Fernando dirigia seu jipe e cabíamos todos lá dentro,
sabe Deus como, pois meu corpo hoje volumoso recorre a fotos pra acreditar
nessa história que conto agora. Fernando nos mostrava recantos e praias,
enquanto narrava Florianópolis tal qual encantador de serpentes.
E havia também os passeios a pé dos quais, algumas
vezes, as senhoras e as crianças pequenas não participavam. Um desses passeios
foi pura adrenalina, daquele tipo que não sai na foto. Fomos caminhar sobre a
Ponte Hercílio Luz.
Andávamos sobre as tábuas rasgadas pelo uso. Fernando e papai à frente, nós
filhas, atrás. Ouvimos papai indagar sobre as condições da ponte.
Sobre a resposta do nosso anfitrião: minha memória
filtrou fortemente a maneira como foi dada.
Fernando respondeu no mesmo tom com que descrevera as dunas, durante o
caminho de ida, quando nos levou visitá-las. Ocasião em que ensinara às
crianças como proceder ao chegar lá. Uma narrativa imperiosa de chegar, deitar
e rolar duna abaixo.
Sobre o conteúdo da resposta: vale aquilatar se houve
intenção de valorizar seu distanciamento com a forma de expressão vocal
utilizada. Sobre como se dá a intersecção de conteúdo e forma na narrativa de
Fernando: há que traçar primeiro uma linha do que foi dito. A seguir, há que
demarcar o
que foi visto. Para depois prover o entendimento de como as diferentes
tonalidades tingem e atingem a ouvinte.
Fernando contou com voz sorridente que na semana
anterior o último veículo a passar havia sido um caminhão que caíra no mar.
Papai costumava andar depressa, mas puxando bem pela
memória, às vezes acho que apertou o passo, e que nós também o fizemos. Noutras
vezes, penso que não: que continuou a andar em seu ritmo habitual. Quando isso
acontece, coloco-me na cena, segurando a mão de minha irmã mais velha, sempre
rápida e confiante.
Usava um vestido cor de abóbora e uma fita de ‘banlon’ da mesma cor para enfeitar os
cabelos ao vento. Minha irmã nada dizia. Eu nada disse.
Após mais de meio século, aguardo o buraco cair em si. |
Lembro também de que olhei para o contador da
história, responsável primeiro daquele passeio. Caminhava com seu passo em
gingo cadenciado. Pareceu-me ágil, mas sossegado. E a conversa com papai
continuava rolando solta. Talvez sobre obstáculos que os cidadãos pioneiros
teriam de transpor a duras penas, mas que deveriam ser narrados com a voz macia
de ilhéus.
Então minha memória - após retomar a cena na qual
passo ilesa perto do maior buraco que a ponte Hercílio Luz teve no início da
década de sessenta - canta feliz, com voz de criança:
- Olé, olé, olé, olé, olá.
- Arreda do
caminho...
- Que a Bernunça
quer ‘passá’!
E uma inspiração lusitana me remete ao mito da espera
sebastianista. E então, encontro outros sonhadores que acreditam que seu rei
vai voltar. Desta vez, ao invés da armadura terá por traje a fantasia de
contador de histórias. Qual será seu nome? Será velho? Será novo?
Alguns dizem que ele já foi visto. Mas os relatos são
contraditórios.
Uns dizem que ele é um moço de nome Fernando. Outros
juram que é um homem mais maduro: talvez um empresário paulistano. Outros dizem
que viram os dois andando juntos sobre a velha ponte.
Há aqueles que dizem que quem voltou foi o motorista
do caminhão que caiu. Dizem até que ele voltou para procurar uma menina que
quer saber sua verdade sobre a história.
Dizem que o motorista voltou para contar a ela que
conseguiu sair da boleia, que recebeu
ajuda dos amigos pescadores. Que foi tão difícil a vida depois da perda de seu
caminhão. Mas que se manteve sempre devoto de Nossa Senhora dos Navegantes que
o ajudou a salvar-se pra poder criar os cinco filhos.
Dizem que o caminhoneiro pede a cada um que passa que
chame urgente a tal menina que corre o risco de perder sua alma de criança se
ficar sem ouvir essa sua parte... Inda mais que seu pai levou-a embora desses
desafios de buracos e pontes... Mas também tão longe das dunas de areia e da Bernunça...
Frente a tantas discrepâncias sobre os fatos naturais,
mais se fortalecem as crenças de ordem supra e diversa...

E, em fantasia, creio que é necessário consertar as pontes simbólicas para que as diferentes gerações possam voltar a compactuar.
E, em verdade, creio que é necessário consertar as pontes, para o Boi de Mamão poder dançar
e cantar...
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