Na disciplina Literatura Brasileira II, ministrada pela Professora Tânia Regina Oliveira Ramos, no CCE, UFSC , tivemos por tarefa a produção de um diálogo entre dois objetos, em citação a Um Apólogo de Machado de Assis.
Escolhi por objetos um tênis e uma meia. E por título:
"Outro apólogo em citação a Um".
"Outro apólogo em citação a Um".
Era uma vez um tênis, que disse a uma
meia:
— Por que está você com esse ar... Toda enrolada para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhor.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê?
Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei
sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhor? O senhor não tem pé
e nem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque sou peça fundamental em
qualquer ocasião. Então o visual de nosso patrão, quem é que o produz, senão
eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que
o produz? Você ignora que quem o produz sou eu, e muito eu?
— Você pisa o chão, nada mais; eu é que protejo
e agasalho, harmonizo o visual do calçado com a calça comprida, causo o efeito
estético necessário...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que chuto
pra gol, vou adiante, me exibindo, e você vem escondido, obedecendo ao que eu
faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do
imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que
você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só se mostrando, e vai
fazendo o trabalho sujo de pisar nas calçadas quebradas e cheias de fezes de
cães. Eu é que sou limpinho: cheirando a amaciante de roupa...
Estavam nisto, quando o patrão deles chegou
à casa. Não sei se disse que isto se passava nos pés de um mauricinho, que tinha a patricinha ao pé de si, para não andar
atrás dela.
Chegou à varanda, tirou o tênis, tirou as
meias, ficou descalço, massageou os pés, e entrou a relaxar. Um e outra iam refrescando
orgulhosos, pela varanda, que era o melhor compartimento do apartamento com
espaços ínfimos como os dedos do Pequeno Polegar — para dar a isto uma cor patética.
E dizia a meia:
— Então, senhor tênis, ainda teima no
que dizia há pouco? Não repara que este distinto patrão só se importa comigo;
eu é que fiquei colado entre os dedos dele, unidinha a eles, abaixo e acima.
O tênis não respondia nada; ia arejando.
O buraco ocupado pela meia estava agora vazio, sem ela. Silencioso e ativo como
quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A meia vendo que ele
não lhe dava resposta, calou-se também. E era tudo silêncio na varanda do
apartamento; não se ouvia mais que o vuum-vuum
vuum do vento no tênis e na meia. Caindo o sol, o mauricinho fechou a varanda, para abri-la no dia seguinte. Foi
assim nesse e no outro, até que no quarto dia acabou a mão de obra. Era o dia esperado
de usar o traje a rigor: a formatura da patricinha.
Veio a noite do baile, e o patrão vestiu-se.
A patricinha que o ajudou a vestir-se, levava a certeza empinada no
corpinho, para dar algum palpite necessário. E enquanto o mauricinho compunha o
visual, puxava a gravata a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali,
alisando, abotoando... A meia para mofar do tênis, perguntou-lhe:
— Ora agora, diga-me quem é que vai ao
baile, nos pés do mauricinho? Quem é que vai dançar com a patricinha, enquanto você volta para a varandinha, antes de ir para
debaixo das camas? Vamos, diga lá.
Parece que o tênis não disse nada; mas
um chinelo grande e não menor experiência, murmurou ao pobre calçado:
— Anda, aprende, tolo. Cansas-te em
abrir caminho para o mauricinho e ele
é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas jogado na varanda. Faze como eu, que
não me exibo e não sirvo para exibir ninguém.
Contei esta história a um professor de
melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de tênis
a muito mauricinho bipolar!
ADENDO: Um Apólogo. Machado de Assis.
Era uma vez uma agulha, que disse a um
novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda
cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê?
Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei
sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é
alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual
tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos
outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos
e enfeites de nossa ama, quem é
que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que
os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que
coso, prendo um pedaço ao outro,
dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo
o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço
e mando...
— Também os batedores vão adiante do
imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que
você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai
fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira
chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma
baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela.
Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou
a linha na agulha, e entrou a coser.
Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo
pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira,
ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia
a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no
que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa
comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles,
furando abaixo e acima.
A linha não respondia nada; ia andando.
Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como
quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que
ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio
na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no
pano.
Caindo o sol, a costureira dobrou a
costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no
quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa
vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no
corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela
dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando,
abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora agora, diga-me quem é que vai ao
baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é
que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha
da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?
Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas
um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em
abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na
caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me
espetam, fico.
Contei esta história a um professor de
melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de
agulha a muita linha ordinária!
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