Para
análise da adaptação cinematográfica (CARVALHO, 2001) do livro Lavoura Arcaica (NASSAR,
1975) tomaremos as reflexões de Linda Hutcheon acerca da adaptação de obras
literárias. Tais reflexões têm por fundamentos a teoria da intertextualidade de
Cristeva, a desconstrução de Derrida e a rejeição de Foucault à ideia de
subjetividade unificada.
Segundo
a autora, adaptação é uma forma de transcodificação de um sistema de
comunicação para outro, na qual as mudanças ocorrem entre mídias, gêneros e
culturas.
Em
seu estudo sobre adaptação, Hutcheon tem por objetivo: desafiar o olhar
depreciativo sobre a adaptação. Pretende desmistificar a hierarquização (na
qual a literatura é maior e as adaptações menores), a iconofobia (desconfiança
do visual) e a logofilia (sacralização da palavra). Tal objetivo será tomado
nesta análise do livro Lavoura Arcaica (NASSAR,
1975) e sua transcodificação.
Segundo
Alceu Amoroso Lima, o livro aqui referido é uma “novela trágica [...] numa
atmosfera bem brasileira, mas dominada por um sopro universal da tradição
clássica mediterrânea. Drama tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou
decorativo, da eterna luta entre a liberdade e a tradição, sob a égide do
tempo. Livro impressionante, magistral.”. (NASSAR, 2017, contracapa do livro).
Já
a transcodificação em pauta é um filme brasileiro de 2001, drama dirigido por
Luiz Fernando Carvalho e que, em 2015, foi considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE)
um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
A
trama de Lavoura Arcaica trata da
narrativa feita do ponto de vista do personagem André sobre a vida de sua
família de imigrantes estrangeiros que se isola para manter as tradições. A
cultura patriarcal mostra o pai como símbolo da Lei, capaz de executar, com uma
foice, a própria filha que dança freneticamente e usa enfeites que André havia
conseguido com uma prostituta.
O
livro tem trinta capítulos. Vários deles iniciados por referência a uma parte
do corpo. Há remissão aos olhos (sentido
da visão) nas linhas iniciais dos
capítulos 1, 2, 3,7, 10, 11, 12, 14, 22. As linhas iniciais do capítulo 9 fazem
remissão aos “rostos coalhados, [...]
adolescentes em volta da mesa” que o narrador vê nos outros personagens (irmãos
adolescentes). No capítulo 16, há menção a “nossos narizes obscenos”. O
capítulo 17 faz menção ao sentido da audição e à loucura. Já as menções ao
sentido do tato, a exemplo do uso dos substantivos afago(s) e do verbo correlato
é frequente e pulverizada na obra.
A
densidade da obra literária em pauta é fruto de sua vocação estética
neobarroca. Os parágrafos exageradamente longos imprimem exaustão ao processo
de leitura. Em contrapartida, na consumação da tragédia (o assassinato de Ana)
parágrafos curtos intercalam vozes até então caladas.
Segundo
Ismail Xavier, “no filme, há a forte presença da voz over do narrador, que
transpõe passagens do texto de Raduan [...] a palavra deve interagir com a
mise-en-scène; imagem e som compõem uma nova dinâmica, que define a
originalidade das escolhas do cineasta e sua concepção da tragédia familiar.”
(XAVIER, 2011, p 10).
O
discurso do pai é repetitivo e o de André é inventivo a ponto de provocar
rupturas. A duração (velocidade) do
filme é antirrealista, nele tudo é reminiscência materializada na fotografia.
Na
leitura do livro e na apreciação do filme percebem-se vozes distintas de dois andrés que remontam às oposições:
continuidade X descontinuidade do enunciador; sensibilidade X assepsia da ordem
familiar:
No
romance, a “situação épica” do narrador permanece indefinida, restando a
premissa de que ele está num futuro não imediato face ao ocorrido. Há a fala do
André que vive a experiência, está “em cena” a cada atualização do passado, e o
discurso do André que narra à distância, numa modulação de tons que não fere a
unidade do texto — todo ele sancionado pelo seu nome, embora a diferença entre
o ato de viver o drama e o de evocá-lo post-factum problematize a
continuidade-identidade desse “eu” como foco da enunciação. Há um dialogismo de
fundo, próprio ao romance como gênero, pelo qual se diz que são múltiplas as
vozes (valores, perspectivas, sujeitos) que ganham expressão direta ou indireta
na narrativa, mesmo quando a fatura indica uma única voz a conduzir o relato. O
narrador, pelos vocábulos e pela sintaxe, dá um tom solene ao cotidiano,
consagra o mundo dos sentidos e sugere a contaminação recíproca dos opostos,
tudo conforme uma visão assumida desde a adolescência. Nesse sentido, torna
estilo de exposição uma sensibilidade construída lá atrás quando, em pleno
vigor, entreviu a possibilidade de compor uma religião da natureza, trazendo à
luz a esfera da experiência afeta ao mundo das pulsões e da seiva natural,
esfera recalcada pelo teor unilateral e pela assepsia da ordem familiar.
(XAVIER, 2011, p 15-16).
As
diferentes vozes narrativas tomam
corpo nas diferentes casas: a casa em
que a família habita e a casa “velha” onde habitam os subterrâneos das memórias de André.
A casa habitada comparece em várias
cenas, inclusive como cenário da primeira cena do filme, mas capítulo 24 do
livro. Na sala de refeições (e dos sermões do pai), os membros da família estão
sentados à grande mesa. O pai senta à cabeceira, os filhos mais velhos sentam
ao lado do pai, por ordem de idade, primeiro Pedro (o mais velho) e depois
Rosa, Zuleika e Uda. A mãe senta à esquerda do marido, e os filhos mais novos –
André, Ana e Lula – sentam ao lado da mãe. Na cabeceira oposta à do pai há a
cadeira que fora ocupada pelo avô, durante sua vida, e sobre a qual se pode
ler: “seria exagero dizer que sua cadeira ficou vazia” (NASSAR, 2017, p 155).
Outra
cena relevante que tem por cenário a sala de refeições é aquela que faz a
tomada exclusivamente no plano medial dos corpos dos atores/personagens e das
cadeiras das mesas, antes que nelas tomem seus lugares não só para se
alimentarem, mas para consolidar suas posições hierárquicas perante o clã.
A casa “velha” ou em ruínas privilegia o
discurso “dos subterrâneos da memória”. É o local em que André narra seu desejo
por sua irmã Ana. Nessa cena do filme, a tomada de câmara insiste no plano
baixo: quer nas botas deixadas sobre o chão, quer nos pés descalços de André. A
essa cena intercala-se aquela em que André, na infância liberta uma pomba que
comia milho no alçapão. O personagem criança é mostrado de forma solar, com
tomadas de câmara do tipo aérea.
O
jogo de claro e escuro (ou de solar e subterrâneo) do filme espelham a tessitura
neobarroca do livro.
Em
suma, a adaptação do “impressionante” e “magistral” livro Lavoura Arcaica para o laureado filme homônimo comprova que se deve
eliminar o olhar depreciativo sobre a transcodificação,
denunciar a iconofobia e a logofilia para desmistificar a hierarquização entre literatura e cinema.
REFERÊNCIAS
CARVALHO,
Luiz Fernando. Lavoura Arcaica. Filme. 2001. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FnibQvMlq-l
HUTCHEON,
Linda. Uma teoria da adaptação. Ed UFSC, 2011,
2ª ed.
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 2017. Companhia das Letras. 3ª
edição, 35ª impressão.
XAVIER,
Ismail. A geometria barroca do destino. 2011. Significação, número 36.
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