"Considerado o pai dos contos de horror e terror, Edgar Allan Poe (1809- 1849) foi também um dos autores que mais influenciou o Simbolismo francês. Textos como “O Gato Preto”, “Retrato oval” [...] “A queda da casa de Usher” são excelentes exemplos de literatura gótica." (FRATUCCIL, 2015.)
O Conto o Gato Preto, de Edgar Alan Poe foi escrito em 1843. À época, o uso temático da psicologia do terror, envolvendo o medo da monstruosidade 'diabólica' e da loucura 'degenerescente' despontava na literatura mundial. Em anos
posteriores, com a literatura romântica, e em períodos posteriores, com as correntes de pensamento afeitas ao ALIENISMO, o tema da loucura passará a ser recorrente. O conto O Alienista (Machado de Assis, 1882) aborda o tema referido para fazer uma caricatura sobre a cultura do manicômio presente na realidade, mas também recorrente na ficção.
O conto O Gato Preto trata da construção de um
personagem narrador paranoico. Segundo a psiquiatria clássica, nessa
patologia, o raciocínio é preservado, mas a confiança e a confiabilidade
acham-se alteradas. Essas prerrogativas são desenvolvidas com os vínculos que
se formam nas relações entre as pessoas. Ter confiança e ser confiável são habilidades que dependem do ambiente para serem desenvolvidas na pessoa. O conto trata da precariedade do estabelecimento de
vínculos afetivos. O amor ou o ódio é expresso apenas em relação ao gato preto
(Plutão). O personagem narrador assassina a própria esposa. Às vésperas de
sua condenação à morte escreve uma carta despida de emoções. O relato do
personagem é tão frio quanto a lâmina do machado que usara para matar a
mulher.
Em breve revisão de literatura para esse estudo constatou-se que há
textos que pretendem analisar o conto O Gato Preto recorrendo a interpretações
afeitas às ciências psicanalíticas. O grave erro dessas análises é o de
confundir autor com personagem narrador, tirando Edgar Alan Poe de seu descanso
eterno para colocá-lo no "divã". De minha parte, mesmo sendo
especialista em Psicologia, mas não tendo nenhuma especialização em Literaturas
de Língua Inglesa, deixo que descanse em
paz Edgar Alan Poe e que viva sua obra ainda hoje tão atual.
A atualidade do conto O Gato Preto consiste em representar a monstruosidade pelo recurso do duplo: um Gato Preto que depois de assassinado pelo personagem narrador retorna na vida desse como um ser que encarna o Mal.
O duplo remete o leitor contemporâneo do texto de Poe a estabelecer paralelos com a leitura do social relativos à precariedade da individualidade ou à crise da identidade na contemporaneidade.
A réplica ou o duplo de um ser "é habitado pelo Vazio ou pelo Mal. Constitui, então, um corpo de exceção frente à ordem humana estabelecida e passa a ser percebido ao modo de uma aberração monstruosa, pois em tal lógica o negativo – a ausência – seria fonte do que é inumano." (MARKENDORF, 2013).
Para a apresentação realizada em 10/7/2015, no COLÓQUIO MONSTROS À MOSTRA: evento organizado pelo
Professor Dr. Márcio Markendorf na UFSC, no CCE, parti da unidade de
efeitos no conto de Edgar Alan Poe, para tentar elaborar como o narrador em O
Gato Preto mantém o leitor refém de seu relato estranho para causar
perplexidade, ao final.
O duplo (gato preto) comparece como elemento catalisador da criação de
tal efeito.
No imaginário do
horror, os monstros são engendrados como imagens desmedidas, frequentemente concebidas
como figuras persecutórias de excesso e/ou de exceção, e muitas vezes criadas
com base na imediata oposição ao humano ou natural. [...] a presença do
personagem semelhante na ficção deflagra um forte elemento persecutório, uma
vez que a duplicação de um sujeito implica a materialização do lado negro
da persona e, por isso mesmo, frequentemente torna-se um componente
aliciador da morte e perpetrador de crimes. (MARKENDORF, 2013).
"Considerado o pai dos contos de horror e terror, Edgar Allan Poe (1809- 1849) foi também um dos autores que mais influenciou o Simbolismo francês. Textos como “O Gato Preto”, “Retrato oval” [...] “A queda da casa de Usher” são excelentes exemplos de literatura gótica." (FRATUCCIL, 2015.)
O Conto o Gato Preto, de Edgar Alan Poe foi escrito em 1843. À época, o uso temático da psicologia do terror, envolvendo o medo da monstruosidade 'diabólica' e da loucura 'degenerescente' despontava na literatura mundial. Em anos posteriores, com a literatura romântica, e em períodos posteriores, com as correntes de pensamento afeitas ao ALIENISMO, o tema da loucura passará a ser recorrente. O conto O Alienista (Machado de Assis, 1882) aborda o tema referido para fazer uma caricatura sobre a cultura do manicômio presente na realidade, mas também recorrente na ficção.
A atualidade do conto O Gato Preto consiste em representar a monstruosidade pelo recurso do duplo: um Gato Preto que depois de assassinado pelo personagem narrador retorna na vida desse como um ser que encarna o Mal.
O duplo remete o leitor contemporâneo do texto de Poe a estabelecer paralelos com a leitura do social relativos à precariedade da individualidade ou à crise da identidade na contemporaneidade.
A réplica ou o duplo de um ser "é habitado pelo Vazio ou pelo Mal. Constitui, então, um corpo de exceção frente à ordem humana estabelecida e passa a ser percebido ao modo de uma aberração monstruosa, pois em tal lógica o negativo – a ausência – seria fonte do que é inumano." (MARKENDORF, 2013).
No imaginário do horror, os monstros são engendrados como imagens desmedidas, frequentemente concebidas como figuras persecutórias de excesso e/ou de exceção, e muitas vezes criadas com base na imediata oposição ao humano ou natural. [...] a presença do personagem semelhante na ficção deflagra um forte elemento persecutório, uma vez que a duplicação de um sujeito implica a materialização do lado negro da persona e, por isso mesmo, frequentemente torna-se um componente aliciador da morte e perpetrador de crimes. (MARKENDORF, 2013).
O CONTO O GATO PRETO E A CONFIANÇA/DESCONFIANÇA DO LEITOR:
Elementos
|
Apresentação da narrativa e
dos fatos perante o leitor
|
Narrador personagem: tem por
função construir a explicação da ilusão
|
Muito estranha (passado) / embora familiar (presente)
|
Verossimilhança e o narrador
|
Louco não sou/ não estou
sonhando/ quero aliviar minha alma (amanhã morrerei) / meus sentidos rejeitam
meu próprio testemunho
|
Propósito do narrador
|
Apresentar ao mundo, de forma
simples, sucinta [...] meros acontecimentos domésticos.
|
Passividade do narrador perante
os fatos
|
Devido a suas consequências,
tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No
entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa
senão horror – mas, em muitas pessoas, talvez lhes
pareçam menos terríveis do que barrocos.
|
Uso do tempo
• Tempo narrativo em 'flash back'.
• Tempo narrativo em 'flash back'.
•
O
passado é onde se constrói o ‘estranho’.
•
É
no fantástico-presente que a dúvida se mantém.
•
1º
parágrafo: “amanhã” (refere à morte)
•
Continua
o relato: infância, juventude, casamento (cedo), idade adulta.
•
Prepondera
a Noite, sucedida pela Manhã, pois nada é situado no período da
tarde que seria a possibilidade de intermediações (das quais o personagem narrador é incapaz).
•
A
escrita do narrador é dirigida a alguém que se situa entre um jurista ('o
apreço aos animais testemunharia um bom caráter) ou um psiquiatra (relatar a
infância, juventude, "casou cedo", alcoolismo, crendice/não
crendice,...).
•
O
tom é confessional como uma carta de despedida da vida, sem tom saudosista, com
racionalismos procura construir um depoimento com lógica aparente (como um
silogismo, posto que a lógica ética não está ao alcance existencial do personagem narrador).
• Narrativa
em primeira pessoa funciona para construir a explicação da ilusão e ‘captar’ o
leitor.
Gênero: Conto
Gênero: Conto
•
A
narrativa é fantástica: oscila entre a loucura e o sobrenatural.
•
A
loucura é o fantástico-estranho ou o sobrenatural explicado.
• O
personagem narrador conta que está fazendo uma confissão escrita, na qual não
dirá a verdade. Lembra uma carta. Não tem identificação nominal do
emissor e nem do destinatário.
•
O
narrador escreve à véspera da sua morte, porém adverte: “não espero nem peço
crédito”. Não pede que acreditem nele e
nem confia no outro.
• O conteúdo narrado é autorreferente, mas o
personagem narrador não aprofunda a introspecção. Para tal, precisaria
ser capaz de confiar num interlocutor.
Mas é incapaz disso. Por ser psicopata, seu padrão
comportamental é antissocial, incapaz de ter empatia por alguém ou de sentir
remorso por algum ato ou de ter autocontrole.
A Frieza do Personagem psicopata no relato da crueldade
A Frieza do Personagem psicopata no relato da crueldade
•
Na
tentativa de diferenciar seu ego de outro ser, o personagem narrador tenta:
• Cegar o não-eu
•
Enforcar
o não-eu
•
Emparedar
(enterrar, tratar como morto) o não-eu.
•
Remissão
ao Édipo às avessas, pois o personagem narrador de O Gato Preto cega o
‘outro’ que o ‘persegue’ (ou seja, o gato Plutão).
• A
tônica do relato é a frieza usada na justificativa da perversidade. "Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que,
a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que,
antes, me amara tanto. Mas
esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me
final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade."
. Não há tão pouco a autopiedade. "Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal."
Estrutura Narrativa: Apresentação dos personagens
. Não há tão pouco a autopiedade. "Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal."
Estrutura Narrativa: Apresentação dos personagens
• Protagonista
(que é o próprio narrador)
“Desde a mais tenra infância, destaquei-me pelo temperamento dócil e humano”.
“Desde a mais tenra infância, destaquei-me pelo temperamento dócil e humano”.
•
Animais
de estimação são citados (quanto à infância)
•
Os
pais são citados (somente na infância)
•
Animais
de estimação (quanto à juventude e no ‘início’ da vida conjugal).
• Plutão
(o gato preto é o único que tem NOME, ou seja, é o único ser a quem o
protagonista atribui uma IDENTIDADE). O nome do gato não é gratuito, obviamente. Segundo a Mitologia, Plutão era o imperador dos
infernos.
Estrutura Narrativa: Complicação
Estrutura Narrativa: Complicação
• O
alcoolismo - após muitos anos de devoção ao seu querido gato, seu caráter sofre
uma mudança sem nenhum motivo aparente, pois ele é dominado pelo demônio da Intemperança:
"Mas a minha doença se apoderou de mim – afinal que doença se compara ao
álcool?!”.
• O
gato morde a mão do personagem narrador e ele arranca um olho do animal.
• O
narrador arranca um dos olhos do gato, pois os olhos nada mais são do que o
espelho da alma, e por algum motivo o olhar do felino o incomodava; talvez seja
pelo fato dele ver-se refletido no olhar dócil do animal que tanto o amara. O
gato passa a evitá-lo e ele enforca o gato. Há um incêndio que consome a casa,
salvo uma parede com uma ‘mancha’ (imagem fantástica do gato). Passa a beber
mais e, numa noite, num bar acha ‘outro’ gato preto.
Estrutura Narrativa: Desfecho
Estrutura Narrativa: Desfecho
• O
gato o acompanha a todos os lugares e quase o derruba na escada que descia para
ir à adega com a mulher.
• Pega
o machado para matar o gato, mas a mulher segura sua mão, então ele a mata.
• Empareda
o cadáver.
• A
polícia descobre o crime, pois a parede denunciava ter sido alterada. (O gato
geme dentro da parede.).
Disposição das Cenas
Disposição das Cenas
• Convívio
harmônico com os animais
“Desde a infância,
tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura
de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus
companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam
possuir grande variedade deles. ”.
Qual
emoção essa cena lhe despertaria?
• Convívio
rancoroso com o animal de estimação. Gato mordeu a mão dele e ele mutilou o
gato.
• “Tirei do bolso um canivete,
abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua
órbita um dos olhos! ” .
Qual emoção essa cena lhe despertaria?
•
Convívio
perverso com o gato, após a mutilação:
•
“o
gato [...] fugia com terror extremo [dele e isso o magoava] Mas esse sentimento
em breve cedeu lugar à irritação. E então apareceu [...] o espírito de
PERVERSIDADE.”
•
Enforcou
o gato no dia em que ‘aconteceu’ o incêndio da casa dele.
Qual
emoção essa cena lhe despertaria?
•
Convívio
com a ausência do gato e com o alcoolismo.
•
‘Acha’
um segundo gato.
•
Assassina
a esposa.
•
Empareda o cadáver
Qual emoção essa cena lhe despertaria?
•
Convívio
com as buscas da polícia, já que emparedara o cadáver.
Qual
emoção essa cena lhe despertaria?
•
Na
última busca, o gato geme dentro da parede, a polícia descobre o crime.
Qual
emoção essa cena lhe despertaria?
Todas essas cenas são narradas pelo condenado à morte em sua carta sem expressar as emoções humanas esperadas (ódio, remorso, etc...). Isso vai aumentando gradativamente a perplexidade no leitor.
A não razão
Todas essas cenas são narradas pelo condenado à morte em sua carta sem expressar as emoções humanas esperadas (ódio, remorso, etc...). Isso vai aumentando gradativamente a perplexidade no leitor.
A não razão
•
O
narrador comete um homicídio: o da sua mulher, por motivo ignorado. Seu gato de
estimação é apontado como culpado de sua perversidade.
• "Ao referir-se à sua [do gato] inteligência, minha mulher, que, no
íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à
antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas.
Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque
aconteceu lembrar-me disso neste momento.”
• Incoerência
o ato cometido não corresponde com a sua justificativa: "Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque
reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele.".
• A
monstruosidade, em o Gato Preto, perpassa pela ausência da culpa e da
incapacidade de viver a experiência moral, esteticamente inserida pela presença do duplo que corrobora com a construção do efeito da perplexidade.
Poe como teórico da Arte propõe
|
No conto O Gato Preto
|
“ter sempre em mente o desfecho da narrativa e, de
acordo com esse desfecho, dispor as cenas, criar a atmosfera, de modo a
provocar no leitor um efeito definido”.
|
Há o efeito de perplexidade
|
Colocar-se contra o “moralismo da arte”
|
O personagem narrador não tem culpa, nem autopiedade.
|
Combater a “heresia do didatismo”.
|
O personagem narrador conta fatos hediondos, mas
“Não tentarei explicá-los”.
|
Diferenciar Verdade de Beleza.
Se misturadas, causam o “abastardamento”.
|
O horror e o terror são construídos pela ilusão (ou
seja, pelo oposto do que é verdadeiro ou real).
|
REFERÊNCIAS
FRATUCCIL, A. da S. A.- Aspectos da Literatura Gótica em Villiers de L’Isle-Adam. Ensaios sobre a Literatura do Medo.
MARKENDORF,
M. - O clone e a teoria da monstruosidade. XIII Congresso Internacional
da ABRALIC. Campina Grande, PB. 2013.
POE,
E. A. O Gato Preto. In: Histórias Extraordinárias. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
PAES,
José Paulo. Apresentação. In: Histórias Extraordinárias. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
PAIM, Isaías. Tratado de Clínica Psiquiátrica. Editora EPU.
PAIM, Isaías. Tratado de Clínica Psiquiátrica. Editora EPU.
Links
recomendados:
https://www.youtube.com/watch?v=bubwylnL76I (Cena do atentado de assassinato com machado no filme O Iluminado)
ANEXO
O GATO PRETO. Edgar Allan Poe.
Para a narrativa muito estranha, embora familiar, que ora
começo a escrever, não espero nem peço crédito. Louco, na verdade, seria eu se
o esperasse num caso em que os meus sentidos rejeitam seu próprio testemunho.
Louco, porém, não sou e, com toda a certeza, não estou sonhando. Mas como
amanhã morrerei, quero hoje aliviar minha alma. Meu imediato propósito é
apresentar ao mundo, de forma simples, sucinta e
sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. Devido a suas
consequências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e
destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não
produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes
pareçam menos terríveis do que barrocos. Talvez, mais tarde, haja alguma
inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais
serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas
circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum
de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o
sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que
me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de
animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com
eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava
de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu
caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de
prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me
ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode
ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um
animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões frequentes
de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher
disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não
perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos.
Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e
belo, todo negro e de espantosa sagacidade.
Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no
íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à
antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas.
Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque
aconteceu lembrar-me disso neste momento.
Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com
o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela
casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os
quais não só o meu caráter como o meu temperamento – enrubesço ao confessá-lo –
sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior.
Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais
indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida
ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência.
Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas
não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto,
porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de
maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o
macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu
mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool?
– e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se
tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu
mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de
minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha
presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão,
levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de
mim.
Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que,
súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que
diabólica, causada pelo álcool, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do
bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente,
arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de
vergonha, ao referir-me, aqui, a essa condenável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados
já os vapores de minha orgia noturna – experimentei, pelo crime que praticara,
um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um
sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível.
Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que
acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita
do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais
sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se
poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação.
Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio,
sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me
amara tanto.
Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E,
então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da
perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante,
tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos
primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários,
que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer
ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las?
Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do
nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos
como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda
final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de
violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me
levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao
inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno
do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de
lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o
porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum
para que me voltasse contra ele.
Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado –
um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que
isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente
misericordioso e infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel,
fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama
estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha
mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi
completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então,
me entreguei ao desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito
– entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma
sequência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de
acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes,
com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era
constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao
qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte,
resistido à ação do fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído
recentemente.
Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas
pessoas examinavam, com particular atenção e minúcia, uma parte dela, as
palavras "estranho!", "singular!", bem como outras
expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como
se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato
gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma
corda em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição – pois não poderia considerar
aquilo como sendo outra coisa –, o assombro e terror que se me apoderaram foram
extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me,
fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o
jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o
animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu
quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda
das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso
recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com
as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu
agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não
conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o
surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de
tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato
e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que
parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do
animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então frequentava, outro bichano
da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num
antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto
negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que
constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos
que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter
visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era
um gato preto, enorme – tão grande quanto Pluto – e que, sob todos os aspectos,
salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pelo branco em todo o
corpo e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de
forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente,
ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe
causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao
dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não
o conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para
casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse, detendo-
me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo.
Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se
pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha
mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois,
justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como
nem por que – seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia.
Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se
converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha bem
como a lembrança da crueldade que praticara impediam-me de maltratá-lo
fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele
qualquer violência; mas, aos poucos – muito gradativamente –, passei a sentir
por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como
se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a
descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto,
também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas
contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já
disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra,
em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de
meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela
minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele.
Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o
leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha
cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me
levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou
então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até
o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe,
abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior,
mas, sobretudo – apresso-me a confessá-lo –, pelo pavor extremo que o animal me
despertava.
Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e,
contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar –
sim, mesmo nesta cela de criminoso –, quase me envergonha confessar que o
terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais
puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me
chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía
a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu
enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande,
tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira
quase imperceptível – que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por
rejeitar como fantasiosa –, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de
contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E,
sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do
qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de
uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina
de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável – um ser
que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão
fora por mim desdenhosamente destruído... Uma besta-fera que se engendrara em
mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável
infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do
descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à
noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o
hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso – encarnação de
um pesadelo que não podia afastar de mim – pousado eternamente sobre o meu
coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que
restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos
companheiros – os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha
rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a
humanidade – e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, frequentes
e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava
nunca se convertendo na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas
domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a
morar. O gato seguiu-nos e, quase me fazendo rolar escada abaixo, me exasperou
a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror
pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria
sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo
o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o
detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta
instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por
súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa,
nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em
cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi,
depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao
poço do quintal. Mudei de ideia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma
mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da
casa. Finalmente, tive uma ideia que me pareceu muito mais prática: resolvi
emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As
paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam
sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de
endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma
chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega.
Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar,
introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse
descobrir nada que despertasse suspeita.
E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma
alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com
cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder
recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam
anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível,
preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com
ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois
tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada.
Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim
para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a
causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele
momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas
parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e
procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de
espírito.
Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado
alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também
durante a noite – e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa,
consegui dormir tranquila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele
assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia – e o meu algoz
não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro,
aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade
era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas
algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas.
Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada
podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade
futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial
chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação.
Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu
ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais
pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um
canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente
ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como
o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços
cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro.
A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se
para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse
contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de
triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência. – Senhores –
disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada – , é para mim motivo de
grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita.
Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de
cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem
construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu desejo de falar com
naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída.
Estas paredes – os senhores já se vão? –, estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada,
bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede
atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração. Que Deus me guarde e
livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma
voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e
abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito
prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um
grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter
surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes
com a sua condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me
desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de
policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento,
doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em
adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu,
ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único
olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao
assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado
o monstro dentro da tumba!