A compreensão do texto O Exercício contido no Exercício demanda a leitura prévia dos textos que poderão ser lidos nos adendos desta postagem ou pelos links:
1- POE, Edgar Allan. O Homem na multidão.
2- LOBO, Oleni Oliveira. Momentos desafiantes: um novo olhar.
https://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2017/12/textos-de-oleni-oliveira-lobo.html
3-NOBRE, Marlene Xavier. Uma Grande Viagem. http://netiativo.blogspot.com.br/2017/12/textos-de-marlene-xavier-nobre-autora.html
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O
Exercício Contido no Exercício
Edna Domenica Merola
Após as aulas de Teoria Literária com o Professor Anderson Costa (CCE, UFSC, segundo semestre de 2017), tive a ideia de incentivar outras pessoas a me acompanharem num exercício que extraí de O Homem da Multidão (1), de Edgar Allan Poe. O narrador se propõe a contar o que observara, numa tarde de outono, em que sentara perto da janela de um café londrino. Começa, no entanto, por descrever o próprio estado de espírito. O narrador se recuperara de uma enfermidade e recobrara suas forças, de maneira a sentir que sua visão mental estava bem aguçada. É nesse estado que descreve, com maestria, vários transeuntes de Londres do século XIX.
– Hoje, todos são
repórteres de si mesmos! Observar o outro, no próprio entorno, tornou-se uma
operação existencial altamente complexa. – pensei em tom profético.
Lembrei-me, então, de amigos moradores
de diferentes cidades a quem poderia enviar o convite para participar de tal
exercício. Notei que minha memória elegera os nomes daqueles que se dedicam a ajudar o próximo e que cultivam o hábito ou o gosto pela escrita, a exemplo de Oleni de Oliveira Lobo e Marlene Xavier Nobre.
Feitos os convites, aguardei. Recebidos os textos, fiz uma primeira leitura e me propus algumas indagações para a próxima:
– Qual o estado de espírito da
narradora?
– A história de vida da autora me revela que ela viveu algo semelhante ao representado no texto?
– A história de vida da autora me revela que ela viveu algo semelhante ao representado no texto?
– A narradora apontou, para o
leitor, o local de onde está observando o entorno? Usou um só ângulo ou o alterou
durante a narrativa?
O primeiro texto que vou
comentar é de autoria de Oleni Lobo.
– O estado de espírito da
narradora é de proatividade. Transmite alento e força ao leitor.
– A história de vida da autora
me revela que ela é voluntária na ala infantil de hospital. A narradora é uma observadora que
interage com os fatos relatados. Entra no mundo do faz de conta infantil que dá suporte ao enfrentamento da dura
realidade da criança interna num hospital.
– A narradora aponta como local
de observação “um
espaço em um hospital, no qual compartilha momentos assustadores com um
companheiro ao lado. Limitados a uma ala, um quarto com entra e sai de pessoas
que trazem líquidos com sabores não agradáveis, agulhas que provocam dores.”
– A narradora usou dois ângulos
durante a narrativa: o de integrante de trabalho voluntário em ala de
internação infantil e o de paciente.
Como voluntária: “A empatia fez
com que os adultos percebessem como este mundo é assustador e recheado de
receio e medo. Mamães são preparadas para que seu filho possa aproveitar da
melhor forma este momento. Paredes coloridas, brinquedoteca contadores de
história tanto para as crianças quanto para as mamães.”
Como
paciente é a personagem Senhora Unicórnio
que encontra, na sala de espera do hospital, um garoto que lhe diz: “tiraram
seu chifre da testa, mas deixa passar
a mão pra fazer um pedido, porque chifre de unicórnio ainda tem a força mesmo
quando tiram... deixa, deixa Senhora Unicórnio?”.
O segundo texto a comentar é de autoria de Marlene Xavier Nobre.
A narradora do texto “Uma
grande Viagem” apontou para o leitor o local de onde observava o entorno: um banco de jardim
em frente a uma igreja, de onde olhava (sem desdém) para as pessoas. A narradora descreve como se dá uma experiência de observação que vai do normal até o paranormal.
A princípio, agia “como uma caçadora de borboletas, procurando gente”, ou seja, assumia uma atitude "classificatória" (ou imparcial) perante as pessoas observadas. Em seguida, passa a perceber que cada pessoa carrega uma história diferente e experimenta “uma fissura de olhar cada pessoa bem vestida ou maltrapilha.”
Na sequência, abandona totalmente o projeto de ser imparcial e entra num estado especial de observação que chama de “uma grande viagem”. No final, revela ter tido uma premonição sobre um dos transeuntes desconhecidos que irá se casar com a filha da dona da casa vizinha.
A princípio, agia “como uma caçadora de borboletas, procurando gente”, ou seja, assumia uma atitude "classificatória" (ou imparcial) perante as pessoas observadas. Em seguida, passa a perceber que cada pessoa carrega uma história diferente e experimenta “uma fissura de olhar cada pessoa bem vestida ou maltrapilha.”
Na sequência, abandona totalmente o projeto de ser imparcial e entra num estado especial de observação que chama de “uma grande viagem”. No final, revela ter tido uma premonição sobre um dos transeuntes desconhecidos que irá se casar com a filha da dona da casa vizinha.
(1)
O Homem da Multidão. Edgar Allan Poe. Tradução: Dorothée de Bruchard
Ce grand malheur,
de ne pouvoir être seul. — LA
BRUYERE
Foi muito bem dito, a respeito
de um certo livro alemão, que “er lasst sich nicht lesen” — ele não se
deixa ler. Há certos segredos que não se deixam contar. Homens morrem toda
noite em suas camas, torcendo as mãos de fantasmagóricos confessores e
fitando-os lamentosamente nos olhos — morrem com desespero no coração e
convulsões na garganta, por causa do horror de mistérios que não aceitam
ser revelados. Infelizmente, a consciência humana às vezes carrega tão pesado
fardo de pavor que só no túmulo consegue desembaraçar-se dele. E assim a
essência de todo crime permanece irrevelada.
Não faz muito tempo, pelo final
de uma tarde de outono, sentei junto à ampla janela abaulada do café D..., em Londres. Eu tinha
estado doente durante alguns meses, mas estava agora convalescendo e,
recobrando minhas forças, me encontrava num daqueles felizes estados de
espírito que são exatamente o contrário do ennui — estados de espírito de
aguçadíssima apetência, quando se abre o véu que encobre a visão mental — o aklus
eh prin ephen — e o intelecto, eletrizado, ultrapassa tanto sua condição
ordinária quanto a ardente, ainda que ingênua, razão de Leibniz ultrapassa a
louca e flácida retórica de Gorgias. O simples fato de respirar era um deleite;
e eu extraía um prazer positivo até mesmo de muitas genuínas fontes de dor.
Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto na boca e um
jornal nas mãos, eu tinha me divertido a maior parte da tarde, ora percorrendo
anúncios, ora observando o grupo heterogêneo do salão, ora sondando a rua
através dos vidros enfumaçados.
A rua em questão é uma das
principais artérias da cidade, e tinha estado apinhada de gente o dia inteiro.
Mas à medida que escurecia, a massa ia aumentando; e, quando os lampiões já
estavam todos acesos, dois fluxos densos e contínuos de gente corriam diante da
porta. Eu nunca estivera antes em situação parecida naquele momento específico
da noite, e o mar tumultuoso de cabeças humanas me enchia, portanto, com uma
emoção deliciosamente nova. Renunciei, afinal, a todo interesse pelas coisas de
dentro do hotel e fiquei absorto na contemplação da cena lá fora.
A princípio minhas observações
tomaram um rumo abstrato e generalizante. Olhava para os transeuntes em massa,
e considerava-os em suas relações coletivas. Logo, no entanto, passei para os
detalhes, e examinava com minucioso interesse as inúmeras variedades de figura,
vestuário, jeito, andar, rosto e expressões fisionômicas.
A grande maioria dos que
passavam tinha uma atitude satisfeita e eficiente, e parecia só pensar em abrir
caminho na torrente. Tinham as sobrancelhas franzidas e moviam os olhos com
rapidez; quando esbarrados por outros passantes, não expressavam nenhum sinal
de impaciência, apenas ajeitavam a roupa e seguiam se apressando. Outros, de
uma classe também numerosa, tinham movimentos agitados, o rosto vermelho e
falavam e gesticulavam sozinhos, como que se sentindo solitários exatamente por
causa da densidade do agrupamento à sua volta. Quando impedidas de prosseguir,
estas pessoas paravam repentinamente de murmurejar, mas redobravam suas mímicas
e esperavam, com um sorriso ausente e exagerado nos lábios, que passassem aqueles
que os interrompiam. Se empurradas, saudavam profundamente os empurradores, e
pareciam tomadas de embaraço. — Não havia nada de muito distintivo entre estas
duas grandes classes além daquilo que observei. Seu vestuário pertencia àquele
estilo significativamente denominado decente. Eram indiscutivelmente fidalgos,
negociantes, advogados, comerciantes, agiotas — os eupátridas e o comum da
sociedade — homens de lazer e homens ativamente envolvidos em seus próprios
negócios — conduzindo empreendimentos por responsabilidade própria. Não
estimulavam muito a minha atenção.
A casta dos funcionários
saltava aos olhos; e nela identifiquei duas categorias dignas de reparo. Havia
os pequenos funcionários de estabelecimentos chiques — jovens cavalheiros com
casacos apertados, botas brilhantes, cabelos engomados e lábios insolentes. Não
fosse uma certa distinção de porte, que pode ser chamada de escritorismo,
na falta de palavra melhor, o comportamento destas pessoas parecia ser uma
reprodução exata do que havia sido o perfeito bon ton uns doze ou
dezoito meses antes. Usavam o refugo dos encantos da elite — e isto abrange, me
parece, a melhor definição desta classe.
A categoria dos altos
funcionários de firmas sérias, ou dos “senhores estáveis”, não havia como
confundir. Eram reconhecíveis por seus casacos e calças em preto ou marrom,
feitos para sentar confortavelmente, gravatas e coletes brancos, amplos sapatos
de aparência sólida, e grossas meias ou polainas. Eram todos levemente calvos e
a ponta de suas orelhas direitas tinha adquirido, pelo longo hábito de suster
uma pena, um desvio esquisito. Observei que sempre tiravam ou ajeitavam o
chapéu com ambas as mãos, e usavam relógios com curtas correntes de ouro de um
modelo durável e antigo. Sua afetação era a respeitabilidade — se é que possa
haver tão honesta afetação.
Havia muitos indivíduos de
garbosa aparência, que facilmente identifiquei como pertencendo à espécie dos
batedores de carteira requintados, de que todas as grandes cidades estão
infestadas. Olhava com grande curiosidade para esta fina-flor, e achava difícil
imaginar como chegavam a ser confundidos com cavalheiros pelos próprios
cavalheiros. O tamanho exagerado de seus punhos de camisa e um ar de franqueza
excessiva deveriam traí-los imediatamente.
Os jogadores, não poucos dos
quais identifiquei, eram ainda mais facilmente reconhecíveis. Usavam todo tipo
de traje, do cafetão de indumentária infame, com colete de veludo, lenço
extravagante no pescoço, correntes douradas e botões filigranados, até o do
clérigo cuidadosamente despojado, menos que tudo passível de suspeita. Ainda
assim, todos se distinguiam por uma morenice crestada da pele, um escurecimento
velado dos olhos, e pela compressão e palidez dos lábios. Havia mais dois
traços, além destes, pelos quais eu sempre conseguia identificá-los: um tom de
voz discreto ao conversar, e uma propensão incomum do polegar de abrir-se em
ângulo reto com os outros dedos. Notei muitas vezes, em companhia destes
patifes, um tipo de homens um tanto diferentes na aparência, mas ainda assim
farinha do mesmo saco. Podem ser definidos como cavalheiros que vivem da sua
esperteza. Parecem assaltar o público em duas frentes — a dos dândis e a dos
militares. Da primeira categoria os traços principais são cabelos longos e
sorrisos; da segunda, casacos alamarados e sobrancelhas franzidas.
Descendo na escala da chamada
elite, encontrei temas mais sombrios e mais profundos para especulação. Vi
camelôs judeus, com olhos de lince faiscando em rostos de que todas as outras
feições expressavam apenas abjeta humildade; robustos mendigos profissionais
fazendo cara feia para pedintes de melhor aparência, a quem somente o desespero
tinha jogado na noite a pedir caridade; inválidos débeis e cadavéricos, sobre
os quais a morte pusera uma mão firme, e que mancavam e titubeavam em meio à
multidão, encarando a todos com um olhar suplicante, como que em busca de
alguma consolação fortuita, alguma esperança perdida; garotas modestas vindo de
uma lida longa e tardia para um lar infeliz, e retraindo-se mais por aflição do
que indignação diante do olhar de bandidos com os quais sequer o contato direto
podia ser evitado; mulheres da vida de todo tipo e toda idade — a inequívoca
beldade no primor de sua feminilidade, lembrando a estátua em Luciano, com sua superfície
de mármore de Paros e seu interior recheado de lixo — a nojenta e absolutamente
decaída leprosa em andrajos — a bruxa enrugada, coberta de bijuterias e
encoberta pela maquiagem, fazendo um derradeiro esforço de juventude — a mera
criança de formas imaturas, mas já iniciada, por longa convivência, nos
terríveis dengos do seu comércio, e ardendo na voraz ambição de se igualar ao
nível de suas veteranas no vício; incontáveis e indescritíveis bêbados — alguns
deles em farrapos e remendos, cambaleantes, desarticulados, com rostos
machucados e olhos mortiços — outros com roupas intactas porém imundas, uma
fanfarronice ligeiramente vacilante, lábios grossos e sensuais, caras
rechonchudas e de aparência cordial — outros vestidos com tecidos que tinham sido
bons um dia, e que mesmo agora estavam escrupulosamente escovados — homens que
andavam com um passo mais firme e flexível do que o natural, mas cujos rostos
eram assustadoramente pálidos, cujos olhos eram pavorosamente vermelhos e
desvairados, e que agarravam com dedos trêmulos, ao transitar a passos largos
pela multidão, todo objeto que estivesse a seu alcance; além disto, doceiros,
mensageiros, carregadores de carvão, limpadores de chaminé; tocadores de
realejo, exibidores de macacos, mercadores de canções, os que vendiam com os
que cantavam; artesãos maltrapilhos e trabalhadores exaustos de toda espécie, e
todos cheios de uma ruidosa e desordenada animação que rangia destoante nos
ouvidos e trazia aos olhos uma sensação dolorosa.
À medida que a noite avançava,
avançava em mim o interesse pela cena; pois não só ia se alterando
materialmente o caráter geral da multidão (suas feições mais amenas iam sumindo
com a retirada gradativa da porção mais disciplinada das pessoas e as mais
grosseiras surgindo em mais acentuado relevo, à medida que a hora adiantada
trazia toda espécie de infâmia para fora da toca), como também os reflexos dos
lampiões de gás, antes enfraquecidos em sua disputa com o dia esvanecente,
tinham agora enfim alcançado a supremacia e derramavam sobre todas as coisas
uma luminosidade ofuscante e cambiante. Tudo era esplêndido, ainda que negro —
como o ébano a que foi comparado o estilo de Tertuliano.
Os efeitos fantásticos da luz
me obrigavam a um exame individual de cada rosto; e ainda que a rapidez
com que o mundo de luz borboleteava diante da janela me impedisse de lançar
mais do que um olhar em cada semblante, mesmo assim parecia que, no peculiar
estado de espírito em que me encontrava, eu muitas vezes conseguia ler,
até neste breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa na vidraça, estava
deste modo ocupado em perscrutar a massa, quando de repente apareceu um rosto
(o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco, setenta anos de idade) — um
rosto que imediatamente chamou e absorveu toda a minha atenção, por causa da
absoluta idiossincrasia de sua expressão. Eu nunca tinha visto nada nem de
longe parecido com esta expressão. Lembro bem que a primeira coisa em que
pensei, ao avistá-la, foi que Retzch, se a houvesse contemplado, a teria
muitíssimo preferido às suas próprias incarnações pictóricas do demônio. Como
eu tentasse, durante o breve instante de meu inusitado estudo, formar uma
análise daquilo que ela me transmitia, em minha mente despontavam, confusa e
paradoxalmente, as imagens de imensa capacidade mental, cautela, indigência,
avareza, frieza, maldade, sede sanguinária, triunfo, alegria, terror excessivo,
intenso — supremo desespero. Me senti estranhamente desperto, maravilhado,
fascinado. “Que história fantástica ”, pensei comigo mesmo, “não estará escrita
neste peito!” Me veio então um ardente desejo de não perder o homem de vista —
de saber mais sobre ele. Vestindo precipitadamente um sobretudo e apanhando meu
chapéu e minha bengala, me dirigi para a rua e abri caminho pela multidão na
direção que eu o vira tomar; pois ele já tinha sumido. Com alguma dificuldade
finalmente o avistei, me aproximei e o segui de perto, mas cautelosamente, de
modo a não chamar sua atenção.
Eu tinha agora uma boa
oportunidade de examinar a sua pessoa. Era de baixa estatura, muito magro e
aparentemente muito frágil. Suas roupas estavam, no geral, imundas e rasgadas;
mas passando ele de vez em quando pelo brilho forte de uma lâmpada, percebi que
sua roupa branca, ainda que suja, era de boa qualidade; e, se meus olhos não me
enganaram, entrevi, por um rasgão do roquelaure* cuidadosamente abotoado e
obviamente de segunda mão que o envolvia, um diamante e um punhal. Estas
observações exaltaram minha curiosidade e resolvi seguir o desconhecido aonde
quer que ele fosse.
Era agora noite escura, e uma
espessa névoa úmida pairava sobre a cidade, logo desaguando numa chuva densa e
pesada. Esta mudança de tempo teve um estranho efeito sobre a multidão, que se
abalou toda em novo tumulto e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A
ondulação, o empurra-empurra e o burburinho ficaram dez vezes maiores. De minha
parte, eu não me importava muito com a chuva — o resquício de uma febre antiga
em meu metabolismo dava à umidade um quê de perigosamente agradável. Atando um
lenço na boca, continuei firme. Durante meia hora o velho seguiu seu caminho
com dificuldade pela grande artéria, e eu ali andava bem perto dele por medo de
perdê-lo de vista. Não tendo uma vez sequer se voltado e olhado para trás, ele
não me notou. Em seguida tomou uma rua transversal, a qual, ainda que cheia de
gente, não estava tão apinhada como a principal de que tinha saído. Ali
tornou-se evidente uma mudança na sua atitude. Ele andava mais devagar e com
menos determinação do que antes — mais hesitantemente. Atravessou e
reatravessou a rua repetidas vezes, sem objetivo aparente; e a massa ainda era
tão densa que, a cada um daqueles movimentos, eu era obrigado a segui-lo de
perto. Era uma rua estreita e comprida, e ele a percorreu por quase uma hora,
durante a qual o número dos transeuntes foi se reduzindo àquele comumente visto
à noite na Broadway perto do parque — tão imensa é a diferença entre uma
multidão londrina e a da mais populosa cidade americana. Uma segunda mudança de
direção nos trouxe a uma praça esplendidamente iluminada e transbordante de
vida. O antigo jeito do desconhecido reapareceu. Seu queixo caiu sobre o peito,
enquanto seus olhos se moviam desvairadamente por baixo das sobrancelhas
franzidas, para todo lado, para os que o cercavam. Ele apressou seu passo firme
e obstinadamente. Contudo, fiquei surpreso ao perceber que, depois de ter
contornado a praça, ele se virava e retornava sobre seus próprios passos. Ainda
mais atônito fiquei ao vê-lo repetir a mesma caminhada várias vezes — quase me
descobrindo uma vez em que deu a volta num movimento súbito.
Neste exercício ele gastou mais
de uma hora, ao fim da qual éramos muito menos perturbados pelos transeuntes do
que no princípio. A chuva caía com força; o ar esfriava; e as pessoas estavam
voltando para casa. Com um gesto impaciente, o andarilho entrou numa rua
secundária comparativamente deserta. Ao longo dela, por cerca de um quarto de
milha, correu com uma presteza que eu nunca teria imaginado em alguém daquela
idade, e que tive bastante dificuldade em acompanhar. Em
poucos minutos chegamos a um vasto e tumultuado bazar, com cujos locais o
desconhecido parecia bem familiarizado, e onde sua atitude inicial fez-se notar
novamente enquanto ele abria caminho para lá e para cá, sem objetivo, por entre
o bando de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, ou cerca
disto, que passamos neste lugar, foi preciso muito cuidado de minha parte para
mantê-lo ao meu alcance sem chamar sua atenção. Por sorte, eu usava um par de
galochas de borracha, e podia ir e vir em perfeito silêncio. Em momento algum
ele percebeu que eu o observava. Entrava numa loja atrás da outra, não
perguntava o preço de nada, não dizia uma palavra, e mirava todos os objetos
com um olhar ausente e desvairado. Eu estava a estas alturas totalmente
espantado com sua conduta, e decidi firmemente não me separar dele até que
tivesse de alguma forma satisfeito minha curiosidade a seu respeito.
Um sonoro relógio bateu onze
horas e os freqüentadores deixavam rapidamente o bazar. Um lojista, ao fechar
uma persiana, esbarrou no velho, e vi um violento arrepio instantaneamente
percorrer todo o seu corpo. Ele se precipitou para a rua, olhou ansiosamente ao
seu redor por um momento, e saiu correndo com uma rapidez incrível por várias
ruazinhas tortuosas e desertas até que alcançamos novamente a grande artéria de
onde tínhamos partido — a rua do Hotel D.... Ela, no entanto, já não
apresentava o mesmo aspecto. Ainda brilhava sob o gás; mas a chuva caía
furiosamente, e só se avistavam poucas pessoas. O desconhecido ficou pálido.
Deu alguns passos mal-humorados no que fora uma avenida populosa e então, com
um profundo suspiro, tomou a direção do rio e, mergulhando em inúmeros desvios,
foi parar, afinal, diante de um dos principais teatros. Este estava para
fechar, e o público formigava pelas portas. Vi o velho como que sufocar
enquanto se jogava em meio à multidão; mas achei que a agonia intensa de sua
fisionomia tinha, de certa forma, diminuído. Sua cabeça caiu novamente sobre seu
peito; ele se mostrava tal qual eu o tinha visto no princípio. Notei que ele
agora se dirigia para onde se fora a maior parte do público — mas, no geral,
não compreendia absolutamente a indocilidade de suas ações.
Enquanto ele avançava, as
pessoas iam rareando, e seu velho mal-estar e vacilação ressurgiram. Durante
algum tempo ele seguiu de perto um grupo de uns dez ou doze arruaceiros; mas
deste número um por um foi sumindo, até que apenas três permaneceram juntos,
numa travessa estreita e sombria, pouco freqüentada. O desconhecido deteve-se
e, por um momento, pareceu perdido em reflexões; então, evidentemente
perturbado, tomou rapidamente um caminho que nos trouxe ao extremo da cidade,
por zonas bem diferentes daquelas que tínhamos atravessado até então. Era o
mais repulsivo bairro de Londres, onde cada coisa é revestida da pior marca da
mais deplorável pobreza e do crime mais desesperado. À luz de um eventual
lampião viam-se casas de madeira altas, antigas, titubeantes e atacadas por
cupins, em tantas e tão caprichosas direções que mal se percebia entre elas
algo parecido com uma passagem. Os paralelepípedos jaziam a esmo, arrancados de
seus lugares pela grama crescendo solta. Uma imundície horrível apodrecia nas
sarjetas entupidas. A atmosfera toda era repleta de desolação. No entanto,
enquanto avançávamos, os ruídos da vida humana ressurgiam clara e gradualmente,
e afinal avistamos grandes bandos dos maiores marginalizados de um populacho
londrino, cambaleando daqui e dali. O ânimo do velho tremulou novamente, como
uma lamparina prestes a expirar. Ele mais uma vez saiu andando a passos largos
e elásticos. De repente, dobrou-se uma esquina, um clarão de luz nos explodiu
nos olhos, e nos deparamos com um dos imensos templos suburbanos da
Intemperância — um dos palácios do demônio, o Gin.
Já quase amanhecia; mas
inúmeros bêbados miseráveis ainda se espremiam dentro e fora da ostensiva
entrada. Com um grito contido de alegria, o velho abriu passagem para dentro,
reassumiu de imediato sua postura inicial e se pôs a circular para lá e para
cá, sem desígnio aparente, em meio à massa. Ele, no entanto, não estivera há
muito assim ocupado quando um movimento intenso rumo às portas indicou que o
proprietário estava por cerrá-las. Foi algo ainda mais intenso que desespero
que observei então na fisionomia deste ser singular que eu vinha espiando tão
obstinadamente. Contudo, não hesitou em sua carreira e, com louca energia
prontamente retornou sobre seus passos para o coração da imponente Londres.
Correu rápida e longamente, enquanto eu o seguia com o mais desvairado espanto,
decidido a não abandonar uma investigação pela qual sentia agora um interesse
de todo absorvente. O sol nasceu enquanto avançávamos e, quando mais uma vez
alcançamos o apinhadíssimo centro comercial da populosa cidade, a rua do Hotel
D..., esta apresentava um ar de alvoroço e atividade humanas pouco menor do que
o que eu tinha visto na noite anterior. E ali, por muito tempo, em meio à
confusão que aumentava sem cessar, persisti em minha perseguição ao desconhecido.
Mas ele, como sempre, andava para lá e para cá, e durante o dia não se afastou
do turbilhão daquela rua. E, como se aproximassem as sombras da segunda noite,
fui ficando mortalmente cansado e, parando bem em frente ao andarilho, o
encarei resolutamente. Ele não reparou em mim, e retomou sua caminhada solene,
enquanto eu, deixando de segui-lo, fiquei absorto em contemplação. “Este
velho,” eu disse afinal, “é o modelo e o gênio do crime profundo. Ele se nega a
ficar sozinho. Ele é o homem da multidão. Vai ser inútil segui-lo; pois
não vou aprender mais nada, nem com ele, nem com seus atos. O pior coração do
mundo é um livro mais repulsivo do que o “Hortulus Animae”*, e talvez
seja apenas uma das grandes misericórdias de Deus que “er lasst sich nicht
lesen”.”
* O “Hortulus Animae cum
Oratiunculis Aliquibus Superadditis” de Grüninger.
POE, Edgar A. O Homem da multidão. Tradução de Dorothée de Bruchard. Edição
Bilíngüe. Porto Alegre: Paraula, 1993.
(2) Momentos
desafiantes: um novo olhar.
Oleni
Oliveira Lobo
Um
dos momentos mais imprevisíveis da vida e menos desejados na vida? Acredito que
seja a falta de saúde, principalmente em crianças. Uma fase para aproveitar,
experimentar ludicamente o que a vida tem a oferecer, correr, brincar, se jogar
no chão, andar descalço, explorando tudo que tem a sua volta, tudo
completamente inédito, seu olhar e desejo é conhecer o universo.
Algo
novo surge: seu quarto trocado por um espaço em um hospital, no qual
compartilha momentos assustadores com um companheiro ao lado. Limitados a uma
ala, um quarto com entra e sai de pessoas que trazem líquidos com sabores não
agradáveis, agulhas que provocam dores. Cadê a comidinha? Exames exigem muitas
vezes três dias sem alimentos apenas soro.
Tudo
tão assustador! Nada pode ser feito! Existe apenas este lado! Lembre-se “se
Maomé não vai à montanha...”.
A
empatia fez com que os adultos percebessem como este mundo é assustador e recheado
de receio e medo. Mamães são preparadas para que seu filho possa aproveitar da
melhor forma este momento. Paredes coloridas, brinquedoteca contadores de
história tanto para as crianças quanto para as mamães.
Uma
experiência em uma ala pediátrica com pacientes terminais, tudo isto existia,
cenas que eles mesmos escolhiam, nunca falavam em morte e nem perguntavam sobre
a criança que não voltava mais ao quarto.
Uma
ocasião uma criança ficou fora por trinta dias para realizar exames sendo
necessário o isolamento. Percebi que a menininha observava tudo com
estranhamento, perguntava nossos nomes. Ao retornar ao quarto, ainda nos
corredores da pediatria, as crianças ficaram olhando para a menina com
curiosidade, e uma delas perguntou: “como é morrer?”. E a menininha respondeu
“tudo lá é igual a aqui: a mamãe, o tio Pedro, tio Renato, nossa tia das
brincadeiras... Tudo igual! Só que tem uma luz azul. Deus eu não vi, e procurei
muito, mas eu ouvi um barulho da respiração dele e foi bom, deu alegria”. E as
crianças continuaram perguntando. Pareciam jornalistas cobrindo uma notícia em
primeira mão.
Emocionou
a todos e descobrimos que aquilo que as assustava, as crianças deixavam pra lá
e pensavam no hoje, no dia que tinham apetite para saborear o que gostavam, um
dia sem picadas. Ah! As picadas daquela grande vilã a dona agulha?
Bem,
a agulha foi transformada em um túnel para transportar os super-heróis e
superpoderosas, iriam disfarçadamente entrar no corpo combater o dodói. As
grandes frases ao receberem estes protetores: “tia este está usando laser, arde
muito. Se eu chorar o dodói vai perceber?”.
Ao
que dizíamos: “pode chorar daqui a pouco a guerra diminui.”.
Outros
diziam: “espada forte até eu tô
sentido cortar” “tô sentido o dodói
fugindo. Este homem aranha é bom mesmo”.
Uma
conversa de uma criança preparando outra para cirurgia: “fica com medo não!
(exibindo sua cicatriz), eles colocaram aqui dentro um chip que me avisa tudo,
mas vou te avisar: eles vão tirar uma coisa de ti, fica sem chorar porque eles
devolvem coisa melhor! Acredite: a sala é uma grande espaçonave e tem até gente
da lua que te faz dormir aquele soninho
como se fosse no colo da mamãe, por
isto não dói. Não vou mentir: depois deste soninho dói. Aí vem um
extraterrestre disfarçado e faz você dormir de novo. Eles são bons!”.
As
crianças têm muito a nos ensinar a sentir o invisível, a acreditar em magia. Ao
vestir uma fantasia da Frozen, do Batman, Minie, Capitão América, Unicórnio,
eles se transformam nestes personagens, mesmo sabendo que é um faz de conta
para tudo aliviar e amenizar.
Eu
mesma passei por estes momentos mágicos. Fizera um procedimento em minha testa,
quando encontrei com um garoto na sala de espera de uma consulta. A cicatriz
recente estava bem visível. O menininho ficava olhando em minha direção sem
desviar em nenhum momento seu olhar instigador. Dei um sorriso para ele o que o
incentivou a vir falar comigo. Ele disse: “tiraram seu chifre da testa, mas deixa passar a mão pra fazer um pedido,
porque chifre de unicórnio ainda tem a força mesmo quando tiram... deixa, deixa
Senhora Unicórnio?”.
É
claro que permiti. Então ele fechou os olhinhos e passou aquela mãozinha tão
fofa! Baixinho, ele disse: “não posso contar o que pedi, mas tem um pra ti,
Senhora Unicórnio. Vai ser bom! Hum! Que vontade de contar...”.
Mas
o médico o chamou para consulta. Dei um beijo nele que saiu todo feliz. E eu?
Fechei os olhos, coloquei minha mão em minha cicatriz... Ops, no local do meu
antigo chifre de unicórnio! E fiz um grande pedido, algo muito bom para ti que
está lendo este texto, eu pedi... Ah! Não vou contar. Afinal, se contar não
acontece!
(3) Uma grande viagem
Marlene Nobre Xavier.
Numa
tarde sombria e fria, me sentia um pouco vazia. Uma apatia me invadia. Estava cansada.
Na maior agonia, assim me via. Após tomar um banho, saí para aliviar minhas
dores. Fui passear em São José (SC).
Depois
de alguns meses corroída, quase enlouquecida, precisava tomar um ar. Caminhava calmamente
e observava cada ser que ao meu lado passava.
Resolvi
entrar num bar, pensei em pedir algo para me esquentar (que não fosse
aguardente!). Escolhi um licor. Estava consciente de que iria para algum lugar
e conheceria todo aquele local.
Ali
mesmo, pedi informação para o garçom. Queria saber um pouco mais daquela
cidade. Foi quando me deparei com um jardim pequeno, mas bem cuidado.
Paguei
a conta, agradeci pelo atendimento. Atravessei a rua e me sentei no banco do
jardim em frente a uma igreja. Ali fiquei a observar (sem desdém).
Minha
mente, naquele momento, fazia uma grande viagem. Não era sonho, nem ficção, era
fato, era real que estava à frente dos meus olhos que por muitas vezes ficaram
esbugalhados de tão assustados com o que via:
–
Pessoas de todos os gostos e rostos.
Quantos
seres ainda vivem na maior correria! Num sufoco do dia a dia.
Não
fiz com mau propósito, mas não deixei ninguém escapar do meu olhar.
Sentia-me
como uma caçadora de borboletas, procurando gente. Em cada pessoa via uma
história. Vi gente de toda a espécie, de gostos e estilos diversos.
Altos,
magros, gordos, rostos marcados pelo tempo e maltrato; jovens, idosos; gente bonita,
elegante, bem vestidas, mal vestidas, maltrapilhos; apressados.
Era
uma mistura de gente, e de tudo. Sentia uma fissura de olhar cada pessoa bem
vestida ou maltrapilha.
Vi
muita encenação e uma mistura de obsessão; pessoas divertidas, contidas, felizes
ou tristes. Todas ali tinham um destino certo: iam para algum local definido.
Gente
cansada, suada, pedintes, doentes, carentes, na correria do dia.
No
meio da multidão, muita gente decente no meio de muita confusão.
Muitas
eram assustadoras. Cada uma com a sua maneira de viver.
Todas
me encheram os olhos que ficaram arregalados.
Ali
fiquei por muitas horas. Algumas vezes cheguei a me compadecer com algumas delas.
Tão marcadas pelo destino, muitos olhares perdidos, muitos desencontros e
desencontrados. Sentia que faltava em algumas pessoas mais sorrisos, encantamentos,
alegrias e cores. Nos rostos, olhares sem direção. Muita confusão, indecisão. Corações
sangrando.
Vi
uma senhora entrando na igreja, com um rosário nas mãos. Talvez fosse a salvação,
no meio de tantos sofrimentos. Naquele momento me recolhi e vi que estava
realmente de frente com a realidade nua e crua.
Em
seguida, passou um jovem alto, magro de olhos claros, de jaqueta de couro de
cor preta e que me chamou a atenção. No meio de tanta gente, me sentia mais uma
à procura de algo.
Foi
quando deu um estalo na minha cabeça e conversei comigo mesma.
–
Sabe? Gostei desse jovem. Formatei um encontro um tanto louco. E imaginei que ele
seria um par perfeito para a filha da minha vizinha que passava por sérios
problemas depressivos. E ainda no meio da multidão, tomei uma decisão mental: fiz
o casamento do jovem que acabava de encontrar e que só de olhá-lo parecia que estava
vendo o seu mundo íntimo.
Meses
depois, contou-me a mãe, a filha iria casar com alguém que se apaixonara à
primeira vista. Os noivos levariam o convite na minha casa, naquela mesma
noite. Quando anoiteceu, tocaram a campainha. Ao abrir a porta vi o jovem
casal: ela que eu conhecia desde o nascimento e um jovem alto, magro de olhos
claros, de jaqueta de couro de cor preta. O mesmo que me chamara a atenção, na
multidão, meses antes.