Como os sopros de um vento suave e ameno passaram-se
dez anos. A tão sonhada refundação da Vida Religiosa ganhou rostos concretos e
ainda que em Angola não haja primavera, podemos sentir a possibilidade de novo florescimento.
Angola, país de uma cultura rica de significados e beleza.
Toda palavra não traduz o sentimento feliz da
experiência que fiz. Por isso, ensaio alguns esboços, sempre à procura da
doçura e leveza de Deus.
Aprendi com Martinelli que “temos que dialogar com
saberes múltiplos. Buscar significados, buscar sujeitos e suas histórias”.
Histórias de vidas, histórias de um povo que apesar da vida pesar ainda sorri,
ainda se alegra e faz festa, ainda acredita no poder da solidariedade. Se atrás
de cada sorriso há um choro contido, há também o riso atrás do choro sentido.
Sonhamos com novos retratos que possam mostrar mais, muito mais do que imagens
captadas num instante de vida. Sonhamos com imagens reais, por isso
implementamos em 2010, o Projeto Inocência – Um retrato infantil!?
É preciso investir na criança e no adolescente,
acreditar nas suas capacidades e possibilitar o seu desenvolvimento. Resgatar
dentro de cada ser o que tem de belo e mais profundo, avaliar com eles seu
desempenho e incentivar para que continuem no processo que pode ser lento e
gradativo, mas infinitamente eficaz.
A partir de agora inicio um relato mais específico de
algumas crianças e adolescentes que participam de nosso projeto e do projeto
“Nossos miúdos”, que trabalha com meninos abandonados, órfãos ou acusados de
serem “feiticeiros”. Isto é só o princípio de uma longa história de solidão,
sentimento que revela a perda do que é próprio da criança: a inocência.
O menino N. é a mais pura expressão do total abandono.
Foi deixado envolto em panos (símbolo das mulheres angolanas), tendo o chão e
as folhas secas como abrigo. Tragicamente enfermo, hoje resiste... Sofre, tem
dores terríveis, corpo deformado, mas resiste, quer viver. Sua mãe, que de
alguma maneira o ama, diz: “tenho medo dele, matou o irmão”. N. foi acusado de
ser feiticeiro. Menino de poucas palavras, olhar distante e a impressão de
querer se esconder. Percebe suas limitações, se entristece com sua pouca
habilidade de aprender. Porém, tem coragem de continuar. Todos os dias, N. está
presente. E seus companheiros? Como comungam do mesmo espaço e alguns da mesma
história, tentam incluí-lo na vida social: joga bola e ensaia algumas corridas
curtas.
Prossigo com J., muito inteligente, astuto, de olhar
ligeiro e sabe buscar o que quer. Tem bom aproveitamento em Matemática e
satisfatório aproveitamento em Língua Portuguesa. Sua preferência: jogar bola.
Ah! Por isso seus olhos brilham, a liberdade se expande e como um menino feliz,
vibra, corre e sorri.
E. e No. são duas crianças que buscam (cada um a sua
maneira) sobreviver num mundo que as exclui e as acusa de ser quem não são. E o
mais estranho e cruel: os acusados muitas vezes acreditam que são
“feiticeiros”, dotados de um poder que destrói. Resgatar a capacidade de
acreditar em si mesmo, de acreditar nas pessoas que os amam é um processo
lento, mas a esperança está no “amanhã”.
Este menino que ora apresento é sinal de perseverança.
Ch., portador de necessidades especiais, chegou ao projeto em cadeira de rodas...
Mas, há esperança, é oficialmente nosso goleiro, e acredito que isto ajudará
para que possa desenvolver outras habilidades. Interage com facilidade e
participa de todas as atividades. Apoiando-se nas paredes, nas carteiras ou no
ombro amigo chega aonde quer chegar.
A., esse menino prefere as ruas, mas se convidá-lo
para jogar bola, isto sim o faz feliz e participativo. Se tocar uma música? Seu
corpo se transforma, seu semblante se ilumina e todo o movimento que poderia
fazer com um lápis, faz com o corpo, demonstrando-se numa habilidade única e
uma arte que encanta.
D., o menino motivador do projeto. Dotado de uma
capacidade impressionante de cuidar dos animais, os defende, não maltrata, nem
mesmo os gatos que normalmente são mortos por serem sinais de feitiço. Se por
um lado cuida dos animais, por outro, maltrata e fere crianças e adolescentes.
Não tem medo, não é amado, todo o bairro o conhece e teme. A escola formal já
não o aceita. Necessita de atenção especial, um olhar que transcende o espaço
escolar, e quando recebe atenção modifica seu comportamento. Como resultado
disso começa a soletrar e reconhecer as letras, e isto para mim é fabuloso.
Atualmente, destaca-se na matemática e apesar dos doze anos, infelizmente
trabalha como um adulto. Faz portões, portas, janelas, fogareiros, grades,
utiliza instrumentos de corte e solda. Agora todos o chamam para o trabalho.
Todos os dias vem ao projeto e partilhamos os sonhos de um menino que aprendeu
a ser adulto.
Al.‒ magro, magro, magro ‒ por vezes não se alimenta.
Nunca frequentou a escola. Pelos colegas é chamado de panina (homossexual),
pois afirma categoricamente que é menina, e quando seus colegas o chamam de
panina, ele sorri e diz: eu sou. Há pouco tempo, foi adotado, depois
abandonado, então voltou a morar com a mãe... Depois fugiu, não foi
encontrado... Voltou quando quis. Estava num lar em outro Estado.
Apresento I., um menino que frequenta a 5ª classe em
uma escola pública. Está conosco desde o início do projeto, sente-se em casa,
muito habilidoso nas disciplinas e muito simpático com os colegas. É o coração
do projeto, dedicado, gentil, atencioso, prestativo, preocupado com a situação
social que vive sua família, especialmente sua mãe. Recebe orientação conforme
sua habilidade e aprende com muita facilidade.
O aluno D. é a pura expressão da criança que deseja
aprender, porém não assimila, não reconhece, não diferencia sílabas e números.
Está conosco desde 2010, utilizamos diversos métodos, porém nada é suficiente
para despertá-lo. Menino tímido, sempre assustado, com conflitos e doenças
graves na família. Sua mãe quer que seu filho aprenda, mas já percebeu as
dificuldades e poucas habilidades dele.
De olhar ligeiro, pés descalços, pernas ágeis, sorriso
simpático e uma situação social que fere: eis o menino K. Nenhuma concentração,
nenhum interesse em aprender. A melhor maneira de conversar com ele é estar na
rua, e quando responde por que não foi ao projeto diz: “veja, não tenho
chinelo”.
A esperança é uma força que nos impulsiona a caminhar.
Digo isso porque o aluno Mb. está alfabetizado e mais, despertou e tem
condições de frequentar a 3ª classe no próximo ano. Ele está conosco desde
2010.
O aluno R. também emociona e nos faz acreditar que ‒ com
determinação, empenho, paciência e esperança ‒ é possível vencer as
dificuldades. Ele está conosco desde 2010, repetiu duas vezes a 2ª classe, e
pela lei do Estado teria que deixar a escola. Apesar da cédula constar oito
anos, ele deve ter mais de 10 anos. Com uma grande cicatriz na cabeça, com
baixa autoestima e uma situação social complicada, ele desperta e lê com
habilidade, ele desperta e resolve equações, ele desperta e agora sorri,
dialoga, brinca e desenha com tanta leveza que parece que a vida foi
libertada.
O aluno Wi., oito anos, capacidade intelectual de três
anos. Acredita que sabe, que lê, que assimila e optamos por não tirar esta sua
ilusão. Termina o ano letivo sem compreender, sem sequer conseguir escrever seu
nome.
O aluno Wa. é um exemplo de que é preciso acreditar
sempre na capacidade humana, na capacidade que o ser humano possui de nos
surpreender. Durante todo o ano Wa. apresentou inúmeras dificuldades e
aparentemente não teria condições de transitar para a 3ª classe. Retomo o
“Pequeno Príncipe”: “O essencial é invisível aos olhos” (…) “Só se vê bem com
os olhos do coração”. Esta afirmação pode não ser científica, racional, mas
revela a beleza da capacidade humana. O aluno Wa. transitará para a 3ª classe.
Portador de necessidades especiais, com seu modo próprio de ver e estar no
mundo, há seu tempo descobriu as palavras, e aprendeu a
“so- le- trar.”
Continuaremos a nos aproximar da vida dessas crianças
e adolescentes e com eles poderemos modificar conceitos e preconceitos, mitos e
tradições. Sobretudo, acreditar na capacidade que o ser humano tem de nos
impressionar, de nos encantar, de transformar as dificuldades em tarefas
simples. Em recuperar se preciso for à inocência esquecida, o sonho adormecido,
os desejos que brotam do coração feliz e amado.
Angola a melodia feliz de seus batuques, palmas,
canções, gargalhadas; a sintonia do coração quando todos os dias nos reuníamos
debaixo da nossa árvore e cantávamos a liberdade; o olhar atento; a palavra de
luz; o sorriso escancarado nos alegra e enche o nosso coração de paz e saudade.
Ah! Saudade que faz com que as teimosas lágrimas caiam como um dia de chuva no
inverno.
Foto do Acervo Irmã Mari |
E, termino como comecei: como um vento suave,
passaram-se dez anos. Agora regressamos, pois regressar é reunir dois lados.
Mas, descobri que há apenas um lado: O AMOR.
PÁSCOA...
É tempo
de expandir a VIDA
que superou a dor e a morte,
que por um momento nos deixou
sem norte,
mas que em seguida apareceu deslumbrante e forte, e deixou-nos a
certeza
de que Cristo RESSUSCITOU.
É tempo
de acordar a alma
e descobrir com calma
que Páscoa é a travessia
que se renova
na missão de todo dia.
FELIZ E
ABENÇOADA PÁSCOA A TODOS!
Aos
irmãos e amigos Angolanos, minha gratidão para sempre. Foi com vocês que eu
aprendi a acordar a alma.
OBRIGADA! Um grande abraço.
Li esse texto e dei ouvidos a essa voz da qual espero compartilhar ressonâncias.
ResponderExcluirUm retrato cruel da realidade, onde a autora conseguiu trazer beleza, leveza e esperança.
ResponderExcluir