sexta-feira, 22 de março de 2019

Memória em Chico Buarque: O Velho Francisco e Leite Derramado. Edna Domenica Merola.

            O Velho Francisco e Leite Derramado: pluralidade do eu e visibilidade do periférico.

            Para discorrer sobre O Velho Francisco e Leite Derramado, tomaremos por recurso a “relação triádica do real com o ficcional e o imaginário”, conforme o conceito de transcodificação (ISER, 2013) que será convalidado para a análise dessas duas produções de Chico Buarque sob o viés da pluralidade do eu e da visibilidade do periférico.
            O imaginário não é um mero jogo de representações, tem uma finalidade prática. O mundo representado no texto representa algo diverso de si mesmo. O mundo representado não é propriamente mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, deve ser representado como se o fosse. O como se tem caráter remissivo. O como se compara algo existente com as consequências necessárias de um caso imaginário.
            O fictício é a tradução do imaginário na configuração concreta. A semantização é a tradução de um acontecimento experimentado na compreensão do produzido.
            O fictício oferece ao imaginário a possibilidade de que se faça presente no produto verbal do texto, na medida em que a própria língua é transgredida e enganada, para que, no engano da língua, o imaginário, como causa possibilitadora do texto, se torne presente.
            Para a arte, vale o compromisso com a reelaboração imaginária da realidade. A ficção se alimenta da realidade. A narrativa fantástica se parece com o mundo real que inclui fatos, mas também produções musicais e literárias publicadas. A ficção é fingimento, já uma notícia falsa é fraude. O texto ficcional estabelece relações diferentes com a realidade. Nesse há transgressões, excessos. Não importa o que o autor quis dizer, já que o sentido depende da materialidade da obra.
            Na transcodificação, o caráter remissivo (que compara algo existente com as consequências necessárias de um caso imaginário) diz respeito não só ao mundo como se fosse real que é representado, como também à obra de ficção tomada por fonte.
            O romance contemporâneo e a canção (ou poema musical) são textos de materialidades diferentes. Estabelecem relações com a realidade de diferentes modos e, portanto, transgressões de ordens técnicas diferentes. Como se dão as transgressões ou enganos da língua são decorrências: do uso da linguagem inerente a cada uma dessas expressões artísticas, e do fazer estético que se consuma em cada criação.
            Nesta análise dos dois trabalhos artísticos de Chico Buarque, o romance Leite Derramado comparece como transcodificação da música O Velho Francisco. A fonte considerada aqui dá-se sob o viés da performance de Monica Salmaso (2007) com o grupo Pau Brasil, do álbum Noites de Gala, Samba na Rua. Previne-se que outras performances, a exemplo da de Suzana Salles não sustentam as análises aqui contidas.
            No CD Noites de Gala, Samba na Rua, Monica Salmaso recriou canções imortalizadas por Chico Buarque, inclusive O Velho Francisco. O CD da intérprete foi produzido por Rodolfo Stroeter; a direção musical foi realizada por Mônica Salmaso e Rodolfo Stroeter. Foi gravado no estúdio MOSH dias 8, 9 e 10 de novembro e 27, 28 e 29 de dezembro de 2006. Foram engenheiros de som: Gustavo Lenza e Paulo Penov; assistentes de estúdio: Gustavo Galisi e Rui Galisi. O CD foi mixado no Rainbow Studio Oslo/Noruega por Jan Erik Kongshaug, em dois e três de março de 2007; masterizado no estúdio Classic Master por Carlos Freitas dia 15 de março de 2007.
            Ao lado do Grupo Pau Brasil, a cantora Mônica Salmaso apresentou o repertório do CD: Noites de Gala, Samba na Rua, no Teatro FECAP, em temporadas de março e de outubro de 2008. O Grupo Pau Brasil tem em sua formação o veterano Nelson Ayres (piano), Paulo Belinatti (violão), Rodolfo Stroeter (contrabaixo), Teco Cardoso (saxofone e flautas) e Ricardo Mosca (bateria). Dedica-se à interpretação de composições que marcam a música brasileira e a seus temas peculiares.
            Passa-se à apresentação da performance de O Velho Francisco (https://www.youtube.com/watch?v=yiPN1NANULE) cujo foco de audição sugerido é o uso de instrumentos artesanais de percussão e sopro ao lado da bateria, do piano e do violão.

Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida
Roupa lavada
Vida veio e me levou

Fui eu mesmo alforriado
Pela mão do Imperador
Tive terra, arado
Cavalo e brida
Vida veio e me levou
Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco, vem
Todo domingo
Tem cheiro de flor
Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou

Li jornal, bula e prefácio
Que aprendi sem professor
Frequentei palácio
Sem fazer feio
Vida veio e me levou
Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco, vem
Todo domingo
Tem cheiro de flor

Eu gerei dezoito filhas
Me tornei navegador
Vice-rei das ilhas
Da Caraíba
Vida veio e me levou
Fechei negócio da China
Desbravei o interior
Possuí mina
De prata, jazida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Hoje não deram almoço, né?
Acho que o moço até
Nem me lavou

Acho que fui deputado
Acho que tudo acabou
Quase que
Já não me lembro de nada
Vida veio e me levou

            Em O Velho Francisco, a narrativa do eu poético é não linear, não tece relações de causa e efeito. O eu é plural e ocupa diferentes lugares e épocas. Lugares tais como: latifúndio, hospital ou asilo, ilhas da Caraíba; e épocas: o fim do Império no Brasil, hoje, todo domingo, busca da prata no Brasil que se inicia no século XVI. Remete a sentimentos de perda, expectativa por uma visita, abandono e solidão.
            O universo vocabular refere ao centro e a uma faceta do caráter nacional brasileiro que é a do personalismo: fui eu mesmo alforriado pela mão do Imperador, tive terra, arado, cavalo e brida, campeão do mundo, frequentei palácio, (me tornei) vice-governador, fechei negócio da china, desbravei o interior, possuí mina de prata, acho que fui deputado.
            É sabido que a região das ilhas da Caraíba abriga paraísos fiscais. Os versos “Eu gerei dezoito filhas/ Me tornei navegador/ Vice-rei das ilhas/ Da Caraíba” denunciam o funcionamento de mecanismos que protegem as grandes fortunas e agravam a situação da população periférica. Já a composição musical remete a algo mais agregador e alegre do que os sentimentos expressos nas palavras do poema.
            Na performance de Monica Salmaso, há elementos (arranjo, instrumentos utilizados, alternância do solo vocal com o solo instrumental) que reforçam: – a pluralidade do eu pela diversidade e evocação das regiões brasileiras periféricas; – tornam o periférico visível.
            No objeto transcodificado tomado para análise, ou seja, no livro Leite Derramado, o caráter remissivo diz respeito não só ao mundo como se fosse real que é representado, como também à obra de ficção tomada por fonte (ou seja, a música O Velho Francisco).
            A construção do imaginário em Leite Derramado conta com um narrador que se encontra entre o limiar do sono e da vigília. Em princípio, a vigília é da ordem do real e o sonho da criação ficcional. Ambos têm suas linguagens próprias, mas que são transgredidas por meio da memória hipnagógica do narrador que a descreve assim: “O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. [...] Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.” (BUARQUE, 2009, p 8).
            A voz narrativa do romance é a de um idoso moribundo que pertence à elite brasileira decadente. O narrador personagem, nascido em 1907, é Eulálio Montenegro d’Assumpção, que conta passagens de sua vida e de seus ancestrais, de maneira fragmentada, mas que adquire força pela construção de imagens.
            A estruturação narrativa do livro lembra a da rapsódia por conter fragmentos que incluem os épicos. O discurso do narrador, em cada fragmento de suas lembranças é permeado pelas circunstâncias afetivas, culturais, socioeconômicas e históricas. No romance, a memória é entendida sob os signos da pluralidade e da diversidade: “A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto.” (BUARQUE, 2009, p. 41).
            Pode-se buscar construir uma eventual linearidade a partir de pistas precisas tais como a data de nascimento do personagem narrador, numa família da aristocracia rural, em 16/6/1907. Ou a partir de pistas genéricas como as constantes da saga dos casamentos que começa pelo dos pais do narrador que retrata os chamados casamentos por interesses e união de famílias aristocratas, em que o homem tinha toda a liberdade e a mulher tolerava sua vida dupla. Já a narrativa do casamento do próprio personagem narrador alega afinidades da pele. A filha dele tem um casamento com um italiano e duas uniões: uma com uma mulher artista plástica e outra com um homem sem profissão definida que dá um neto afrodescendente ao personagem narrador.
            Vários períodos históricos são mencionados: chegada de D João VI (1808, e do trisavô do narrador), governo de D Pedro I (1822-1831. Época do bisavô escravocrata), governo de D Pedro II (1840 – 1889. Época do avô abolicionista); governo de Campos Sales (1898; época da juventude do pai); governo de Venceslau Brás (1914-1918; época em que o pai de Eulálio presidia a comissão de assuntos agrários do Senado); a queda da bolsa de Nova York (1929, juventude do narrador), a segunda guerra mundial do século XX (1939-1945, maturidade do narrador) e a ditadura brasileira iniciada com o golpe de 1964 (época do neto do narrador que morre na militância contra a ditadura). O momento da narrativa é o da juventude do bisneto (traficante).
            As projeções da vida pessoal do narrador e das memórias de família vão formando a galeria de imagens do que se costuma chamar de retrato social. Nele transparece a pluralidade do eu, e o periférico se torna visível.
            A imagem do eu plural é construída (sob o viés da diversidade) pela evocação de diferentes personagens que compõem a genealogia de Eulálio e o eixo Rio de Janeiro e Minas Gerais.
            O eu plural é de certa forma resultante da diversidade cultural, de tal maneira que o narrador refere a si mesmo como vítima das forças culturais exercidas sobre sua própria história de vida.
            Os materiais do inconsciente afloram na voz do narrador moribundo que é refém de sua própria condição de dependência. Relatos da fuga da esposa durante o desmame da filha de ambos são repetidos insistentemente pelo narrador do romance como se fosse o refrão da música “Vida veio e me levou” (BUARQUE, 1987). Tais relatos do velho agonizante são tecidos sob a óptica do seio mau ou do seio que se nega a prover alimento e afeto (KLEIN, 1991). O abandono e a carência são marcas do periférico que se torna visível pela condição do narrador que é a de um idoso sem recursos financeiros próprios que está internado num hospital. Essa condição é apresentada literalmente no romance, em: “E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida.” (BUARQUE, 2009, p. 10).
            As imagens construídas como representações de estados hipnagógicos remontam ao inconsciente individual, no romance. Já, no poema musical, tais imagens comparecem nas representações da inconsciência do tempo histórico peculiar ao homem contemporâneo. A personalidade de filho dependente do personagem do romance e o eu lírico do poema musical que se define por identificações com personagens expoentes em algum país periférico que se acha à sombra do centro expressam proximidades entre a fonte e sua transcodificação. Pode-se concluir que tanto em O Velho Francisco, sob o viés da performance de Monica Salmaso, como na galeria de imagens da sociedade brasileira de Leite Derramado, há representações da diversidade, da dialética centro e periferia, das relações dominador e dominado pela apresentação da pluralidade do eu.


REFERÊNCIAS

BUARQUE, Chico. O Velho Francisco; música da faixa 1 do Álbum Francisco. RCA, 1987.
_______________________Vídeo clipe da música O Velho Francisco. Performance de Chico Buarque. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/chico-buarque/o-velho-francisco.html

_______________________ Leite Derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ISER, Wolfgan. Atos de fingir. Ed UERJ, 2013, 2ª ed.

KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

MEROLA. Palestra do Prof. Alberto sobre Leite Derramado. Disponível em https://netiativo.blogspot.com.br/2014/06/palestra-do-prof-alberto-goncalves.html

SAPO: site sobre Economia. OCDE retira três paraísos fiscais das Caraíbas. Disponível em: http://economico.sapo.pt/noticias/ocde-retira-tres-paraisos-fiscais-das-caraibas-da-lista-negra_90194.html

SALMASO, Monica e Grupo Pau Brasil. Noites de Gala - Samba Na Rua (Álbum Completo). Gravadora Biscoito Fino, 2007.
______________________________ Noites de Gala - Samba Na Rua. Álbum Completo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3mT7ctNcunc&t=462s

__________________________________ O Velho Francisco. Performance de Monica Salmaso e Grupo Pau-brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yiPN1NANULE

quarta-feira, 13 de março de 2019

O emergente exercício pela paz. Edna Domenica Merola

Quando o ataque às Torres Gêmeas reproduziu um "game" o mundo ficou alarmado, mas a cultura estadunidense continuou belicosa.
Hoje perdi uma colega de profissão, em Suzano (SP). Uma coordenadora pedagógica faleceu  vítima de mãos armadas, no exercício de seu trabalho e junto com seus alunos.
Não a conheci, mas imagino perfeitamente como era sua vida e a vejo andando pelo prédio escolar, visitando diferentes salas ou trabalhando muito em sua própria mesa. Suas tarefas além da supervisão pedagógica do trabalho docente englobavam o atendimento à comunidade escolar e a orientação educacional. Mas uma autoridade federal achou que ela deveria estar armada para defender-se e aos alunos. (Surreal!). Senti raiva dessa autoridade e por isso repudio tal fala leiga em educação e nota zero em direitos humanos. Nossa profissão não exige escola de tiro, já que isso implicaria na perversão dos conhecimentos obtidos durante a licenciatura, o bacharelado, o mestrado, o doutorado! E não desejo que isso venha a acontecer. 
A raiva forte se traduz em choro e, em seguida, me preocupo em não deixar que a emoção escoe em vão. Volto a manifestar minha indignação (como já o fizera anteriormente à tragédia) e a expressar opinião contra o armamento civil.
No Brasil de hoje (que optou por andar de mãos dadas com os EUA de Trump), os cidadãos precisam urgentemente recobrar o amor e o respeito à vida. Torna-se imprescindível refletir sobre as causas que levaram vidas as serem cruelmente surrupiadas. 
Tal empreita exaustiva sugere ampla reflexão. Seguindo o raciocínio dedutivo, isto é, começando pelo macro, pretendo esboçar a provocação de discussão do tema à luz do modelo econômico, quer dizer, da cultura capitalista que traduzida para hoje implica em belicosidade e consequente desprezo pela vida do outro.
Escrevo com imenso pesar, mas me consolo com o dever sobrevivente de analisar o que me couber dentro de minha área de atuação e o que puder a partir de meu momento e possibilidades existenciais. Este blog tem por tema as artes (seu foco principal é o literário) e dele abstraio uma questão pertinente: os efeitos das representações da realidade sobre a realidade compactuada e sobre as vivências pessoais.
Como a tragédia sugere um amplo debate que não se esgota aqui (e nem se esgotará tão cedo em lugar algum, infelizmente), para ilustrar esse primeiro item, trago um documentário cuja qualidade é a de suscitar polêmica. Discutir altera o estado de torpor que a dor intensa provoca, é um primeiro passo que ajuda a elaborar a primeira fase de uma perda que é a de vencer a negação.
Tiros em Columbine (Michael Moore, EUA, Canadá) foi o primeiro documentário a ser selecionado para a mostra de Cannes em 46 anos. Na Mostra SP de Cinema, foi intitulado Jogando Boliche em Columbine. Apresenta os efeitos da fascinação dos americanos pela cultura bélica. Aborda o fato de que onze mil pessoas são vítimas de armas de fogo, anualmente, nos Estados Unidos. A maior parte dos moradores de pequenas cidades (tal como Littleton) tem arma em casa. Dois adolescentes pegaram as armas dos pais e mataram 14 estudantes e um professor no refeitório do colégio Columbine (em Littleton). Mostra também uma visita ao presidente da Associação Americana do Rifle (ator Charlton Heston), e um Banco (e empresa comerciante de armas) que dava arma de brinde para quem se tornasse cliente.
O filme é, portanto, uma crítica à indústria de armamento e à cultura da belicosidade. E, consequentemente, ao capitalismo selvagem que protege apenas os lucros e desdenha da pessoa humana.
Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=X5QwnQUqZeA&oref=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3DX5QwnQUqZeA&has_verified=1


Tal documentário não dá conta de provocar efeitos em processos internos como as grandes obras artísticas conseguem eliciar. Nesse sentido lembro Guernica (PICASSO, 1937) que se ergue contra a violência.  
Para que este trabalho não se torne uma mortificação para mim, por não dar conta da ampla demanda de análise, vou em busca do possível. Percebo que tenho que dar conta, do sentimento de raiva e procurar, na indignação, o avesso da raiva. 
Opto, então, pelo raciocínio indutivo, parto do micro, isto é, me proponho a elaborar algo existencialmente útil a quem posso tocar com as mãos a exemplo de:
‒ uma amiga que não tem o hábito de assistir filmes; 
‒ um especialista em cinema que desdenha da produção de Michael Moore;
‒ uma pessoa violenta/dócil daquelas que gostam de dar tapa com luva de pelica, como alguém que se dirige a outra pessoa, na sua frente, e forma uma dupla de opinião contra a sua, mas sem lhe dar o direito de participar da conversa.

Em decorrência desse movimento interno e à luz do meu projeto de vida (que não tem por meta fortalecer sectarismos), elaborei o seguinte exercício de imaginação dirigida:

"Em posição de relaxamento, respire profundamente (sinta o movimento da respiração no abdômen). Pense em uma atitude que provoca que o outro se sinta rejeitado. Imagine uma tela em branco. Agora projete nela ato para gerar no outro o sentimento de aceitação. Compare como você se sente ao provocar rejeição e ao promover aceitação. Imagine nova tela em branco e pense em uma atitude que faz com que o outro se sinta desdenhado. Imagine nova tela em branco e pense em uma atitude que faz com que o outro se sinta valorizado. Compare como você se sente ao vitimar o outro com o seu desdém e ao oferecer valorização para o outro. Imagine nova tela em branco e pense em uma atitude que faz o outro se sentir ignorado. Imagine nova tela em branco e pense em uma atitude que faz com que o outro perceba laços de amizade. Compare como você se sente ao mostrar para o outro que o ignora e ao oferecer amizade. Imagine nova tela em branco e pense em uma atitude que faz com que o outro se sinta isolado. Imagine nova tela em branco e pense em uma atitude que faz com que o outro se sinta pertencente ao grupo. Compare como você se sente ao mostrar para o outro que quer que ele viva isolado e como fica quando deseja que o outro pertença ao grupo.
Imagine que um número imenso de pessoas vibra pela paz no planeta. Entre nessa atmosfera. Imagine outra tela em branco. Nela, veja alguém poderoso fazendo uma ação construtora de paz. Imagine agora uma ação pela paz compatível com suas possibilidades e que beneficiará o seu entorno. Imagine agora um gesto que você irá concretizar para gerar energia de amor em seu ambiente.”

Concretize o gesto no máximo 24 horas após a mentalização.




terça-feira, 12 de março de 2019

Lavoura Arcaica: literatura&cinema. Edna Domenica Merola

       Para análise da adaptação cinematográfica (CARVALHO, 2001) do livro Lavoura Arcaica (NASSAR, 1975) tomaremos as reflexões de Linda Hutcheon acerca da adaptação de obras literárias. Tais reflexões têm por fundamentos a teoria da intertextualidade de Cristeva, a desconstrução de Derrida e a rejeição de Foucault à ideia de subjetividade unificada.
            Segundo a autora, adaptação é uma forma de transcodificação de um sistema de comunicação para outro, na qual as mudanças ocorrem entre mídias, gêneros e culturas.
            Em seu estudo sobre adaptação, Hutcheon tem por objetivo: desafiar o olhar depreciativo sobre a adaptação. Pretende desmistificar a hierarquização (na qual a literatura é maior e as adaptações menores), a iconofobia (desconfiança do visual) e a logofilia (sacralização da palavra). Tal objetivo será tomado nesta análise do livro Lavoura Arcaica (NASSAR, 1975) e sua transcodificação.
            Segundo Alceu Amoroso Lima, o livro aqui referido é uma “novela trágica [...] numa atmosfera bem brasileira, mas dominada por um sopro universal da tradição clássica mediterrânea. Drama tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo, da eterna luta entre a liberdade e a tradição, sob a égide do tempo. Livro impressionante, magistral.”. (NASSAR, 2017, contracapa do livro).
            Já a transcodificação em pauta é um filme brasileiro de 2001, drama dirigido por Luiz Fernando Carvalho e que, em 2015, foi considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
            A trama de Lavoura Arcaica trata da narrativa feita do ponto de vista do personagem André sobre a vida de sua família de imigrantes estrangeiros que se isola para manter as tradições. A cultura patriarcal mostra o pai como símbolo da Lei, capaz de executar, com uma foice, a própria filha que dança freneticamente e usa enfeites que André havia conseguido com uma prostituta.
            O livro tem trinta capítulos. Vários deles iniciados por referência a uma parte do corpo. Há remissão aos olhos (sentido da visão) nas linhas iniciais dos capítulos 1, 2, 3,7, 10, 11, 12, 14, 22. As linhas iniciais do capítulo 9 fazem remissão aos “rostos coalhados, [...] adolescentes em volta da mesa” que o narrador vê nos outros personagens (irmãos adolescentes). No capítulo 16, há menção a “nossos narizes obscenos”. O capítulo 17 faz menção ao sentido da audição e à loucura. Já as menções ao sentido do tato, a exemplo do uso dos substantivos afago(s) e do verbo correlato é frequente e pulverizada na obra.
            A densidade da obra literária em pauta é fruto de sua vocação estética neobarroca. Os parágrafos exageradamente longos imprimem exaustão ao processo de leitura. Em contrapartida, na consumação da tragédia (o assassinato de Ana) parágrafos curtos intercalam vozes até então caladas.
            Segundo Ismail Xavier, “no filme, há a forte presença da voz over do narrador, que transpõe passagens do texto de Raduan [...] a palavra deve interagir com a mise-en-scène; imagem e som compõem uma nova dinâmica, que define a originalidade das escolhas do cineasta e sua concepção da tragédia familiar.” (XAVIER, 2011, p 10).
            O discurso do pai é repetitivo e o de André é inventivo a ponto de provocar rupturas. A duração (velocidade) do filme é antirrealista, nele tudo é reminiscência materializada na fotografia.
            Na leitura do livro e na apreciação do filme percebem-se vozes distintas de dois andrés que remontam às oposições: continuidade X descontinuidade do enunciador; sensibilidade X assepsia da ordem familiar:
No romance, a “situação épica” do narrador permanece indefinida, restando a premissa de que ele está num futuro não imediato face ao ocorrido. Há a fala do André que vive a experiência, está “em cena” a cada atualização do passado, e o discurso do André que narra à distância, numa modulação de tons que não fere a unidade do texto — todo ele sancionado pelo seu nome, embora a diferença entre o ato de viver o drama e o de evocá-lo post-factum problematize a continuidade-identidade desse “eu” como foco da enunciação. Há um dialogismo de fundo, próprio ao romance como gênero, pelo qual se diz que são múltiplas as vozes (valores, perspectivas, sujeitos) que ganham expressão direta ou indireta na narrativa, mesmo quando a fatura indica uma única voz a conduzir o relato. O narrador, pelos vocábulos e pela sintaxe, dá um tom solene ao cotidiano, consagra o mundo dos sentidos e sugere a contaminação recíproca dos opostos, tudo conforme uma visão assumida desde a adolescência. Nesse sentido, torna estilo de exposição uma sensibilidade construída lá atrás quando, em pleno vigor, entreviu a possibilidade de compor uma religião da natureza, trazendo à luz a esfera da experiência afeta ao mundo das pulsões e da seiva natural, esfera recalcada pelo teor unilateral e pela assepsia da ordem familiar. (XAVIER, 2011, p 15-16).
            As diferentes vozes narrativas tomam corpo nas diferentes casas: a casa em que a família habita e a casa “velha” onde habitam os subterrâneos das memórias de André.
            A casa habitada comparece em várias cenas, inclusive como cenário da primeira cena do filme, mas capítulo 24 do livro. Na sala de refeições (e dos sermões do pai), os membros da família estão sentados à grande mesa. O pai senta à cabeceira, os filhos mais velhos sentam ao lado do pai, por ordem de idade, primeiro Pedro (o mais velho) e depois Rosa, Zuleika e Uda. A mãe senta à esquerda do marido, e os filhos mais novos – André, Ana e Lula – sentam ao lado da mãe. Na cabeceira oposta à do pai há a cadeira que fora ocupada pelo avô, durante sua vida, e sobre a qual se pode ler: “seria exagero dizer que sua cadeira ficou vazia” (NASSAR, 2017, p 155).
            Outra cena relevante que tem por cenário a sala de refeições é aquela que faz a tomada exclusivamente no plano medial dos corpos dos atores/personagens e das cadeiras das mesas, antes que nelas tomem seus lugares não só para se alimentarem, mas para consolidar suas posições hierárquicas perante o clã.
            A casa “velha” ou em ruínas privilegia o discurso “dos subterrâneos da memória”. É o local em que André narra seu desejo por sua irmã Ana. Nessa cena do filme, a tomada de câmara insiste no plano baixo: quer nas botas deixadas sobre o chão, quer nos pés descalços de André. A essa cena intercala-se aquela em que André, na infância liberta uma pomba que comia milho no alçapão. O personagem criança é mostrado de forma solar, com tomadas de câmara do tipo aérea.
            O jogo de claro e escuro (ou de solar e subterrâneo) do filme espelham a tessitura neobarroca do livro.
            Em suma, a adaptação do “impressionante” e “magistral” livro Lavoura Arcaica para o laureado filme homônimo comprova que se deve eliminar o olhar depreciativo sobre a transcodificação, denunciar a iconofobia e a logofilia para desmistificar a hierarquização entre literatura e cinema.


REFERÊNCIAS


CARVALHO, Luiz Fernando. Lavoura Arcaica. Filme. 2001. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FnibQvMlq-l

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Ed UFSC, 2011, 2ª ed.

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 2017. Companhia das Letras. 3ª edição, 35ª impressão.

XAVIER, Ismail. A geometria barroca do destino. 2011. Significação, número 36.


Recordados de março. Edna Domenica Merola.

Chegou março e com ele algumas águas efervescem sobre o solo de final de verão. Também chegaram novos convívios que estimulam reflexões e incitam levantes existenciais. Tais convívios trouxeram pontuações, reflexões, sintonias (e alentos). 
Gilberto Motta apresentou-nos à Revista internacional de direitos humanos: uma revista semestral, publicada em inglês, português e espanhol pela Conectas Direitos Humanos. São Paulo - SP - Brasil | Tel/Fax +55 11 3884-7440 | Caixa Postal nº 62633 CEP: 01214-970. Disponível em https://sur.conectas.org/
Chegaram-me, ainda em março de 2019, as seguintes pontuações artísticas: 
Clara Amélia de Oliveira lembrou:
El perro semi-hundido (de Goya).
‒ O filme Fahrenheit 451 (2018): pautado no livro de Ray Bradbury (1920-2012) lançado em 1953. Em um futuro opressivo dominado pela tecnologia, a posse de livros e a literatura são proibidas. Guy Montag tem a missão de queimar todos os livros que existem mas conhece Clarisse McClellan faz com que ele comece a questionar não a sua missão, assim como o sistema vigente.

Gilberto Motta lembra-nos da composição de Caetano Veloso, letra e música disponíveis em


Transcrevo a letra da música (um lindo poema!):

Livros
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada

Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.

Roberto Cattani recordou a peça Lisistrata (de Aristófanes).
O que me fez lembrar de Lisa, a mulher libertadora (1976) de Augusto Boal (1931-2009, Rio de Janeiro) e do trabalho musical de Chico Buarque de Holanda para a referida peça, do qual destaco Mulheres de Atenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos
Orgulho e raça de Atenas

Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas (= madeixas, tranças)
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem imploram
Mais duras penas; cadenas (=correntes)

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos
Poder e força de Atenas

Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam, sedentos
Querem arrancar, violentos
Carícias plenas, obscenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos
Bravos guerreiros de Atenas

Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar um carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas, Helenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas:
Geram pros seus maridos
Os novos filhos de Atenas

Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas
Não tem sonhos, só tem presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas, morenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos
Heróis e amantes de Atenas

As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas, serenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos
Orgulho e raça de Atenas

Roberto Cattani também nos brindou com a lembrança de Andaluces de Jaén - Aceituneros, de Miguel Hernandez:

Andaluces de Jaén,
aceituneros altivos,
decidme en el alma: ¿quién,
quién levantó los olivos?

No los levantó la nada,
ni el dinero, ni el señor,
sino la tierra callada,
el trabajo y el sudor.

Unidos al agua pura
y a los planetas unidos,
los tres dieron la hermosura
de los troncos retorcidos.

Levántate, olivo cano,
dijeron al pie del viento.
Y el olivo alzó una mano
poderosa de cimiento.

Andaluces de Jaén,
aceituneros altivos,
decidme en el alma: ¿quién
amamantó los olivos?

Vuestra sangre, vuestra vida,
no la del explotador
que se enriqueció en la herida
generosa del sudor.

No la del terrateniente
que os sepultó en la pobreza,
que os pisoteó la frente,
que os redujo la cabeza.

Árboles que vuestro afán
consagró al centro del día
eran principio de un pan
que sólo el otro comía.

¡Cuántos siglos de aceituna,
los pies y las manos presos,
sol a sol y luna a luna,
pesan sobre vuestros huesos!

Andaluces de Jaén,
aceituneros altivos,
pregunta mi alma: ¿de quién,
de quién son estos olivos?

Jaén, levántate brava
sobre tus piedras lunares,
no vayas a ser esclava
con todos tus olivares.

Dentro de la claridad
del aceite y sus aromas,
indican tu libertad
la libertad de tus lomas.

Brígida Poli relembrou o poema No te rindas, de Mario Benedetti:

No te rindas, aún estás a tiempo
de alcanzar y comenzar de nuevo,
aceptar tus sombras,
enterrar tus miedos,
liberar el lastre,
retomar el vuelo.
no te rindas que la vida es eso,
continuar el viaje,
perseguir tus sueños,
destrabar el tiempo,
correr los escombros,
y destapar el cielo.
No te rindas, por favor no cedas,
aunque el frío queme,
aunque el miedo muerda,
aunque el sol se esconda,
y se calle el viento,
aún hay fuego en tu alma
aún hay vida en tus sueños.
Porque la vida es tuya y tuyo también el deseo
porque lo has querido y porque te quiero
porque existe el vino y el amor, es cierto.
Porque no hay heridas que no cure el tiempo.
Abrir las puertas,
quitar los cerrojos,
abandonar las murallas que te protegieron,
vivir la vida y aceptar el reto,
recuperar la risa,
ensayar un canto,
bajar la guardia y extender las manos
desplegar las alas
e intentar de nuevo,
celebrar la vida y retomar los cielos.
No te rindas, por favor no cedas,
aunque el frío queme,
aunque el miedo muerda,
aunque el sol se ponga y se calle el viento,
aún hay fuego en tu alma,
aún hay vida en tus sueños
porque cada día es un comienzo nuevo,
porque esta es la hora y el mejor momento.
Porque no estás solo, porque yo te quiero.

Dentre as indicações do Gilberto Pinto da Motta, destaco o texto A Terceira margem do rio (ROSA, Guimarães, Primeiras Estórias, Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1988, pág. 32.) que transcrevo a seguir:


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
 Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
 Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.