terça-feira, 5 de março de 2013

Pode a memória ser crítica, "brother"? Amanhã vai ser outro dia! Por Edna Domenica Merola







Com a proximidade da Páscoa e tantos ovos de chocolate, literalmente sobre a minha cabeça, durante as idas ao supermercado, lembrei-me de quando era coordenadora pedagógica em escola pública e de como lutávamos para construir uma cultura escolar pautada em reflexão. Em tempos que ainda não tinham sido atacados pelo estado de ser Big brother, trabalhávamos para expurgar certas cristalizações e ranços didáticos, dentro da escola de Ensino Fundamental. Dar trabalhos escolares relativos a datas cívicas ou religiosas faz parte da prática didática repetida compulsivamente, na escola, desde a época de nossos avós. Mas é menos inocente do que parece. Pode perpetuar preconceitos e provocar intempéries pedagógicas, conforme a maneira pela qual for conduzida. Sou de uma geração que desconfia sempre, estranha muito, mas que, mesmo sexagenária, continua refletindo. Sou da geração que inventou outro "dia", como diz o poema musicado de Chico Buarque de Holanda.


"Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você

  Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
..............................
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria

 ...............................
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia.
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente.
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
  .........................."
Sou da geração que lia João Cabral de Melo Neto e encenava Morte e Vida Severina lá no TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo). Sou da geração de estudantes que tomou o poema Tecendo a manhã (também do João Cabral) como palavra de ordem:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


Sou da geração que lutou por seus ideais entretendendo (O poema supra cria essa palavra que seria gerúndio do verbo “entretender”, que evoca a presença das palavras: “entre”, “tenda”, “entender”, “tender”.). Sou da geração que viveu entre a repressão política e a expansão da intelectualidade, entre a censura e a criação de neologismos; teve por tenda a arte; entendeu metáforas. Sou da geração que sobreviveu sob cognomes e ensinou pela parábola como No caminho com Maiakovski de Eduardo Alves da Costa que foi atribuída a Bertolt Brecht ou a Vladimir Maiakovski, durante os anos de chumbo.
(Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.).
Sou da geração que exercia o poder de escolha nos festivais de Música Popular Brasileira. Sou da geração que adorava ouvir os relatos dos irmãos e primos mais velhos sobre a chamada Guerra da Maria Antonia (disputa político ideológica entre alunos do Mackenzie e da USP, cujas faculdades tinham por sede a Rua Maria Antonia, na cidade de São Paulo, em 1968. Houve intervenção da Polícia Militar.). Sou da geração que conviveu com colegas mais velhos e que foram alunos da Professora Doutora e autora de livro didático para a escola fundamental, mas que foi afastada pelos "milicos" da chefia de seu cargo na Universidade pública. Ela teve seu lugar tomado pelo Dr. Ganso (claro que esse era seu apelido!). Ele que institucionalizou o teste do sofá naquele departamento. O teste (é claro) era só para quem se inscrevia... A inscrição não era obrigatória. Poderíamos optar pelo grupo da Opus Dei, ou simplesmente esquecer a possibilidade de batalhar por uma pós-graduação... Sou da geração que estudou em "barracões" (prédios improvisados) no campus da Universidade São Paulo. Sou da geração que sabia que as práticas escolares do período das ditaduras poderiam fechar mentes ao invés de abri-las. Sou da geração filha ou neta das vítimas do sistema educacional à moda Getúlio Vargas, cujo governo negou-se a aumentar o número de vagas na escola pública, tentava moralizar o país repetindo em comícios para operários: "quem estuda, passa". Getúlio que se esquecia de dizer que, o aluno que tivesse qualquer problema familiar como morte da mãe ou abandono do pai se desgarrava do lindo rebanho dos eleitos para sempre.
Sou da geração que repudiava os falsos moralistas. Na ditadura militar, as datas cívicas eram obrigatoriamente comemoradas no dia e com a escola aberta, a frequência obrigatória e a ausência injustificada, de tal forma que nunca fomos à praia no dia sete de setembro de diversos anos de nossas vidas. (E a vida de muitos colegas foi breve por 'destino' ou abreviada pela tortura!). Sou da geração que sabe que as 'Efemérides' enquanto tarefas escolares são pouco aceitas por professores reflexivos, até hoje, pois consolidam estratégias didáticas de caráter hegemônico.
A Quaresma, por exemplo, foi criada no século IV, pelo Papa Gregório I. A duração da Quaresma, sim, é citada na Bíblia por diversas vezes... Quarenta dias do dilúvio... Quarenta anos de peregrinação do povo judeu pelo deserto... Quarenta dias de Moisés e de Elias na montanha... Quarenta dias que Jesus passou no deserto antes de começar sua vida pública. Foi, portanto, a partir de uma ordem Papal que a quaresma passou a ter força de penitência litúrgica.
Dentre as efemérides tolero com prazer o dia Primeiro de Maio ‒ que é o dia do Trabalhador e (faça-me o favor!) da Trabalhadora principalmente. Gosto também do dia dos Professores (percebeu o plural?): dia de uma categoria!
Fiquei sabendo há poucas horas atrás que muitas pessoas na faixa de 80 anos, nascidas quer no interior de São Paulo, quer na grande Florianópolis não conheceram, na infância, as comemorações da Páscoa, tal como ocorrem hoje (coelhinhos, ovos gigantes,...). Na minha infância, imaginava que todo o mundo era igual aos moradores do nosso bairro e aos fiéis da Igreja São José. Deve ser por isso que a gente cresce: para nossa alma expandida caber dentro de nós e para podermos abarcar outras experiências diversas das nossas.
Na quinta-feira retomava-se o Lava Pés, no qual Jesus ajoelhava-se para todos os apóstolos inclusive frente ao malvado traidor Judas... Como se não bastasse, o velhinho, doce e bondoso Padre Dante tinha de fazê-lo também frente aos jovens da turma da Legião de Maria que representavam os apóstolos nessas ocasiões... Tudo aquilo era muito forte para mim que era criança e, além disso, muito religiosa e muito sensível... E havia via sacra e tome maus tratos em Jesus que era de dar pena... E Procissão da Sexta-Feira da Paixão... E eu sofria com cada chicotada, com cada ferida do Filho de Deus... Mas minha alma de poetisa se deliciava com o cântico da Verônica que podia chegar perto de Cristo e fotografar sua face com o pano sagrado.
Lembro-me da Páscoa de minha infância como uma grande oportunidade de me sentir adulta, acordando antes do sol nascer para ir à procissão da Igreja São José do Ipiranga, na minha amada cidade de São Paulo, quando ainda não era uma megalópole. Podia carregar uma vela acesa rodeada por um papel celofane colorido, em todo o grande percurso. Era a chamada procissão do Encontro. Nessas ocasiões, minha mãe usava uma mantilha de renda preta e eu uma mantilha de renda branca: linda, lindíssima!
À época para comungarmos na missa da manhã, deveríamos fazer jejum desde a noite anterior. A saída da missa era gloriosa, pois um ovo de Páscoa me esperava, em casa, que ao chegar cheirava café feito em coador de tecido. Alguns familiares que não gostavam da procissão e sim de dormir um pouco mais ou de levantar cedo e permanecer em casa para preparar os assados e as massas para o almoço, deixavam a mesa posta para nós que havíamos madrugado. E eu me servia só de leite... Nem pão, nem manteiga ou bolacha para quebrar o jejum. No leite, eu colocava um pedaço bem grande de chocolate que destacava do ovo, tornando a vesti-lo, em seguida, com sua armação de plástico, seu papel laminado e seu papel celofane com desenhos de coelhinhos. Era uma maneira de recompô-lo e de poder pensar que ainda estava inteiro até a sobremesa do almoço de Páscoa, não se esquecendo de guardar para levar de lanche para a escola na segunda-feira, que era o dia chamado de "Pasquela".
Alguém de baby doll de nylon e chinelos de cetim bordado com lantejoulas e miçangas bisbilhotava meu desjejum:
‒ Puxa, que gulosa, sua carola!
‒ Olha lá quem fala! Sua passeadeira da Missa das Dez!
A "carola" e a "passeadeira" cresceram e escolheram lindas profissões: uma a de educadora e a outra de assistente social. Ambas leram BUBER e uma amou o Encontro buberiano e outra o pensamento dialógico e a Utopia (mais do que amavam os Beatles e os Roling Stones). Ambas lutaram por um país com menos desigualdades sociais.
Uma adoeceu com dignidade e foi chamada, relativamente cedo, para ver a face de Cristo no pano sagrado de Verônica e ouvi-la cantar para Ele todo dia (além de participar das rodas de samba celestes, ir aos novos shows da Elis Regina e de Vinícius de Moraes). A outra envelheceu com serenidade... Certa de que todo dia pode ser uma oportunidade de organizar uma procissão (ou passeata) pelo Encontro. Crente de que em todos os dias pode-se ressurgir, renovando a própria capacidade de expandir-se e de compartilhar alteridade. Ciente de que a grande efeméride nunca é hegemônica e sempre é crítica e reflexiva.
Pois a grande efeméride somos nós... Em humanidade e fraternidade... A efeméride que merece ser comemorada e até ser objeto de tarefa para inocentes criancinhas somos nós: gente de todas as idades, gente plena de pluralidade. Gente que cultiva a esperança de que "amanhã será outro dia... apesar de você", representante instituído, que para mostrar serviço cria Projeto de Lei que leva seu nome e propõe mais uma data de caráter hegemônico ou populista.
Apesar de você, em seu estado de ser Big Brother, a outra envelhece, com serenidade, lembrando-se da mãe de mantilha preta ou com os cabelos ao vento, da irmã assistente social lendo Buber, da letra de Chico Buarque, dos poemas do João Cabral de Melo Neto, do poder em longo prazo das passeatas pacíficas, do poder pessoal de estar com todos os ideais em dia, da intenção de negar a pedagogia do sofrimento e da exclusão, para firmar votos pela fraternidade, pela empatia e pela compaixão.


4 comentários:

  1. Que maravilha, querida Edna! Presente! eu também faço parte desta geração, lugar, estado mental e memória (Eu sou da Gera…). Hoje, mais que nunca, Apesar de VOCÊS, enfrentamos com dignidade outra Roda Viva. Fortes e atentos. Feito galos na madrugada, zelando pela Morte e Vida de severinas e severinos e vagando pela longa noite qual tal o cão desemplumado/metáfora de Cabral em sua cinzenta convivência com os homens-caranguejos. É a Hora da Memória Crítica, manos e manas! Hora de viralizar/transformar/transbordar/bordar/dar. (Gilberto Motta)

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  2. Edna! O que é isso!!!??? Estou ainda atordoadamente encantado com essas suas palavras tão belas, sensivieis,inspiradoras... Um mais que presente! Parece que faço parte desse universo que vc desenhou e trouxe aos nossos olhos e corações tanta reflexão poética ( ou poesia reflexiva). No fluir a gente até se esquece de pensar, primeiro. Deixa-se se levar.... Num turbilhão vamos seguindo sua trajetória que é de tantos! Me vejo tanto nisso, já disse, mas preciso redizer para reflorecer em belezuras e sonhos. Depois a gente para no ar e fica assuntando tudo... Acho que ainda estamos desenhando outros dias nesses tão doloridos tempos... Meu carinho. Sempre. ( Gil)

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  3. Grande texto, Edna....SOMOS desta mesma geração...Evoé!...Salve o Oficina, a Tropicalia, Viva Glauber Rocha, Boal, Guarniéri...Viva Cacilda Becker.

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  4. Meus dois amados Gil e Giba, companheiros de escrita, muito bom ler seus comentários. Precisamos "redizer para reflorescer em belezuras e sonhos" posto que "somos desta mesma geração..." em que "A efeméride que merece ser comemorada e até ser objeto de tarefa para inocentes criancinhas somos nós: gente de todas as idades, gente plena de pluralidade. Gente que cultiva a esperança de que "amanhã será outro dia... apesar de você", representante instituído, que"...

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