Houve
uma sexta-feira treze em 1974... Andava de namoro com Pedro. Rapaz baixinho, de
cabelos pretos e lisos, com olhos puxados, ainda que ocidentais. Íamos a cinema
e teatro, líamos livros em voga. Com o grupo de amigos em comum, que agregava
jovens professores paulistas e paulistanos, vasculhava o que tinha de lazer na
cidade de São Paulo. A escolha dos passeios era liderada pelos mais velhos. E
dessa forma, como mascote do grupo, achava aquilo tudo muito brega, mas
instigante.
Fomos
a apresentações de cantores, dentre as quais minha memória destaca a de Nélson
Gonçalves, numa cantina no bairro do Ipiranga. Fomos às casas de samba que se
espalhavam pela Avenida Ibirapuera. Fomos a uma peça teatral curiosamente
montada em circo instalado no centro da cidade. Ao teatro municipal ouvir a
Orquestra Sinfônica. Ao casamento de amigos num salão de festas na Moóca.
E
houve o dia em que ele foi me visitar em casa e conversamos, no portão. Ele não
pediu para falar com meu pai e nem para ficarmos noivos sem avisar a família,
como faziam alguns amigos à época. Não me fez nenhuma proposta sedutora ou
amorosa. Revelou-me sua opção sexual e sua paixão por Fernando.
Houve
outra sexta-feira treze em 1984... Que começou bem antes.
Meu
pai estava gravemente doente desde as primeiras horas do dia primeiro de
janeiro de 1982, quando fora vítima de um Acidente Vascular Cerebral.
Sofreu
muito durante os dois anos e meio que passou no leito. A psicomotricidade fina
lateral direita fora afetada, assim como toda a parte verbal. Quando não
acompanhava a leitura em voz alta que eu fazia de seu livro preferido, advertia
com adequado sinal para que interrompesse. Localizava-se perfeitamente no tempo
e entendia imagens, acompanhando programas de TV.
Apontava
para a porta ao entardecer, aos sábados. À época, o governo obrigava os postos
a encerrarem suas atividades de maneira a não vender combustível nos finais de
semana, contendo o consumo. Meu pai apontava a porta para que eu me lembrasse
de deixar o tanque do automóvel cheio. Respirava aliviado, quando eu pegava a
chave do carro. Quando eu regressava, ia ter com ele que me sorria com o olhar:
que era o modo como podia. Brincava com ele, associando gestos à fala para
dizer que o carro já tinha ido ‘dormir’.
No
dia doze de julho de 1984, eu estava de férias e combinara, via telefone, com
uma colega de um curso de especialização ministrado na capital que iria
visitá-la na cidade litorânea onde ela residia.
Mas
o dia seguinte foi a sexta-feira treze de 1984, na qual tive de me despedir de
meu pai. Por volta das quatro horas da manhã, ele se foi para sempre.
Finalmente, descansou.
Outras
tantas sextas-feiras treze ocorreram. Não me lembro delas.
–
Melhor não prestar atenção!
A
vida seguiu: muitos dias felizes vieram... Construí minha carreira e constituí
minha família.
Hoje
é sexta-feira treze, do mês de janeiro do Ano do Dragão.
Comecei
um novo curso de uma nova modalidade de prática corporal! É sempre bom estar em
forma para poder enfrentar as surpresas que a vida nos reserva, perante as quais,
algumas vezes, só nos resta balançar os ombros, relaxar e superar.
REFERÊNCIA
MEROLA, Edna Domenica. Sexta-Feira Treze. No Ano do Dragão. Florianópolis: Postimix. 2012. P 31.
Domingo, 15 de
fevereiro de 2015.
Diálogos sobre a
Crônica 'Sexta-Feira Treze'. Edna Merola, Nestor Rech, Sandra Souza, Valda
Valdemar, Amaridis Mello, Eslávia Hugentobler, Léa Silva.
Escrever
é simplesmente registrar o que vivemos? Deve-se avaliar a utilidade de uma
narrativa ou sua beleza? Histórias ensinam comportamentos e atitudes? Histórias
são puro entretenimento? É possível desvelar intenções do (a) autor(a) tomando
apenas o texto? É preciso recorrer a dados biográficos do autor, para entender
seu texto?
Sandra,
Nestor, Valda, Eslávia, Léa, Amaridis escreveram suas interpretações sobre a
leitura de Sexta-Feira Treze. Edna
escreveu em respostas observações que tocam alguns tópicos da teoria literária:
ficção e realidade; catarse e leitura; emoção e razão na literatura,
'destinatários' do texto e 'ensino' de valores.
SANDRA:
Oi, Edna. Bonita tua história com H de sexta-feira 13. Toca fundo no coração
tua relação com teu pai. A gente cresce e aprende muito com essas vivências que
nos acompanham a vida toda. Né?
EDNA:
Oi, Sandra, minhas crônicas misturam ficção com realidade. Mas o amor pelo meu
pai é verdadeiro como você bem percebeu ao ler essa crônica do livro No Ano do
Dragão. (O amor pela minha mãe está
retratado em outro trecho do mesmo livro).
ESLAVIA:
Obrigada por dividir com a gente. No teu jeito espontâneo, querendo brincar com
a própria sorte, sem esconder as sequelas.
EDNA:
Na minha experiência como escritora acabo usando recursos do psicodrama o que
dão um tom realista aos personagens. Acredito que nenhuma escritora esconde
sequelas. No meu caso, por exemplo, uma sequela evidente é a dos estudos que
faço desde 1982 e que imprimiu essa marca de ‘viver’ a ação (drama) do
personagem com verdade. Esse processo pode vir a gerar catarse, ou seja, é
libertador em potencial. Acredito que a catarse que ocorre pela leitura é fruto
da identificação do leitor com algo que ele escolhe (no texto) para abrir
canais de sintonia com a criação de outrem.
LÉA: Não podemos deixar de imaginar as
"sextas 13"! Elas nos revelam alegrias, tristezas e algo mais que
devemos aprender: o amor e a superação para uma vida melhor. Achei muito linda
a história do teu pai e a tua participação foi fantástica.
EDNA:
As aprendizagens do campo da ética por meio da leitura são por conta do leitor.
Não há texto que garanta que uma lição será extraída por todos que lerem. A
“superação para uma vida melhor” é uma decorrência da leitura (no nosso exemplo
essa leitura foi feita pela Léa).
ESLAVIA:
Desejo que vivas muitas sextas-feiras treze ainda com ensejos bem mais
positivos.
EDNA:
Oi, Eslávia, agradeço e retribuo seus votos. Faço-o por escrito, num contexto
de comunicação onde fica informado que nos conhecemos e interagimos socialmente
(isto é realidade compactuada). Já a escrita literária é representação da
realidade. Portanto, não é idêntica à realidade. Duas pessoas diferentes
poderão representar um fato ocorrido de maneiras totalmente diferentes. Isto
quer dizer que mesmo a representação de um fato ocorrido pode não ter por
referência uma única realidade compactuada. Mas se as representações feitas por
diferentes sujeitos forem semelhantes, a referência tende a ser vista como a
realidade compactuada.
NESTOR:
Parabéns, professora Edna! Não tem dia ruim contigo, mesmo sexta 13. Linda
crônica, memórias do coração.
EDNA:
A expressão "memórias do coração" (se não me engano) foi cunhada por
Nestor. Como Nestor bem disse "memórias do coração" estão incluídas
na crônica Sexta-Feira Treze.
Pude
constatar que a representação textual que fiz do amor filial (em Sexta-Feira
Treze) encontraram ecos nas representações das pessoas. A partir daí fiquei
muito feliz com as observações expressas, já que o amor filial é um tema
pertencente à humanidade.
Algumas
“memórias do coração” se fazem presentes em minhas obras: No Ano do Dragão
(2012) assim como em A Volta do Contador de Histórias (2011) e De que são
feitas as Histórias (2014).
No
entanto, as minhas crônicas misturam fatos inventados com fatos que vi ou vivi
e que conto do meu jeito (cada contadora teria sua versão).
Não
sou historiadora, minhas crônicas podem retratar 'um tempo', mas não 'a verdade
instituída' sobre esse tempo.
AMARIDIS:
Como sempre, adorei ler um pouco de sua juventude e de seu carinho, e senti seu cuidado em atender todos os
sentimentos que sabia que iria agradar e acalmar seu maravilhoso pai. Entendi,
que para você o dia treze foi a
partida... Para o Melhor Caminho - caminho da LUZ - da PAZ. Tenho certeza de
que ele ficou muito feliz pela sua lembrança...
EDNA:
A partida para o caminho da Luz é a interpretação dada por Amaridis sobre a
morte que separa pai e filha. Trata-se de uma inferência pautada na
religiosidade da leitora. Mas não resta dúvida de que o texto sustenta um tom
de homenagem póstuma ao mencionar o sofrimento terminal do pai que ‘descansou’
na madrugada da sexta-feira treze.
AMARIDIS:
Entendi, que pra você o dia treze foi a partida... Para mim, tenho sempre um pé
atrás... Sinto um GATO PRETO que me atrapalha. Coisas da vida, amiga.
EDNA:
A expressão sexta-feira treze que é o título do texto remete ao ‘gato preto’, a
algo que atrapalha e que deixa com um pé atrás. No texto, isso é ilustrado pelo
relato de duas perdas de intensidades diferentes: a de um amor platônico e a do
pai. A primeira parece funcionar como um ‘truque narrativo’ para dar ênfase à
segunda.
O
idealismo no sentido de termos fé em nosso poder de persuadir leitores ou
ouvintes por meio de histórias é bem interessante. Vivemos num mundo em que (na
maioria dos casos) os pais não são mais os heróis de seus filhos. Mas não há
porque abandonar a minoria que pode ainda usufruir de sentimentos como o do
amor filial.
Desta
feita, para essa minoria dedico Sexta-Feira Treze.
A
minoria que cultiva o apreço e o amor entre familiares, a meu ver, está prestes
a ser relegada. A sociedade atual, dessa forma, parece viver sua sexta-feira
treze.
VALDA:
Sexta feira treze: ano do dragão[...] tudo terminou com a perda do seu pai, mas
também começou a sua história de vivência de valores, pela compreensão de que
seu pai venceu o dragão [...] e se despediu feliz, por ter uma filha que ele
admirava e amava muito. Parabéns, Edna! Você foi muito especial para seu pai!
Foi mais uma história maravilhosa de vida, de amor e de saudade! Sexta- feira
Treze: seu pai e você venceram o dragão!
EDNA:
No horóscopo chinês, o Dragão é associado ao que nunca cessa de encantar a
imaginação. Sua leitura sobre o amor paterno e filial “como uma história
maravilhosa de vida, de amor e de saudade” é por isso bastante válida no
sentido de buscar símbolos universais num texto literário.
Muito bonito, Edna, adorei. Parabéns!
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