'Orelha' e contra-capa do livro No Ano do Dragão. Florianópolis: Postimix. 2012. |
A vida me deu menos colo do que sonhei. Alguns
amigos queridos me foram levados pela vida... Só ela sabe e tem seus motivos de
fazê-lo. Outros me foram tirados pela morte... E dela ninguém quer saber (e por
vários e legítimos motivos).
– Falemos de nascimento!
Vim para esse mundo sob um signo do horóscopo
ocidental do elemento ar, sob um signo do horóscopo chinês relativo à água. Mas
a vida me fez aprender com as tarefas de deitar raízes nas terras trabalhadas e
de acender o fogo dos rituais do mister de ensinar. À revelia dos territórios
de aprendizes estranharem minha natureza magistral afeita à água e ao ar.
Sei que relatos lineares acalmam a plateia...
Histórias assim contadas são músicas de acalanto para o leitor enfarado que
precisa vencer a insônia. São, no entanto, momentos de sínteses existenciais
que me fazem pegar um lápis e registrar as descobertas...
(– Sobre a vida passada? – perguntará o leitor.)
Refiro-me às descobertas sobre a vida temporal em
especial faceta: sem que se tenha por meta colocá-la linearmente como se
fôssemos seres que aceitássemos viver cada processo como uma simples sucessão
de: um começo, um meio e o fim.
O processo de criação é alquimia. Seu resultado
almejado é transformar todo metal em ouro. A transformação na alquimia é
interior e uma alteração ocorre, concomitantemente àquela.
Alteração significa ação do outro (alter) dentro de nós. A ação social é
matéria prima da constituição do sujeito: é modificadora e gera crescimento.
Enquanto
tecia essas considerações fazia o ritual necessário para acessar seu correio
eletrônico. Interrompeu as reflexões para ler um PPS – apresentação
conjunta de texto, imagem e som exibidas em slides
– que uma amiga enviara.
Mostrava
peculiaridades de um ninho construído junto a uma janela de um prédio e
fotografado por um morador que achou aquilo surpreendente e fez circular na
Internet destinando-o principalmente às crianças. Adultos se apropriaram do
contido nas imagens, texto e som e associaram-no à fé religiosa e comprovação
da existência de Deus.
Durante a construção do ninho, a fêmea conferia a
obra de arte do macho. O ninho foi construído em forma de círculo com minúsculos
pedacinhos carregados no bico do João-de-barro, por aproximadamente dois meses,
em jornadas de oito a dez horas de trabalho. O pássaro usou diferentes
materiais nas diversas fases da construção. Iniciou com materiais mais duros e
terminou com os mais flexíveis. O ninho ficou bem fechado e protegido,
assemelhando-se a uma caverna. Minha amiga acrescentava a tudo isso seu
comentário:
– Bela obra deste pássaro e que cavalheirismo ele
tem... Os homens têm muito que aprender com ele. Atualmente, enquanto as mulheres
constroem o lar, o homem além de não elogiar ainda tece críticas ferozes...
Geralmente é assim: quem nada faz em conjunto, só critica o que foi feito em
prol do outro. Acredito que o correto é substituir crítica por sugestões que
levem ao aprendizado.
Habituada a se comunicar sob a égide de efemérides,
respondeu-lhe:
– Grata pelo envio, minha amiga. Em
época de Páscoa, na qual se ouve falar tanto em renovação e êxodo (saída dos hebreus
em busca do Egito...), trazer o tema da construção e dos feitos em
processos demorados (que contam sempre com as mãos de arquitetos
transcendentais) é muito bem lembrado e inspirado. Então o João de Barro passa
a ser um pássaro cavalheiro nesse seu dizer poético.
A amiga dos longínquos tempos de escola
respondeu-lhe:
– Oi, amiga, tudo bom? Você consegue dar brilho a
algo tão simples e pueril. É uma fada a pulverizar ideias e fazer as pessoas
pensarem. Saudade, beijos.
Havia intuído que a amiga estava um pouco
ressentida. Após receber sua resposta, confirmou que sim, e completou sua
resposta, elogiando-a:
– Um Universo de conforto se constrói
com versos colocados a cada dia: como você tem feito em sua vida. Parabéns,
minha amiga, o mundo precisa de Joões (como o pássaro cavalheiro) e de Joanas
como você que tanto tem abrigado
pessoas. Grata por me abrigar em seu rol de amigas... desde 1983.
Não perguntou a quem a amiga se referia,
quando dizia que há pessoas que gostam de criticar. Sabia que ela incluía em
seu vasto rol de atividades a dedicação a uma associação beneficente e que
provavelmente organizou algo para lembrar a Páscoa. Então escreveu à amiga:
– Meu recado para a turma que pratica a
crítica aos outros como um esporte radical é que aguardem o sábado de Aleluia
que é o dia apropriado de malhar o
Judas!
Em respeito às circunstâncias, omiti, em meu
comentário, que estudiosos de comportamento animal afirmam que o joão-de-barro
não admite que sua parceira o traia. Quando isso acontece, o parceiro a
aprisiona definitivamente no ninho, construindo a vedação total da casinha, com
ela dentro. O que considero grande falta de cavalheirismo!
A solidariedade não se compromete com a
cobrança e o aprisionamento. A solidariedade espontânea é a verdadeira prática
beneficente, pois constitui sujeitos: humaniza.
A frieza, o fechamento, a ilusão, a imaginação
inoperante, a inconsciência e a inconstância se dissipam na alegria do
acolhimento.
É por esse movimento de tropismo que se dá a busca
da luz, da novidade, da clareza, da conscientização...
O processo alquímico de encontro transforma o banal
em preciosidade, transforma a busca interior em mudança social, transforma a
busca em iluminação.
Esse processo que parece tão complexo faz parte de
ações corriqueiras como as relativas à leitura.
O movimento de tropismo em direção ao encontro do leitor é busca processual cujo resultado
é um livro. Mas um livro sem um leitor é um buscador sem meta: um dragão opaco,
franzino, medroso e apagado.
– Caro leitor (cara leitora), acenda as luzes da
ribalta. Pegue o dragão pela mão, leve-o ao proscênio. Ateie o fogo... Inicie
seu ritual de leitura... Afinal, só você pode fazer de um objeto como um livro
algo fantástico como andar, confortavelmente, de mãos dadas com um dragão!MEROLA, Edna Domenica. De Mãos Dadas com um Dragão. In: No ano do Dragão. Florianópolis: Postimix. 2012.
O texto levou-me a ponderar sobre a força do dragão. Sei que tenho um dentro de mim que necessita ser compreendido e libertado. A grande transformação será como liberá-lo ao ponto de aprender a andar de mãos dadas: eu e o dragão. Será que conseguirei?
ResponderExcluirEscrita inteligente, ao estilo Edna.
Nosso potencial criativo e nosso super ego podem armar disputas dentro de nossos próprios saberes. Há momentos, no entanto, que ambos se unem como crianças de mãos dadas... Ou como uma mulher idosa de mãos dadas com sua força de vontade dragonina. Permito-me crer nesses momentos plenos.
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