“Dom Casmurro é um narrador congenitamente embusteiro, já
que nasce na narrativa e para a narrativa explicando-se através do engodo:
adverte que seu cognome, "Casmurro", não deve ser entendido como está
nos dicionários, isto é, teimoso", "obstinado",
"cabeçudo" ‒ que é o que ele é; e, sim, como "homem calado e
metido consigo" (capítulo 1) ‒ que é o que não é, pois é o único dono da
voz nesse romance onde Capitu é implacavelmente silenciada." (SENNA, 2000).
Segundo Wellington de Almeida Santos, "o relato do velho e casmurro advogado se organiza segundo um rigoroso controle da palavra escrita" por meio dos recursos: "reprodução atualizada das falas do passado"; "fragmentação de textos incorporados à narração"; "comentários circunstanciais dos fatos passados"; reflexões do presente".
A partir desses recursos, indagaremos sobre a tipologia psicológica ou a patologia do personagem narrador. Dom Casmurro (de Machado de Assis) é como Otelo (de Shakespeare) um ciumento doentio? Capitu foi vítima como Desdêmona? Para avaliar essa possibilidade compilamos trechos que referem à dissimulação de Capitu.
Segundo Wellington de Almeida Santos, "o relato do velho e casmurro advogado se organiza segundo um rigoroso controle da palavra escrita" por meio dos recursos: "reprodução atualizada das falas do passado"; "fragmentação de textos incorporados à narração"; "comentários circunstanciais dos fatos passados"; reflexões do presente".
A partir desses recursos, indagaremos sobre a tipologia psicológica ou a patologia do personagem narrador. Dom Casmurro (de Machado de Assis) é como Otelo (de Shakespeare) um ciumento doentio? Capitu foi vítima como Desdêmona? Para avaliar essa possibilidade compilamos trechos que referem à dissimulação de Capitu.
Os
capítulos: XXV (No Passeio Público), XXXII (Olhos de Ressaca), XXXVI (Ideia sem
pernas e ideia sem braços), XLII (Capitu Refletindo), XLIV (O Primeiro Filho),
LXV (A Dissimulação), CXXVI (Cismando), CXXVIII (Punhado de Sucessos), CXXXII
(O Debuxo e o Colorido), CXLVIII (E Bem, e o Resto?) ‒ mostram qual é a imagem que Bentinho faz de sua mulher e que Dom Casmurro faz de todas as mulheres. O
capítulo CXXXV refere a Otelo, peça para teatro escrita por Shakespeare, em que
a protagonista feminina morre vítima de um mal-entendido provocado pelo maldoso
Iago, valendo-se do ciúme doentio do mouro Otelo por sua mulher Desdêmona.
CAPÍTULO
XXV: No Passeio Público
Entramos
no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias
espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos
para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim:
‒Há
muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.
‒Perdoe-me,
atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não
se lembra?
‒É
verdade, mas foi tão de passagem.
‒Ele
pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de
Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande
com o Pádua na rua.
‒Mas
eu andei algumas vezes...
‒Quando
era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você
está ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode
gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que
o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua
e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a
adulação. Oh! A adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja
honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e
estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más
companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe
cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale
mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...
Capítulo
XXXII: Olhos de Ressaca. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).
Tudo
era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se
aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. É o que contarei no
outro capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o
agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que
estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
—
Está na sala, penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um
susto.
Fui
devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um
espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano,
moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas.
Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala,
pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:
—
Há alguma coisa?
—
Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a
lição. Como passou a noite?
—
Eu bem. José Dias ainda não falou?
—
Parece que não.
—
Mas então quando fala?
—
Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada,
falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer
primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...
—
Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já,
e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto;
acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá
alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com
ele, Bentinho.
—
Teimo; hoje mesmo ele há de falar.
—
Você jura?
—
Juro! Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me
lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e
dissimulada." Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e
queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me
perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a
doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra
ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto,
com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que
entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica
dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram
aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da
dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de
ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido
misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se
retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às
outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos
ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos
minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do Céu terão marcado esse tempo
infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca
deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o
gozo aos bem-aventurados do Céu conhecer a soma dos tormentos que já terão
padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias
que terão gozado no Céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do
inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui
para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado,
agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e
disse-lhe, — para dizer alguma coisa, — que era capaz de os pentear, se
quisesse.
—
Você?
—
Eu mesmo.
—
Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
—
Se embaraçar, você desembaraça depois.
—
Vamos ver.
Capítulo
XXXVI / Ideia sem pernas e ideia sem braços
(Dom Casmurro, Machado de Assis.).
Deixe-os,
a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o
que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos,
lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças,
refazê-las e concluí Ias daquela maneira particular, boca sobre boca. E isto
vamos é isto... Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr
nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de
Capitu.
Quando
ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada
no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se
preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam,
depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que
fizesse e outra vez me fugiram as palavras que trazia Assim gastamos alguns
minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e
esperou-me.
Fui
ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa; respondeu-me que não
A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de
aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.
Era
ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Ideia só! Ideia sem braços! Os meus
ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável
que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido
direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os
lábios, dando-me o ósculo da sua boca". E pelo que respeita aos braços,
que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6. ° do cap. II: "A sua mão
esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará
depois". Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda
que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que
não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela
situação.
Capítulo
XLII: Capitu Refletindo. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).
‒
Se eu acendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa.
E
como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor atá-lo, mas
Capitu respondeu que não era preciso, estava boa.
Ficamos
sós na sala; Capitu confirmou a narração da mãe, acrescentando que passara mal
por causa do que ouvira em minha casa. Também eu lhe contei o que se dera
comigo, a entrevista com minha mãe, as minhas súplicas, as lágrimas dela, e por
fim as últimas respostas decisivas: dentro de dous ou três meses iria para o
seminário. Que faríamos agora? Capitu ouvia-me com atenção sôfrega, depois
sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de cólera,
mas conteve-se.
Há
tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou
deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente.
Vendo-lhe o gesto peguei-lhe na mão para animá-la, mas também eu precisava ser
animado. Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto- ela olhava para
o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitu olhava para
dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chão, o roído das fendas,
duas moscas andando e um pé de cadeira lascada. Era pouco, mas distraía-me da
aflição. Quando tornei a olhar para Capitu, vi que não se mexia, e fiquei com
tal medo que a sacudi brandamente. Capitu tornou cá para fora e pediu-me que
outra vez lhe contasse o que se passara com minha mãe. Satisfi-la, atenuando o
texto desta vez, para não amofiná-la. Não me chames dissimulado, chama-me
compassivo; é certo que receava perder Capitu, se lhe morressem as esperanças
todas, mas doía-me vê-la padecer. Agora, a verdade última, a verdade das
verdades, é que já me arrependia de haver falado a minha mãe, antes de qualquer
trabalho efetivo por parte de José Dias; examinando bem, não quisera ter ouvido
um desengano que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitu refletia,
refletia, refletia...
No
dia seguinte fui à casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-se de três
amigas que tinham ido visitá-la, Paula e Sancha, companheiras de colégio,
aquela de quinze, esta de dezessete anos primeira filha de um médico, a segunda
de um comerciante de objetos americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado
na cabeça; a mãe contou-me que fora excesso de leitura na véspera, antes e
depois do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia-noite, e com
lamparina...
Capítulo
XLIV: O Primeiro Filho. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).
‒
Dê cá, deixe escrever uma cousa.
Capitu
olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias,
oblíquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto
sumida, perguntou-me:
‒
Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com o
coração na mão.
‒
Que é? Diga.
‒
Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?
‒
Eu?
Fez-me
sinal que sim.
‒
Eu escolhia... Mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso.
‒
Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e recebe a
notícia de que eu vou morrer...
‒
Não diga isso!
‒...
Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que
você venha, diga-me, você vem?
‒
Venho.
‒
Contra a ordem de sua mãe?
‒
Contra a ordem de mamãe.
‒
Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?
‒
Não fale em morrer, Capitu!
Capitu
teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no
chão, inclinei-me e li: mentiroso.
Era
tão estranho tudo aquilo, que não achei resposta. Não atinava com a razão do
escrito, como não atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injúria
grande ou pequena, é possível que a escrevesse também, com a mesma taquara, mas
não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de receio
de que alguém nos pudesse ouvir ou ler. Quem, se éramos sós?
D.
Fortunata chegara uma vez à porta da casa, mas entrou logo depois. A solidão
era completa.
Capítulo
LXV: A Dissimulação (Dom Casmurro, Machado de Assis.).
(...)
minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de
abençoar o povo à missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que
se casam cedo, Capitu lhe dissera: "Pois a mim quem me há de casar há de
ser o padre Bentinho, eu espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da
graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou
para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir
ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal, estava tão contente com
aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei,
corri a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de
agradecida.
—Você
tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.
—Não
é? ‒ disse ela com ingenuidade.
Capítulo
CXXVI: Cismando. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).
Pouco
depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela
portinhola fora, sem embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo.
‒
Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a
imprimir, fica já destruído de uma vez. Não presta, não vale nada.
José
Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por último
fez o panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto,
amigo, bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...
Neste
ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que
cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei
parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as
levasse para casa; eu iria a pé.
‒
Mas...
‒
Vou fazer uma visita.
A
razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada
ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas- estas iriam pausadas
ou não, podia afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça
cismasse à vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de
Sancha na véspera e o desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva era
realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade.
Não seria o mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em
que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia natural mente impor-lhe a
dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vai por ordem lógica
e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensações, graças aos
solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém, raciocinava e
evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me
ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.
Quando
cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para
trás, e subi outra vez a Rua do Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a
necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora? Ponhamos que eram as
duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar, e endireitei para
casa. Batiam oito horas numa padaria.
Capítulo
CXXVIII: Punhado de Sucessos. (Dom Casmurro, Machado de Assis.).
Como
ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava
apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta
próxima. Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era agora
sereno e puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da
viúva. Capitu censurou a imprudência de Escobar, e não dissimulou a tristeza
que lhe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha
aquela noite.
‒
Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse que
era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias conosco.
‒
Também não quis?
‒
Também não.
‒
Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou José
Dias, e não sei como poderá...
‒
Mas passa; o que é que não passa? ‒ atalhou prima Justina.
E
como em torno desta ideia começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu para
ir ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tão
demoradamente que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito
amiga de si. Quando tornou, trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar
o filho dormindo, pensara na filhinha de Sancha, e na aflição da viúva. E, sem
se lhe dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e
disse-me que, se quisesse pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha
vida. José Dias achou a frase "lindíssima", e perguntou a Capitu por
que é que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim acabamos a
noite.
No
dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dá-lo
a imprimir, mas era lembrança do finado. Pensei em recompô-lo, mas só achei
frases soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também pensei em fazer
outro, mas era já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham
ouvido no cemitério. Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados à rua,
era tarde; estariam já varridos.
Inventariei
as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala de marfim,
um pássaro, o álbum de Capitu, duas paisagens do Paraná e outras. Também ele as
possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar memórias e regalos, ora em dia de
anos, ora sem razão particular.
Tudo
isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do dia: davam notícia do
desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as qualidades
pessoais, a simpatia do comércio, e também falavam dos bens deixados, da mulher
e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o
testamento, que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia à
mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada
eram sublimes de amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compôs-se
depressa.
Testamento,
inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco
tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná.
Capítulo
CXXXII: O Debuxo e o Colorido.
[...]
Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se
sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou
pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu
tolerava-as e praticava as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o
que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto
de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era
grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir
pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada. Quando,
porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria e
esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro.
O
que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui,
por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem
falha nem canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos
temporais eram agora contínuos e terríveis.
Antes
de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de pouca dura; não
tardava que o céu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde abríamos
novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais belas do universo,
até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos
outra bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, próxima e firme.
Releva-me
estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e
comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu.
CAPÍTULO
CXLVIII: E bem, e o resto?
Agora,
por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do
meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana
oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é
saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se
esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de
Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX,
vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a
enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu
concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que
uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
CAPÍTULO
CXXXV: OTELO
Jantei
fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira
nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes
raivas do mouro, por causa de um lenço. ‒ um simples lenço!‒ e aqui dou matéria
à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude
furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e
compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se. Hoje são
precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas.
Tais eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida
que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia. Nos intervalos não
me levantava da cadeira- não queria expor-me a encontrar algum conhecido. As
senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens iam fumar. Então
eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado alguém que jazesse
agora no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e continuava
a peça. O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as
súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e
a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
‒
E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; ‒ que faria o público, se ela
deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro?
Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e
vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao
vento, como eterna extinção...
Vaguei
pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade um quase nada, mas o bastante para
ir até à manhã. Vi as últimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os
derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os
primeiros ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me
veria ir para nunca mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por
si mesmas. Não tornaria a contemplar o mar da Glória, nem a serra dos órgãos,
nem a fortaleza de Santa Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta,
como nos dias comuns da semana, mas era já numerosa e ia a algum trabalho, que
repetiria depois; eu é que não repetiria mais nada.
Cheguei
a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete, iam
dar seis horas.
Tirei
o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a
última, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade
de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte.
Escrevi
dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo continha só
o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas
havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de
morrer.
REFERÊNCIAS
ASSIS,
Machado. Dom Casmurro. Disponível em:
SANTOS, W. de A. Dom Casmurro e os Farrapos de Textos. UFSC.
SENNA, Marta de. Estratégias do Embuste: Relações Intertextuais em Dom Casmurro. Scripta Belo Horizonte, V. 3, N. 6, p 167-174, 1º sem. 2000. Disponível em
Leitura Recomendada
SENNA, Marta de. Estratégias do Embuste: Relações Intertextuais em Dom Casmurro. Scripta Belo Horizonte, V. 3, N. 6, p 167-174, 1º sem. 2000. Disponível em
Leitura Recomendada
SHAKESPEARE,
William. OTELO, O Mouro de Veneza. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/otelo.html