sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Dom Casmurro: um Otelo brasileiro. Edna Domenica Merola.

“Dom Casmurro é um narrador congenitamente embusteiro, já que nasce na narrativa e para a narrativa explicando-se através do engodo: adverte que seu cognome, "Casmurro", não deve ser entendido como está nos dicionários, isto é, teimoso", "obstinado", "cabeçudo" ‒ que é o que ele é; e, sim, como "homem calado e metido consigo" (capítulo 1) ‒ que é o que não é, pois é o único dono da voz nesse romance onde Capitu é implacavelmente silenciada." (SENNA, 2000).
Segundo Wellington de Almeida Santos, "o relato do velho e casmurro advogado se organiza segundo um rigoroso controle da palavra escrita" por meio dos recursos: "reprodução atualizada das falas do passado"; "fragmentação de textos incorporados à narração"; "comentários circunstanciais dos fatos passados"; reflexões do presente". 
A partir desses recursos, indagaremos sobre a tipologia psicológica ou a patologia do personagem narrador. Dom Casmurro (de Machado de Assis) é como Otelo (de Shakespeare) um ciumento doentio? Capitu foi vítima como Desdêmona? Para avaliar essa possibilidade compilamos trechos que referem à dissimulação de Capitu.
Os capítulos: XXV (No Passeio Público), XXXII (Olhos de Ressaca), XXXVI (Ideia sem pernas e ideia sem braços), XLII (Capitu Refletindo), XLIV (O Primeiro Filho), LXV (A Dissimulação), CXXVI (Cismando), CXXVIII (Punhado de Sucessos), CXXXII (O Debuxo e o Colorido), CXLVIII (E Bem, e o Resto?)  mostram qual é a imagem que Bentinho faz de sua mulher e que Dom Casmurro faz de todas as mulheres. O capítulo CXXXV refere a Otelo, peça para teatro escrita por Shakespeare, em que a protagonista feminina morre vítima de um mal-entendido provocado pelo maldoso Iago, valendo-se do ciúme doentio do mouro Otelo por sua mulher Desdêmona.


CAPÍTULO XXV: No Passeio Público

Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim:
‒Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.
‒Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se lembra?
‒É verdade, mas foi tão de passagem.
‒Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua.
‒Mas eu andei algumas vezes...
‒Quando era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! A adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...


Capítulo XXXII: Olhos de Ressaca. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que contarei no outro capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
— Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto.
Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:
— Há alguma coisa?
— Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite?
— Eu bem. José Dias ainda não falou?
— Parece que não.
— Mas então quando fala?
— Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...
— Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.
— Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
— Você jura?
— Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do Céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do Céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no Céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, — para dizer alguma coisa, — que era capaz de os pentear, se quisesse.
— Você?
— Eu mesmo.
— Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
— Se embaraçar, você desembaraça depois.
— Vamos ver.

Capítulo XXXVI / Ideia sem pernas e ideia sem braços  (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Deixe-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí Ias daquela maneira particular, boca sobre boca. E isto vamos é isto... Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu.
Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse e outra vez me fugiram as palavras que trazia Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me.
Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa; respondeu-me que não A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Ideia só! Ideia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6. ° do cap. II: "A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois". Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.

Capítulo XLII: Capitu Refletindo. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

‒ Se eu acendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa.
E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor atá-lo, mas Capitu respondeu que não era preciso, estava boa.
Ficamos sós na sala; Capitu confirmou a narração da mãe, acrescentando que passara mal por causa do que ouvira em minha casa. Também eu lhe contei o que se dera comigo, a entrevista com minha mãe, as minhas súplicas, as lágrimas dela, e por fim as últimas respostas decisivas: dentro de dous ou três meses iria para o seminário. Que faríamos agora? Capitu ouvia-me com atenção sôfrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de cólera, mas conteve-se.
Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto peguei-lhe na mão para animá-la, mas também eu precisava ser animado. Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto- ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitu olhava para dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chão, o roído das fendas, duas moscas andando e um pé de cadeira lascada. Era pouco, mas distraía-me da aflição. Quando tornei a olhar para Capitu, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi brandamente. Capitu tornou cá para fora e pediu-me que outra vez lhe contasse o que se passara com minha mãe. Satisfi-la, atenuando o texto desta vez, para não amofiná-la. Não me chames dissimulado, chama-me compassivo; é certo que receava perder Capitu, se lhe morressem as esperanças todas, mas doía-me vê-la padecer. Agora, a verdade última, a verdade das verdades, é que já me arrependia de haver falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho efetivo por parte de José Dias; examinando bem, não quisera ter ouvido um desengano que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitu refletia, refletia, refletia...
No dia seguinte fui à casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-se de três amigas que tinham ido visitá-la, Paula e Sancha, companheiras de colégio, aquela de quinze, esta de dezessete anos primeira filha de um médico, a segunda de um comerciante de objetos americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me que fora excesso de leitura na véspera, antes e depois do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia-noite, e com lamparina...

Capítulo XLIV: O Primeiro Filho. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

‒ Dê cá, deixe escrever uma cousa.
Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias, oblíquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:
‒ Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com o coração na mão.
‒ Que é? Diga.
‒ Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?
‒ Eu?
Fez-me sinal que sim.
‒ Eu escolhia... Mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso.
‒ Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer...
‒ Não diga isso!
‒... Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me, você vem?
‒ Venho.
‒ Contra a ordem de sua mãe?
‒ Contra a ordem de mamãe.
‒ Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?
‒ Não fale em morrer, Capitu!
Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me e li: mentiroso.
Era tão estranho tudo aquilo, que não achei resposta. Não atinava com a razão do escrito, como não atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injúria grande ou pequena, é possível que a escrevesse também, com a mesma taquara, mas não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de receio de que alguém nos pudesse ouvir ou ler. Quem, se éramos sós?
D. Fortunata chegara uma vez à porta da casa, mas entrou logo depois. A solidão era completa.

Capítulo LXV: A Dissimulação (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

(...) minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: "Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho, eu espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal, estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.
—Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.
—Não é? ‒ disse ela com ingenuidade.

Capítulo CXXVI: Cismando. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.
‒ Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.
José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por último fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo, bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...
Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé.
‒ Mas...
‒ Vou fazer uma visita.
A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas- estas iriam pausadas ou não, podia afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia natural mente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.
Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito horas numa padaria.

Capítulo CXXVIII: Punhado de Sucessos. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta próxima. Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora sereno e puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha aquela noite.
‒ Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.
‒ Também não quis?
‒ Também não.
‒ Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou José Dias, e não sei como poderá...
‒ Mas passa; o que é que não passa? ‒ atalhou prima Justina.
E como em torno desta ideia começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu para ir ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão demoradamente que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si. Quando tornou, trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo, pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase "lindíssima", e perguntou a Capitu por que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim acabamos a noite.
No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dá-lo a imprimir, mas era lembrança do finado. Pensei em recompô-lo, mas só achei frases soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer outro, mas era já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério. Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.
Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala de marfim, um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de anos, ora sem razão particular.
Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do dia: davam notícia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as qualidades pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento, que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se depressa.
Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.

Capítulo CXXXII: O Debuxo e o Colorido.

[...] Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro.
O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui, por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporais eram agora contínuos e terríveis.
Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de pouca dura; não tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo, até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.
Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu.


CAPÍTULO CXLVIII: E bem, e o resto?

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.


CAPÍTULO CXXXV: OTELO

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço. ‒ um simples lenço!‒ e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se. Hoje são precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas. Tais eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não me levantava da cadeira- não queria expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse agora no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
‒ E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; ‒ que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção...
Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade um quase nada, mas o bastante para ir até à manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a contemplar o mar da Glória, nem a serra dos órgãos, nem a fortaleza de Santa Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias comuns da semana, mas era já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais nada.
Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete, iam dar seis horas.
Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte.
Escrevi dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.


REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Disponível em: 

SANTOS, W. de A. Dom Casmurro e os Farrapos de Textos. UFSC.

SENNA, Marta de. Estratégias do Embuste: Relações Intertextuais em Dom Casmurro. Scripta Belo Horizonte, V. 3, N. 6, p 167-174, 1º sem. 2000. Disponível em


Leitura Recomendada


SHAKESPEARE, William. OTELO, O Mouro de Veneza. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/otelo.html



quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Oficinas, Pesquisa/Ação, Diálogos da Maturidade. Edna Domenica Merola.


Indagações sobre os “recursos imprescindíveis para o desbloqueio da expressão escrita e retreino do papel de escritor”. (MEROLA, 1984, p 30) eis a tônica dos trabalhos práticos e teóricos realizados por esta autora, ao longo de quatro décadas. 
No segundo semestre de 2015, ao ministrar oficinas para participantes maiores de 50 anos, deu-se prosseguimento a essa pesquisa/ação.
“Uma oficina tem por foco a reflexão sobre a própria prática educativa do participante, o que pressupõe que ele esteja desempenhando o papel em pauta e se disponha a realizar as propostas apresentadas pela ministrante e compartilhar com colegas os seus resultados.” (MEROLA, 2015, f 36).
A Oficina de Criação Literária “é o espaço onde são oferecidas atividades práticas de criação pela palavra escrita, proporcionando novos conhecimentos e vivências.” (MEROLA, 2014, p 49). Fundamentada em pesquisas do Psicodrama, suas ações pedagógicas têm por meta aprimorar e favorecer o desempenho cognitivo, sócio-afetivo e sócio-existencial de pessoas maduras e idosas. Tem por objetivos desenvolver o papel social de escritor por meio de sua complementação com o papel de leitor. Suas estratégias são criadas para que alunos treinem a habilidade de estabelecer vínculos, estreitem a relação com a própria interioridade, e conheçam dados culturais novos.
No semestre 2015.2, as Oficinas de Criação Literária realizadas no Núcleo de Estudos da Terceira Idade (NETI, UFSC) tiveram por foco a escrita de cartas literárias. “A carta é um texto escrito no qual alguém transmite uma informação a um destinatário ou leitor, que interpreta o sentido e assume determinada atitude diante da informação recebida.” (MORAES; 2008, p. 156.). Nesse gênero, há uma tônica de premência da comunicação entre emissor e destinatário, o que aponta para a cumplicidade, imprimindo ao discurso certo teor de exposição e de proximidade.
A escrita de uma carta envolve o uso de elementos que a aproximam do conto e da crônica. O emissor é o narrador personagem, mas poderá introduzir outros, transferindo-lhes o protagonismo. O destinatário da carta literária é um complementar do narrador ou substituto do leitor no próprio texto. No conto, é facultado usar a referência ao leitor como um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE, p. 90). No início do texto epistolar há uma descrição espaço-temporal sucinta que comparece na data e local apontado; esse elemento descritivo aproxima a carta literária da crônica.
Nas oficinas ministradas, o ensino do gênero epistolar teve por fundamentação a Socionomia: fruto da pesquisa e criação de Jacob Lévi Moreno, para quem – corpo, psique e sociedade são partes intermediárias do eu total. O eu é um constructo aberto ‒ em constante construção dialógica ‒ que abrange os papéis psicossomáticos, psicodramáticos e sociais.
Nas oficinas, a ação pedagógica reporta-se ao jogo dos papéis sociais que envolvem a escrita. E também aos papéis psicodramáticos ‒ relativos às dimensões psicológicas, em especial, à imaginação. A complementação de papéis tem por foco o diálogo ou as possíveis interações entre o papel social de escritor e o papel complementar de leitor (e vice-versa). E tem por meta o desenvolvimento do vínculo entre aqueles papéis cuja complementação é ilustrada como segue (MEROLA, 2015, f 41).

A primeira unidade didática das Oficinas Literárias 2015.2 referiu à escrita de cartas de apresentação ao grupo.
Na segunda unidade, a proposta colocada foi a de escrever uma carta cujo emissor se localizasse no tempo passado (menino/menina) e que fosse endereçada ao próprio destinatário no tempo presente (senhor/senhora). O desenho de um Átomo Social foi aplicado como técnica de aquecimento para essa tarefa. 

Segundo Moreno (1975), o Átomo Social é o conjunto de papéis que uma pessoa desempenha num dado momento de sua existência, incluindo os complementares desses papéis.
No átomo social referente à infância houve menções a seres tais como Papai Noel, Menino Jesus como exemplos de complementares de papéis psicodramáticos que são interligados às capacidades de imaginar e de acreditar.
Na terceira unidade ‒ Comentários ao Túnel do Tempo ‒ agregou-se o gênero dissertativo ao epistolar, ressaltando-se aspectos cronológicos.
A unidade Cartas sobre Leituras incluiu o livro Iracema (ALENCAR, 2008). A jandaia e o cão rafeiro alencarianos foram transformados em emissor e destinatário, agregando a fábula ao gênero epistolar.
Na unidade Cartas Psicodramáticas, trabalhou-se a conexão entre a leitura da realidade externa e da introjetada, a exemplo de: Querida Irmã, Marina Prosdócimo (In Memorian), da catarinense Marli Barcelos.
A unidade sobre: elementos da estrutura narrativa, criação de personagens e narrador ilustra-se com Carta a um Arquivo – do gaúcho Adroaldo José Fontes da Silveira, testemunho do desvelar de um contista.
No papel de professora, continuou-se o projeto de pesquisa/ação sobre como incentivar a criatividade na escrita. Nos papéis de aluna e pesquisadora, teve-se o N.E.T.I. por lócus privilegiado para aplicar conhecimentos advindos do Curso de Especialização em Atenção à Saúde da Pessoa Idosa, concluído no primeiro semestre de 2015.
Como escritora, teve-se o privilégio do diálogo sobre História de Amor, História de Sala de Espera, Conto em “Pas de Deux”, (MEROLA, 2011, p 37-41, 57-59,77-80). Esta voz paulistana agradece pela oportunidade florianopolitana desta empreita que congrega outras vozes amadurecidas em diferentes estados brasileiros.

Edna Domenica Merola.
Bacharel em Letras, Pedagogia e Psicologia.
Especialista em Atenção à Saúde da Pessoa Idosa.
Mestre em Educação, Administração e Comunicação.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Iracema. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1844

LODGE, David. A Arte da Ficção. Trad. Bras. Porto Alegre: L& PM Pocket, 2011.

MEROLA, Edna Domenica. Pedagogia do Psicodrama: a ação do grupo no desenvolvimento de papéis da pessoa idosa. Monografia de conclusão do Curso de Especialização em Atenção à Saúde da Pessoa Idosa. Orientadora: Maria Celina da Silva Crema. UFSC, CCS, N.E.T.I., 2015, 46 f.
____________ De que são feitas as Histórias. Florianópolis: Postmix, 2014.
____________ A Volta do Contador de Histórias. Blumenau: Nova Letra, 2011.
____________ Aquecendo a Produção na Sala de Aula. São Paulo: Nativa, 2001.
____________ Desbloqueio da expressão e técnicas de redação através do jogo dramático. Anais do IV Congresso Brasileiro de Psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, v. 1, n.4, p. 20-30, 1984.

MORAES, A. M. de; [et al.]. Enciclopédia do estudante: redação e comunicação: técnicas de pesquisas, expressão oral e escrita. São Paulo: Moderna, 2008 – Vol. 8.

MORENO, J.L. Psicodrama. 2 ed, São Paulo: Cultrix, 1978.


sábado, 17 de dezembro de 2016

Relatos e Retratos. Irmã Marilene Gritens.

Foto do Acervo Irmã Mari

RELATOS E RETRATOS. ANGOLA – FILHA DE ÁFRICA

Como os sopros de um vento suave e ameno passaram-se dez anos. A tão sonhada refundação da Vida Religiosa ganhou rostos concretos e ainda que em Angola não haja primavera, podemos sentir a possibilidade de novo florescimento. Angola, país de uma cultura rica de significados e beleza.
Toda palavra não traduz o sentimento feliz da experiência que fiz. Por isso, ensaio alguns esboços, sempre à procura da doçura e leveza de Deus.
Aprendi com Martinelli que “temos que dialogar com saberes múltiplos. Buscar significados, buscar sujeitos e suas histórias”. Histórias de vidas, histórias de um povo que apesar da vida pesar ainda sorri, ainda se alegra e faz festa, ainda acredita no poder da solidariedade. Se atrás de cada sorriso há um choro contido, há também o riso atrás do choro sentido. Sonhamos com novos retratos que possam mostrar mais, muito mais do que imagens captadas num instante de vida. Sonhamos com imagens reais, por isso implementamos em 2010, o Projeto Inocência – Um retrato infantil!?
É preciso investir na criança e no adolescente, acreditar nas suas capacidades e possibilitar o seu desenvolvimento. Resgatar dentro de cada ser o que tem de belo e mais profundo, avaliar com eles seu desempenho e incentivar para que continuem no processo que pode ser lento e gradativo, mas infinitamente eficaz.
A partir de agora inicio um relato mais específico de algumas crianças e adolescentes que participam de nosso projeto e do projeto “Nossos miúdos”, que trabalha com meninos abandonados, órfãos ou acusados de serem “feiticeiros”. Isto é só o princípio de uma longa história de solidão, sentimento que revela a perda do que é próprio da criança: a inocência.
O menino N. é a mais pura expressão do total abandono. Foi deixado envolto em panos (símbolo das mulheres angolanas), tendo o chão e as folhas secas como abrigo. Tragicamente enfermo, hoje resiste... Sofre, tem dores terríveis, corpo deformado, mas resiste, quer viver. Sua mãe, que de alguma maneira o ama, diz: “tenho medo dele, matou o irmão”. N. foi acusado de ser feiticeiro. Menino de poucas palavras, olhar distante e a impressão de querer se esconder. Percebe suas limitações, se entristece com sua pouca habilidade de aprender. Porém, tem coragem de continuar. Todos os dias, N. está presente. E seus companheiros? Como comungam do mesmo espaço e alguns da mesma história, tentam incluí-lo na vida social: joga bola e ensaia algumas corridas curtas.
Prossigo com J., muito inteligente, astuto, de olhar ligeiro e sabe buscar o que quer. Tem bom aproveitamento em Matemática e satisfatório aproveitamento em Língua Portuguesa. Sua preferência: jogar bola. Ah! Por isso seus olhos brilham, a liberdade se expande e como um menino feliz, vibra, corre e sorri.
E. e No. são duas crianças que buscam (cada um a sua maneira) sobreviver num mundo que as exclui e as acusa de ser quem não são. E o mais estranho e cruel: os acusados muitas vezes acreditam que são “feiticeiros”, dotados de um poder que destrói. Resgatar a capacidade de acreditar em si mesmo, de acreditar nas pessoas que os amam é um processo lento, mas a esperança está no “amanhã”.
Este menino que ora apresento é sinal de perseverança. Ch., portador de necessidades especiais, chegou ao projeto em cadeira de rodas... Mas, há esperança, é oficialmente nosso goleiro, e acredito que isto ajudará para que possa desenvolver outras habilidades. Interage com facilidade e participa de todas as atividades. Apoiando-se nas paredes, nas carteiras ou no ombro amigo chega aonde quer chegar.
A., esse menino prefere as ruas, mas se convidá-lo para jogar bola, isto sim o faz feliz e participativo. Se tocar uma música? Seu corpo se transforma, seu semblante se ilumina e todo o movimento que poderia fazer com um lápis, faz com o corpo, demonstrando-se numa habilidade única e uma arte que encanta.
D., o menino motivador do projeto. Dotado de uma capacidade impressionante de cuidar dos animais, os defende, não maltrata, nem mesmo os gatos que normalmente são mortos por serem sinais de feitiço. Se por um lado cuida dos animais, por outro, maltrata e fere crianças e adolescentes. Não tem medo, não é amado, todo o bairro o conhece e teme. A escola formal já não o aceita. Necessita de atenção especial, um olhar que transcende o espaço escolar, e quando recebe atenção modifica seu comportamento. Como resultado disso começa a soletrar e reconhecer as letras, e isto para mim é fabuloso. Atualmente, destaca-se na matemática e apesar dos doze anos, infelizmente trabalha como um adulto. Faz portões, portas, janelas, fogareiros, grades, utiliza instrumentos de corte e solda. Agora todos o chamam para o trabalho. Todos os dias vem ao projeto e partilhamos os sonhos de um menino que aprendeu a ser adulto.
Al.‒ magro, magro, magro  por vezes não se alimenta. Nunca frequentou a escola. Pelos colegas é chamado de panina (homossexual), pois afirma categoricamente que é menina, e quando seus colegas o chamam de panina, ele sorri e diz: eu sou. Há pouco tempo, foi adotado, depois abandonado, então voltou a morar com a mãe... Depois fugiu, não foi encontrado... Voltou quando quis. Estava num lar em outro Estado.
Apresento I., um menino que frequenta a 5ª classe em uma escola pública. Está conosco desde o início do projeto, sente-se em casa, muito habilidoso nas disciplinas e muito simpático com os colegas. É o coração do projeto, dedicado, gentil, atencioso, prestativo, preocupado com a situação social que vive sua família, especialmente sua mãe. Recebe orientação conforme sua habilidade e aprende com muita facilidade.
O aluno D. é a pura expressão da criança que deseja aprender, porém não assimila, não reconhece, não diferencia sílabas e números. Está conosco desde 2010, utilizamos diversos métodos, porém nada é suficiente para despertá-lo. Menino tímido, sempre assustado, com conflitos e doenças graves na família. Sua mãe quer que seu filho aprenda, mas já percebeu as dificuldades e poucas habilidades dele.
De olhar ligeiro, pés descalços, pernas ágeis, sorriso simpático e uma situação social que fere: eis o menino K. Nenhuma concentração, nenhum interesse em aprender. A melhor maneira de conversar com ele é estar na rua, e quando responde por que não foi ao projeto diz: “veja, não tenho chinelo”.
A esperança é uma força que nos impulsiona a caminhar. Digo isso porque o aluno Mb. está alfabetizado e mais, despertou e tem condições de frequentar a 3ª classe no próximo ano. Ele está conosco desde 2010.
O aluno R. também emociona e nos faz acreditar que ‒ com determinação, empenho, paciência e esperança ‒ é possível vencer as dificuldades. Ele está conosco desde 2010, repetiu duas vezes a 2ª classe, e pela lei do Estado teria que deixar a escola. Apesar da cédula constar oito anos, ele deve ter mais de 10 anos. Com uma grande cicatriz na cabeça, com baixa autoestima e uma situação social complicada, ele desperta e lê com habilidade, ele desperta e resolve equações, ele desperta e agora sorri, dialoga, brinca e desenha com tanta leveza que parece que a vida foi libertada. 
O aluno Wi., oito anos, capacidade intelectual de três anos. Acredita que sabe, que lê, que assimila e optamos por não tirar esta sua ilusão. Termina o ano letivo sem compreender, sem sequer conseguir escrever seu nome.
O aluno Wa. é um exemplo de que é preciso acreditar sempre na capacidade humana, na capacidade que o ser humano possui de nos surpreender. Durante todo o ano Wa. apresentou inúmeras dificuldades e aparentemente não teria condições de transitar para a 3ª classe. Retomo o “Pequeno Príncipe”: “O essencial é invisível aos olhos” (…) “Só se vê bem com os olhos do coração”. Esta afirmação pode não ser científica, racional, mas revela a beleza da capacidade humana. O aluno Wa. transitará para a 3ª classe. Portador de necessidades especiais, com seu modo próprio de ver e estar no mundo, há seu tempo descobriu as palavras, e aprendeu a “so- le- trar.”
Continuaremos a nos aproximar da vida dessas crianças e adolescentes e com eles poderemos modificar conceitos e preconceitos, mitos e tradições. Sobretudo, acreditar na capacidade que o ser humano tem de nos impressionar, de nos encantar, de transformar as dificuldades em tarefas simples. Em recuperar se preciso for à inocência esquecida, o sonho adormecido, os desejos que brotam do coração feliz e amado.
Angola a melodia feliz de seus batuques, palmas, canções, gargalhadas; a sintonia do coração quando todos os dias nos reuníamos debaixo da nossa árvore e cantávamos a liberdade; o olhar atento; a palavra de luz; o sorriso escancarado nos alegra e enche o nosso coração de paz e saudade. Ah! Saudade que faz com que as teimosas lágrimas caiam como um dia de chuva no inverno.
Foto do Acervo Irmã Mari
E, termino como comecei: como um vento suave, passaram-se dez anos. Agora regressamos, pois regressar é reunir dois lados. Mas, descobri que há apenas um lado: O AMOR.



PÁSCOA...

É tempo de expandir a VIDA 
que superou a dor e a morte, 
que por um momento nos deixou sem norte, 
mas que em seguida apareceu deslumbrante e forte, e deixou-nos a certeza 
de que Cristo RESSUSCITOU.

É tempo de acordar a alma 
e descobrir com calma 
que Páscoa é a travessia 
que se renova na missão de todo dia.

FELIZ E ABENÇOADA PÁSCOA A TODOS!
Aos irmãos e amigos Angolanos, minha gratidão para sempre. Foi com vocês que eu aprendi a acordar a alma. 
OBRIGADA! Um grande abraço.