapo.pt/noticias/ocde-retira-tres-paraisos-fiscais-das-caraibas-da-lista-negra_90194.html
SALMASO,
Monica e Grupo Pau Brasil. Noites de Gala - Samba Na Rua (Álbum Completo). Gravadora
Biscoito Fino, 2007.
______________________________
Noites de Gala - Samba Na Rua. Álbum Completo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3mT7ctNcunc&t=462s
__________________________________
O Velho Francisco. Performance de Monica Salmaso e Grupo Pau-brasil. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=yiPN1NANULE
É uma pena que muita gente não entenda a riqueza da obra de Chico Buarque, cegos (e surdos) pelas divergências políticas. Os ataques são patéticos a ponto de alguém escrever nas redes sociais que " Chico nunca mais compôs nada que prestasse depois da morte do pai que era o autor real das músicas do filho". Nem há como responder a um comentário idiota desses. Só não digo que o Brasil não merece o Chico porque vi o teatro sempre lotado durante seu show mais recente, Caravanas, um espetáculo primoroso, de um autor renovado. Uma banana pra quem o chama de velho! Parabéns pelo texto, Edna. Abraço. Brígida
ResponderExcluirLegal seu comentário Brígida. O Chico Buarque escreveu um livro (Budapeste) ironizando essa falsa acusação de plágio. No começo da carreira, por ter a imagem ao agrado do público feminino incomodava Zé Celso e alegrava a Hebe Camargo. O fã clube do Chico Buarque cresceu, cursou a universidade e o pós, envelheceu e se tornou admirador de sua excelente literatura, sem deixar de admirar suas composições musicais. Chico amadureceu (e nós também, graças a Deus!), mas não está "passado". Chico é presente. É um presente. É "o" presente.
ResponderExcluir