Meu nome é Canis Narrator. Se fosse modesto, diria simplesmente que sou alguém que gosta de contar histórias, além de dar e receber fidelidade à humana que me chama de filhote até hoje, apesar de que já estou na terceira idade canina.
Mas como pertenço à Academia dos Há Cães Dêmicos, vou logo dizendo que sou produtor de roteiro para canais de televisão especiais para entretenimento canino. Então é claro que vou contar a história que foi premiada como melhor episódio do Canal Xis Cão, no programa Levante as orelhas que lá vem história!
A história se passa em Florianópolis, em 27 de abril de 2020, durante o isolamento social para evitar a proliferação do Covid 19. Não sei se já deduziram, mas a minha mamãe humana já não é tão nova como antigamente foi... (dá uma dor esdrúxula ao dizer isso, porque não há eufemismo que o sustente sem parecer ridículo).
Mas abana o rabo que lá vem história, caro leitor! Já que agora começa o propriamente dito, vivido, presenciado, que foi quando Mamãe resolveu me tirar do meu sossego contemplativo e assistir TV naquela altura que não há cão que aguente!
Aleatoriamente, ela ligou num canal no qual passava um programa de culinária e teve novamente aquela necessidade premente de ir ao supermercado.
– O que iria fazer?
Vestiu-se para sair e...
Não podia. Então se amarrou na poltrona.
Verificou que tinha ficado bem amarrada. Não poderia fugir...
O telefone tocou, não daria tempo de se desamarrar para atender. Resolveu não tentar fazê-lo, seria um desgaste inútil ou um risco.
Na dúvida, continuou onde estava.
O programa a que assistia aguçou a sua fome. Será que teria todos os ingredientes para fazer a receita apresentada? Lembrou-se dos itens que estavam lá no armário da cozinha destinado para tal fim.
– Estariam na validade?
Pensou em se desamarrar para conferir. Mas amarrar tinha dado um trabalho tremendo!
Alcançou o celular sem se desamarrar.
Havia várias mensagens e uma ligação não atendida. Era a filha mais velha: minha irmã humana.
– Teria ficado preocupada, já que Mamãe não atendeu?
Mamãe considerou que sim. Mas depois relaxou, afinal uma pessoa deve ter direito a ir ao banheiro sossegada!
– Quantos minutos teria para um banho normal? – conjecturou Mamãe.
Precisaria cronometrar, mas o celular escorregara. Agora não dava para alcançá-lo. Pensou em alguma maneira de cronometrar o tempo, sem celular ou relógio. Pensou na contagem numérica, mas era entediante. Considerou que cantar uma canção popular repetidamente para compor o tempo de um banho com cuidados especiais na lavagem dos cabelos seria uma alternativa para seu impasse.
Foi quando iniciou um cálculo complicado e quiçá promissor. Qual a duração da música O bêbado e a Equilibrista? Teria que cantá-la quantas vezes, tendo em vista o seu propósito?
Ouviu outro soar de campainha. Era o interfone. Teria alguém na portaria procurando por Mamãe? Ou seria engano? Era apenas um funcionário transmitindo algum recado? E se fosse alguma emergência?
Talvez devesse se desamarrar de imediato.
Não sei se já perceberam, mas Mamãe tem lá seus dotes artísticos. Com tanto movimento na interpretação musical o nó tinha ido para o lado posterior da cadeira, estava difícil de alcançá-lo. O que fazer?
Resolveu tentar escorregar... Sim, estava dando algum resultado... Estava quase no chão... Chegou, finalmente, mas com uma tremenda dor no corpo.
Constatou, finalmente, que seria melhor pedir ajuda para levantar. Mas como?
Arrastou-se até o celular. Tinha um recado de voz deixado pela filha. Dizia que estivera no supermercado, que telefonara de lá para saber se queria completar a lista que lhe dera. Como Mamãe não atendera, a filha (que não tem faro de cão) deixara as compras na portaria, pedira ao funcionário para interfonar e avisar, posteriormente, porque devido à quarentena demandada pela pandemia não poderia entrar e abraçar nossa progenitora.
Mamãe tivera que lutar corporalmente com sua compulsão de ir ao supermercado. Não conseguira conversar com a filha para pedir os ingredientes da nova receita que aprendera. Estava com dores no corpo e não podia sair para ir à massagista.
Foi então que percebi que Mamãe estava ofegante. Resolvi fazer uma performance de cão São Bernardo e mordi uma das pontas das amarras... Puxei! Foi bem fácil. Mamãe ainda era uma excelente atriz, pois apenas imaginara que se amarrara!
– Que dia de cão! – pensou Mamãe.
– Nem brincar de São Bernardo teve graça! Que dia de humanos em pandemia! – pensei eu.