Se ouvirem falar que ainda pratico algo como um esporte radical prestem bem atenção, pois já passei dos cinqüenta. Se ouvirem dizer que minha primeira experiência radical foi em ‘Floripa’, nos anos sessenta, prestem mais atenção ainda. A experiência passada a que me refiro e que hoje batizo de radical foi meu primeiro contato com um legítimo contador de histórias. E que contador! Papai e mamãe possuíam uma empresa paulistana do ramo
de metais, que à época eram
utilizados em aparelhos eletrônicos. Vieram pra Florianópolis conhecer a
família de seu mais novo freguês na compra de peças para montagem de
transformadores de voltagem. Era época inaugural de acesso à televisão, cá na
Ilha da Magia. Fernando e Nicinha, casal bem mais jovem do que meus pais,
procuravam se estabelecer na vida. Já tinham seus dois pimpolhos, perto dos
quais minha irmã e eu já éramos consideradas crianças crescidas.
Fernando dirigia seu jipe e cabíamos todos lá dentro,
sabe Deus como, pois meu corpo hoje volumoso recorre a fotos pra acreditar
nessa história que conto agora. Fernando nos mostrava recantos e praias,
enquanto narrava Florianópolis tal qual encantador de serpentes.
E havia também os passeios a pé dos quais, algumas
vezes, as senhoras e as crianças pequenas não participavam. Um desses passeios
foi pura adrenalina, daquele tipo que não sai na foto. Fomos caminhar sobre a
Ponte Hercílio Luz.
Andávamos sobre as tábuas rasgadas pelo uso. Fernando e papai à frente, nós
filhas, atrás. Ouvimos papai indagar sobre as condições da ponte.
Sobre a resposta do nosso anfitrião: minha memória
filtrou fortemente a maneira como foi dada.
Fernando respondeu no mesmo tom com que descrevera as dunas, durante o
caminho de ida, quando nos levou visitá-las. Ocasião em que ensinara às
crianças como proceder ao chegar lá. Uma narrativa imperiosa de chegar, deitar
e rolar duna abaixo.
Sobre o conteúdo da resposta: vale aquilatar se houve
intenção de valorizar seu distanciamento com a forma de expressão vocal
utilizada. Sobre como se dá a intersecção de conteúdo e forma na narrativa de
Fernando: há que traçar primeiro uma linha do que foi dito. A seguir, há que
demarcar o
que foi visto. Para depois prover o entendimento de como as diferentes
tonalidades tingem e atingem a ouvinte.
Fernando contou com voz sorridente que na semana
anterior o último veículo a passar havia sido um caminhão que caíra no mar.
Papai costumava andar depressa, mas puxando bem pela
memória, às vezes acho que apertou o passo, e que nós também o fizemos. Noutras
vezes, penso que não: que continuou a andar em seu ritmo habitual. Quando isso
acontece, coloco-me na cena, segurando a mão de minha irmã mais velha, sempre
rápida e confiante.
Usava um vestido cor de abóbora e uma fita de ‘banlon’ da mesma cor para enfeitar os
cabelos ao vento. Minha irmã nada dizia. Eu nada disse.
Após mais de meio século, aguardo o buraco cair em si. |
Lembro também de que olhei para o contador da
história, responsável primeiro daquele passeio. Caminhava com seu passo em
gingo cadenciado. Pareceu-me ágil, mas sossegado. E a conversa com papai
continuava rolando solta. Talvez sobre obstáculos que os cidadãos pioneiros
teriam de transpor a duras penas, mas que deveriam ser narrados com a voz macia
de ilhéus.
Então minha memória - após retomar a cena na qual
passo ilesa perto do maior buraco que a ponte Hercílio Luz teve no início da
década de sessenta - canta feliz, com voz de criança:
- Olé, olé, olé, olé, olá.
- Arreda do
caminho...
- Que a Bernunça
quer ‘passá’!
E uma inspiração lusitana me remete ao mito da espera
sebastianista. E então, encontro outros sonhadores que acreditam que seu rei
vai voltar. Desta vez, ao invés da armadura terá por traje a fantasia de
contador de histórias. Qual será seu nome? Será velho? Será novo?
Alguns dizem que ele já foi visto. Mas os relatos são
contraditórios.
Uns dizem que ele é um moço de nome Fernando. Outros
juram que é um homem mais maduro: talvez um empresário paulistano. Outros dizem
que viram os dois andando juntos sobre a velha ponte.
Há aqueles que dizem que quem voltou foi o motorista
do caminhão que caiu. Dizem até que ele voltou para procurar uma menina que
quer saber sua verdade sobre a história.
Dizem que o motorista voltou para contar a ela que
conseguiu sair da boleia, que recebeu
ajuda dos amigos pescadores. Que foi tão difícil a vida depois da perda de seu
caminhão. Mas que se manteve sempre devoto de Nossa Senhora dos Navegantes que
o ajudou a salvar-se pra poder criar os cinco filhos.
Dizem que o caminhoneiro pede a cada um que passa que
chame urgente a tal menina que corre o risco de perder sua alma de criança se
ficar sem ouvir essa sua parte... Inda mais que seu pai levou-a embora desses
desafios de buracos e pontes... Mas também tão longe das dunas de areia e da Bernunça...
Frente a tantas discrepâncias sobre os fatos naturais,
mais se fortalecem as crenças de ordem supra e diversa...
Todos os narradores concordam, no entanto, que ouviram
vozes sobre a ponte e que elas exigem que os resgates sejam finalmente
executados.
E, em fantasia, creio que é necessário consertar as pontes simbólicas para que as diferentes gerações possam voltar a compactuar.
E, em verdade, creio que é necessário consertar as pontes, para o Boi de Mamão poder dançar
e cantar...
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