O Gato e o Escuro
Nas águas do tempo. Mia Couto.
A Menina do Mar. Sophia de Mello Breyner Andresen
MANOEL DE BARROS
Nascido em Cuiabá em 1916, Manoel de Barros estreou em 1937 com o livro “Poemas Concebidos sem Pecado”. Sua obra mais conhecida é o “Livro sobre Nada”, publicado em 1996.
Cronologicamente vinculado à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de Barros criou um universo próprio — subvertendo a sintaxe e criando construções que não respeitam as normas da língua padrão —, marcado, sobretudo, por neologismos e sinestesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa.
Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros escreveu: “A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”. Os poemas publicados nesta seleção fazem parte do livro “Manoel de Barros — Poesia Completa Bandeira”, editora Leya. Por motivo de direitos autorais, apenas trechos dos poemas foram publicados.
O livro sobre nada
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O menino azul
O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
Sonhos da menina
A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?
Leilão de jardim
Quem me compra um jardim
com flores?
borboletas de muitas
cores,
lavadeiras e pas
sarinhos,
ovos verdes e azuis
nos ninhos?
Quem me compra este ca-
racol?
Quem me compra um raio
de sol?
Um lagarto entre o muro
e a hera,
uma estátua da Pri-
mavera?
Quem me compra este for-
migueiro?
E este sapo, que é jar-
dineiro?
E a cigarra e a sua
canção?
E o grilinho dentro
do chão?
Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
REFERÊNCIAS:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. A Menina do Mar. Editora: Cosac Naify. 2014.
_____________________________. Poemas escolhidos. Seleção de Vilma Areas. São Paulo, Cia das Letras, 2004.
Guimarães Rosas. Pirlimpsiquice. Primeiras Histórias, 1962.
“Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?”
Saramago. O Memorial do Convento.
O Padre Bartolomeu Lourenço comanda a construção de uma passarola. Blimunda e seu marido Baltasar Sete-Sóis auxiliam o padre em seu empreendimento. A participação de Blimunda é decisiva, pois é ela quem se responsabiliza por capturar as vontades que farão a passarola erguer-se do solo.
“Ficou o Padre Bartolomeu Lourenço satisfeito com o lanço, era o primeiro dia, mandados assim à ventura, para o meio duma cidade afligida de doença e luto, aí estão vinte e quatro vontades para assentar no papel. Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vontades, força de elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com o que segundo frasco foi entregue a Blimunda. Já em Lisboa muito se falava daquela mulher e daquele homem que percorriam a cidade de ponta a ponta, sem medo da epidemia, ele atrás, ela adiante, sempre calados, nas ruas por onde andavam, nas casas onde não se demoravam, ela baixando os olhos quando tinha de passar por ele, e se o caso, todos os dias repetido, não causou maiores suspeitas e estranhezas, foi por ter começado a correr a notícia de que cumpriam ambos penitência, estratagema inventado pelo padre Bartolomeu Lourenço quando se ouviram as primeiras murmurações.”
Trecho do livro As pequenas memórias.
“Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo meu pai a declarar no Registro Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudônimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era Jose de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente de Sousa.”
Referência
SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 43-44.
Morte e vida Severina, João Cabral de Melo Neto
‒ Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
‒ Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
‒ Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
‒ Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?
‒ Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
‒ Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
‒ Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
‒ Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
‒ Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
‒ Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
‒ E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
‒ é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
‒ E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
‒ De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
‒ E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
‒ Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.
No primeiro semestre de 2016, nas aulas
da disciplina Literatura Portuguesa III, CCE, UFSC, o Professor Stélio
Furlan nos presenteou com alguns
desafios, dentre eles o da elaboração de uma revista. Jéssica e eu, as editoras, até então
separadas por algumas gerações (quase habitantes de mundos diferentes!), nos
unimos para a tarefa de reunir textos de autores que escrevessem a partir desse
"território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando
que vai, inventando que volta." (COUTO, Mia).
Dessa leitura nasceu Proesia:
prosa poética contemporânea - que se não fosse uma revista e sim uma pessoa ‒
seria minha bisneta e filha de Jéssica.
Proesia é um recorte antológico de
lindos textos de renomados escritores: Mia Couto; Sophia Andersen; Manoel de
Barros; Cecília Meirelles; Inês Pedroso.
A poética de Mia Couto traz
o pluriverso (ou universo plural) à baila. Assim os elementos
Água, Terra, Fogo e Ar são presentes a exemplo de Nas Águas do
Tempo (água e terra do pântano); O Gato e o Escuro (ar); Lenda de
Namarói (fogo).
A construção de neologismos (brincriações)
é o próprio estado lúdico de criação pela linguagem. A poesia é presente
para narrar a morte em Nas águas do Tempo assim como é
presente para narrar o ritual de passagem ou ingresso no mundo 'adulto', em O
Gato e o Escuro. A poética de Mia Couto trata do desaguar que é choro de nascimento, mas
também desaguar do rio da vida para o mar da infinitude. Trata-se de uma
construção que circula "rio acima" e "rio abaixo"
e que vai assim revelando o ciclo da vida.
O
Gato e o Escuro
Vejam meus
filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele nem sempre
foi dessa cor. Conta a mãe dele que antes tinha sido amarelo, às malhas e às
pintas. Tanto que lhe chamavam o Pintalgato.
Diz-se que ficou
desta aparência, em totalidade negra, por motivo de um susto. Vou aqui contar
como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro. O caso vos digo,
não é nada claro.
Aconteceu assim:
o gatinho gostava passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a
noite. Faz de conta o pôr-do-sol fosse um muro. Faz mais de conta
ainda os pés felpudos pisassem o poente.
A mãe se afligia
e pedia:
‒ Nunca
atravesse a luz para o lado de lá.
Essa era a
aflição dela, que o seu menino passasse além do pôr de algum Sol. O
filho dizia que sim. Acenava consentindo. Mas fingia obediência. Porque o Pintalgato
chegava ao poente e espreitava o lado de lá. Namoriscando o proibido,
seus olhos pirilampiscavam.
Certa vez
inspirou coragem e passou uma perna para o lado de lá, onde a noite se
enrosca a dormir. Foi ganhando mais confiança e, de cada vez, se adentrou
um bocadinho. Até que a metade completa dele já passara a fronteira,
para além do limite.
Quando
regressava de sua desobediência, olhou as patas adianteiras e se assustou.
Estavam pretas, mais que o breu.
Escondeu-se num
cato, mais enrolado que o pangolim. Não queria ser visto em flagrante
escuridão.
Mesmo assim, no
dia seguinte, ele insistiu na brincadeira. E passou mesmo todo inteiro para o
lado de além da claridade. À medida que avançava, seu coração tiquetaqueava.
Temia o castigo. Fechou os olhos e andou assim, sobrancelhado, noite
adentro. Andou, andou, atravessando a imensa noitidão.
Só quando desaguou
na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos. Olhou o corpo e viu que já nem a si se via.
Que aconteceu? Virara cego? Por que razão o mundo se embrulhava num pano preto?
Chorou. Chorou. E chorou.
Pensava que nunca mais regressaria ao seu
original formato.
Foi então que ouviu uma voz dizendo:
‒ Não chore, gatinho.
‒ Quem é?
‒ Sou eu, o escuro.
Eu é que devia chorar, porque olho tudo
e não vejo nada.
Sim, o escuro coitado. Que vida a dele,
sempre afastado da luz! Por exemplo, ele se entristecia de não enxergar os
lindos olhos do bichano. Nem os seus mesmos ele distinguia, olhos pretos em
corpo negro. Nada, nem cauda nem o arco tenso das costas. Nada sobrava de sua
anterior gateza. E o escuro, triste, desabou em lágrimas.
Estava-se naquele desfile de queixas e tristezas
quando se aproximou uma grande gata. Era a mãe do gato desobediente. O gatinho Pintalgato
se arredou, receoso que a mãe lhe trouxesse um castigo. Mas a mãe
estava ocupada em consolar o escuro. E lhe disse:
‒ Pois eu dou licença a teus olhos: fiquem
verdes, tão verdes que amarelos.
E os olhos do escuro se amarelaram. E se
viram escorrer enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto.
O escuro ainda chorava:
‒ Sou feio. Não há quem goste de mim.
‒ Mentira, você é lindo. Tanto como os
outros.
‒ Então por que não figuro nem no
arco-íris?
‒ Você figura no meu arco-íris.
‒ Os meninos têm medo de mim. Todos têm
medo do escuro.
‒ Os meninos não sabem que o escuro só
existe é dentro de nós.
‒ Não entendo, Dona Gata.
‒ Dentro de cada um há o seu escuro. E
nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
‒ Não estou claro, Dona Gata.
Não é você que mete medo. Somos nós que
enchemos o escuro com nossos medos.
A mãe gata sorriu bondades, ronronou
ternuras, esfregou carinho no corpo escuro. E foram carícias que ela lhe dedicou,
muitas e tantas que o escuro adormeceu. Quando despertou, viu que as suas
costas estavam das cores todas da luz. Metade de seu corpo brilhava, arco-iriscando.
Afinal?
O espanto ainda o abraçava quando escutou
a voz da gata grande:
‒ Você quer ser meu filho?
O escuro se encolheu, ataratonto.
Filho? Mas ele nem chegava a ser coisa alguma, nem sequer antecoisa.
‒ Como posso ser seu filho se eu nem
sou gato?
‒ E quem lhe disse que não é?
E o escuro sacudiu o corpo e sentiu a
cauda, serpenteando o espaço. Esticou a perna e viu brilhar as unhas,
disparadas como repentinas lâminas.
O Pintalgato até se arrepiou, vendo
um irmão tão recente.
‒ Mas, mãe: sou irmão disso aí?
‒ Duvida, Pintalgato? Pois vou
lhe provar que sou mãe dos dois. Olhe bem para os meus olhos e verá.
Pintalgato fitou os olhos da sua mãe, como se se
debruçasse num poço escuro. De rompante, quase se derrubou, lhe surgiu como que
um relâmpago atravessando a noite.
Pintalgato acordou, todo estremolhado, e viu
que, afinal, tudo tinha sido um sonho. Chamou pela mãe. Ela se aproximou e ele
notou seus olhos, viu uma estranheza nunca antes reparada. Quando olhava o
escuro, a mãe ficava com os olhos pretos. Pareciam cheios de escuro. Como se
engravidassem de breu, a abarrotar de pupilas.
Ante a luz, porém, seus olhos todos se
amarelavam, claros e luminosos, salvo uma estreitinha fenda preta. Então, o
gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda escura como se vislumbrasse o
abismo.
Por detrás dessa fenda o que é que ele
viu? Adivinham? Pois ele viu um gato preto, enroscado do outro lado do mundo.
Nas águas do tempo. Mia Couto.
Meu avô, nesses dias, me levava rio
abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente
raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá,
parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.
— Mas vocês vão aonde?
Era a aflição de minha mãe. O velho
sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam
por saber e conversam mesmo sem nada falarem.
— Voltamos antes de um agorinha,
respondia.
Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe
não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada
a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para
a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto,
era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim.
Eu me admirava da sua magreza direita,
todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre
arrebatado pela novidade de viver.
Entrávamos no barquinho, nossos pés
pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes
de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com
sua mão em concha. E eu lhe imitava.
— Sempre em favor da água, nunca esqueça!
Era sua advertência. Tirar água no sentido
contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os
espíritos que fluem.
Depois viajávamos até ao grande lago onde
nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo
o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir.
Pois, naquele lugar se perdia a fronteira
entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre as águas
nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito
ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as
longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da
própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada.
Ficávamos assim, como em reza, tão quietos
que parecíamos perfeitos.
De repente, meu avô se erguia no concho.
Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava.
Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez
era a ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de
outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
— Você não vê lá, na margem? Por trás do
cacimbo?
Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando
os nervos.
— Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco,
a dançar-se?
Para mim havia era a completa neblina e os
receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem
e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem
companhia de palavra.
Em casa, minha mãe nos recebia com azedura.
E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago,
temia as ameaças que ali moravam.
Primeiro, se zangava com o avô,
desconfiando dos seus não propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa
chegada, ela ensaiava a brincadeira:
— Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda
ganhávamos vantagem de uma boa sorte...
O namwetxo moha era o fantasma que surgia
à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e
saíamos, aventurosos, procurando o moha.
Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu
avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o
tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe.
Mas a nós, miudagens, nem nos passava
desejo de duvidar.
Certa vez, no lago proibido, eu e vovô
aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os
verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas
canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu
avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à
margem, colocar pé em terra não firme.
— Nunca! Nunca faça isso!
O ar dele era de maiores gravidades. Eu
jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que
estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
— Neste lugar, não há pedacitos. Todo o
tempo, a partir daqui, são eternidades.
Eu tinha um pé meio-fora do barco,
procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão para
assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei nenhum fundo, minha perna
descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me
sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou e fomos dar
com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago,
agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e
começou a agitá-lo sobre a cabeça.
— Cumprimenta também, você!
Olhei a margem e não vi ninguém. Mas
obedeci ao avô, acenando sem convicções.
Então, deu-se o espantável: subitamente,
deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em
imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio,
dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:
— Não conte nada o que se passou. Nem a
ninguém, ouviu?
Nessa noite, ele me explicou suas
escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca.
Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se
abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu
filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam.
Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma
total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não
posso ser o último a ser visitado pelos panos.
— Me entende?
Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me
levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar.
Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa
do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que
ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada solidão dos
pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
— Fique aqui!
E saltou para a margem, me roubando o
peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu
espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em
desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a
discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem
da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo
de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta
trespassando os flancos da tarde, fazendo
sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do
mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do
pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o
aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então,
lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele
se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se
poentaram as visões.
Enquanto remava um demorado regresso, me
vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são
irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um
rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu
filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem.
Sophia de Mello Breyner Andresen [1919 -2004] uma das mais importantes
poetas portuguesas do século XX. Ela é autora dos títulos: O
nome das coisas (1977), Poesia (1944), O Dia do Mar (1947), Coral (1950),
No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto
(1962), Geografia (1967), Dual (1972), Navegações (1983), Ilhas (1989), Musa
(1994) O Búzio de Cós (1998).
A MENINA DO MAR. Sophia de Mello
Breyner Andresen
A menina do mar (publicado originalmente em 1958) conta a história de um
menino que mora na praia e, um dia, ouve uma estranha gargalhada, que mais
parece ter vindo de baixo d’água. Ao seguir o som desconhecido, se depara com
uma cena curiosa: uma menina, pequena e de cabelos azuis, dança com um polvo,
um caranguejo e um peixe. Desse encontro nasce uma amizade que supera a diferença entre os dois
mundos, a terra e o mar. Cada um ensina ao outro as particularidades do seu
lugar de origem. O menino ensina o que é a saudade: a paisagem que era marrom
como a terra antes da chegada da Menina do Mar torna-se azul. (Disponível em https://issuu.com/cosac_naify/docs/menina_do_mar_issuu )
Pesquisadores de Literatura Portuguesa que
escreveram sobre a autora Sophia Andersen:
AREAS, Vilma.
COELHO, Eduardo Prado. “Sophia, a lírica e
a lógica”, In: A mecânica dos fluidos. Literatura, Cinema, Teoria. Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, 1984, p.110.
KLOBUCKA, Anna. "Sophia «escreve»
Pessoa" / Anna Klobucka. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 140/141,
Abr. 1996, p. 157-176, disponível em
LANCIANI, Giulia. "Sophia de Mello
Breyner Andresen : o labirinto da palavra" In:Revista Colóquio/Letras.
Ensaio, n.º 176, Jan. 2011, p. 9-14.
LANGROUVA, Helena Conceição. "Sophia
de Mello Breyner Andresen: uma leitura de Grades". Disponível em
Cultura em Miúdos Cultura em Miúdos.
A Menina do Mar. Sophia de Mello Breyner
Andresen
Era uma vez uma casa branca nas dunas,
voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada
de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos
e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.
Nessa casa morava um rapazito que
passava os dias a brincar na praia.
Era uma praia muito grande e quase
deserta onde havia rochedos maravilhosos.
Mas durante a maré alta os rochedos
estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até
quebrarem na areia com barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam
cobertas de limo, de búzios, de anêmonas, de lapas, de algas e de ouriços.
Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de
todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do
mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal
se via. Dizia-se «Vai ali um peixe» e já não se via nada. Mas as vinagreiras
passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os
caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito
apressado.
O rapazinho da casa branca adorava as
rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, a frescura transparente
das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até
ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que balouçavam ao sabor
das correntes com um ar tão leve e feliz.
Em Setembro veio o equinócio. Vieram
marés vivas, ventanias, nevoeiros,
chuvas, temporais. As marés altas
varriam a praia e subiam até à duna. Certa noite, as ondas gritaram tanto,
uivaram tanto, bateram e quebraram-se com tanta força na praia, que, no seu
quarto caiado da casa branca, o rapazinho esteve até altas horas sem dormir. As
portadas das janelas batiam. As madeiras do chão estalavam como madeiras de
mastros. Parecia que as ondas iam cercar a casa e que o mar ia devorar o Mundo.
E o rapazito pensava que, lá fora, na escuridão da noite, se travava uma imensa
batalha em que o mar, o céu e o vento se combatiam. Mas por fim, cansado de
escutar, adormeceu embalado pelo temporal.
De manhã quando acordou estava tudo
calmo. A batalha tinha acabado. Já não se ouviam os gemidos do vento, nem
gritos do mar, mas só um doce murmúrio de ondas pequeninas. E o rapazinho
saltou da cama, foi à janela e viu uma manhã linda de sol brilhante, céu azul e
mar azul. Estava maré vaza. Pôs o fato de banho e foi para a praia a correr.
Tudo estava tão claro e sossegado que ele pensou que o temporal da véspera
tinha sido um sonho.
Mas não tinha sido um sonho. A praia estava
coberta de espumas deixadas pelas ondas da tempestade. Eram fileiras e fileiras
de espiava que tremiam à menor aragem. Pareciam castelos fantásticos, brancos,
mas cheios de reflexos de mil cores. O rapaz quis tocar-lhes, mas mal punha
neles as suas mãos os castelos trêmulos desfaziam-se.
Então foi brincar para as rochas.
Começou por seguir um fio de água muito claro entre dois grandes rochedos
escuros, cobertos de búzios. O rio ia dar a uma grande poça de água onde o
rapazinho tomou banho e nadou muito tempo.
Depois do banho continuou o seu caminho
através das rochas. Ia andando para o sul da praia que era um deserto para onde
nunca ninguém ia. A maré estava muito baixa e a manhã estava linda. As algas
pareciam mais verdes do que nunca e o mar tinha reflexos lilases. O rapazinho
sentia-se tão feliz que às vezes punha-se a dançar em cima dos rochedos. De vez
em quando encontrava uma poça boa e tomava outro banho Quando ia já no décimo
banho, lembrou-se que deviam ser horas de voltar para casa. Saiu da água e
deitou-se numa rocha a apanhar sol.
«Tenho que ir para casa», pensava ele,
mas não lhe apetecia nada ir-se embora.
E, enquanto assim estava deitado, com a
cara encostada às algas, aconteceu de repente uma coisa extraordinária: ouviu
uma gargalhada muito esquisita,
parecia um pouco uma gargalhada de ópera
dada por uma voz de «baixo»:
depois ouviu uma segunda gargalhada
ainda mais esquisita, uma gargalhada pequenina, seca que parecia uma tosse: em
seguida uma terceira gargalhada, que era como se alguém dentro de água fizesse
«glu, glu». Mas o mais extraordinário de tudo foi a quarta gargalhada: era como
uma gargalhada humana, mas muito mais pequenina, muito mais fina e muito mais
clara. Ele nunca tinha ouvido uma voz tão clara: era como se a água ou o vidro
se rissem.
Com muito cuidado para não fazer barulho
levantou-se e pôs-se a espreitar
escondido entre duas pedras. E viu um
grande polvo a rir, um caranguejo a rir, um peixe a rir e uma menina muito
pequenina a rir também. A menina, que devia medir um palmo de altura, tinha
cabelos verdes, olhos roxos e um vestido feito de algas encarnadas. E estavam
os quatro numa poça de água muito limpa e transparente toda rodeada de anêmonas.
E nadavam e riam.
‒ Oh! Oh! Oh! ‒ ria o polvo.
‒ Que! Que! Que! ‒ ria o caranguejo.
‒ Glu! Glu! Glu! ‒ ria o peixe.
Ah! Ah! Ah! ‒ ria a menina.
Depois pararam de rir e a menina disse:
‒ Agora quero dançar.
Então, num instante, o polvo, o
caranguejo e o peixe transformaram-se numa orquestra.
O peixe, com as suas barbatanas, batia
palmas na água.
O caranguejo subiu para uma rocha e com
as suas tenazes começou a tocar
castanholas.
O polvo trepou para cima dos rochedos e
esticando muito sete dos seus oito
braços prendeu-os pelas pontas com as
suas ventosas na pedra e, com o braço que tinha ficado livre, começou a tocar
guitarra nos seus sete braços. Depois pôs-se a cantar.
Então a menina saiu da água, subiu para
uma rocha e principiou a dançar. E a água junto dos seus pés ia e vinha e
bailava também.
Escondido, atrás do rochedo, o rapaz,
imóvel e, calado, olhava.
Quando a cantiga e a dança acabaram, o
polvo pegou na menina e com os seus oito braços muito escuros pôs-se a
embalá-la.
‒ Vem aí a maré alta, são horas de nos
irmos embora - disse o caranguejo.
‒ Vamos - disse o polvo.
Chamaram o peixe e puseram-se os quatro
a caminho. O peixe ia à frente a
nadar com a menina ao lado, depois vinha
o polvo e no fim o caranguejo, sempre com um ar muito desconfiado e furioso.
Foram indo por entre as areias e as
rochas, até que chegaram a uma grata para onde entraram os quatro. O rapaz quis
ir atrás deles, mas a entrada da gruta era muito pequena e ele não cabia. E
como a maré estava a subir, teve que se ir embora, pois se ali ficasse morria
afogado.
Foi para casa muito espantado com o que
tinha visto e durante esse dia não pensou noutra coisa. Na manhã seguinte mal
acordou foi a correr para a praia.
Foi pelo caminho da véspera, tornou a
esconder-se atrás das duas pedras,
espreitou e ouviu as mesmas gargalhadas
da véspera. A menina, o caranguejo, o polvo e o peixe estavam a fazer uma roda
dentro de água. Estavam divertidíssimos.
O rapaz, louco de curiosidade, não
conseguiu ficar quieto mais tempo. Deu um salto e agarrou a menina.
Ai, ai, ai! Que desgraça! Gritava ela.
O polvo, o caranguejo e o peixe tinham
desaparecido, aterrorizados, num abrir e fechar de olhos.
Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe,
acudam-me, salvem-me – gritava a Menina do mar.
Então o polvo, o caranguejo e o peixe,
apesar de estarem cheios de medo, saíram detrás das algas onde se tinham
escondido, e começaram a tentar salvar a Menina. Faziam o podiam: o polvo
trepava pelas pernas do rapaz, o caranguejo com as suas tenazes belisca-lhe os
pés, o peixe mordia-lhe nas canelas. Mas o rapaz era maior e tinha mais força,
deu-lhes alguns pontapés e fugiu para longe com a Menina do mar que continuava
a chamar:
‒ Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe!
‒ Não grites, não chores, não te
assustes – dizia o rapaz. Eu não te faço mal
nenhum.
Eu sei que me vais fazer mal.
Que mal é que eu hei de fazer a uma
menina tão pequenina e tão bonita?
‒ Vais-me fritar ‒ disse a Menina do
mar. E pôs-se outra vez a chorar e a gritar:
‒ Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe!
‒ Eu fritar-te! Para quê? Que ideia tão
esquisita! ‒ disse o rapaz espantadíssimo.
Os peixes dizem que os homens fritam
tudo quanto apanham.
O rapaz pôs-se a rir e disse:
‒ Isso são os pescadores. Os pescadores
é que apanham os peixes para os fritar.
Mas eu não sou pescador e tu não és um
peixe. Não te quero fritar nem te quero fazer mal nenhum. Só te quero ver bem,
porque nunca na minha vida vi uma menina tão pequeno e tão bonita. E quero que
me contes quem tu és, como é que vives, o que e que fazes aqui no mar e como é
que te chamas.
Então ela parou de gritar, limpou as
lágrimas, penteou e alisou os cabelos com os dedos das mãos a fazerem de pente,
e disse:
‒ Vamos sentar-nos os dois naquele
rochedo e eu conto-te tudo.
‒ Prometes que não foges?
‒ Prometo.
Sentaram-se os dois um em frente do
outro e a menina contou:
‒ Eu sou uma menina do mar. Chamo-me
Menina do Mar e não tenho outro
nome. Não sei onde nasci. Um dia uma
gaivota trouxe-me no bico para esta
praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e
o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa
gruta muito bonita. O polvo arruma a casa, alisa a areia, vai buscar a comida.
É de nós todos o que trabalha mais, porque tem muitos braços. O caranguejo é o
cozinheiro. Faz caldo verde com limos, sorvetes de espuma, e salada de algas,
sopa de tartaruga, caviar e muitas outras receitas. É um grande cozinheiro.
Quando a comida está pronta o polvo põe a mesa. A toalha é uma alga branca e os
pratos são conchas. Depois, à noite, o polvo faz a minha cama com algas muito
verdes e muito macias. Mas o costureira dos meus vestidos é o caranguejo. E é
também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de
pérolas. O peixe não faz nada porque não tem mãos, nem braços com ventosas como
o polvo, nem braços com tenazes como o caranguejo. Só tem barbatanas e as
barbatanas servem só para nadar. Mas é o meu melhor amigo. Como não tem braços
nunca me põe de castigo. É com ele que eu brinco. Quando a maré está vazia
brincamos nas rochas, quando está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu
nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de
algas,
jardins de anêmonas, prados de conchas.
Há cavalos marinhos suspensos água com um ar espantado, como pontos de
interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há
grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de
areia branca, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado.
Mas eu sou uma menina do mar. Posso respirar dentro da água como os peixes e
posso respirar fora da água como os homens. E posso passear pelo mar todo e
fazer tudo quanto eu quero e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da
Grande Raia. E a Grande Raia é a dona destes mares. É enorme, tão grande que é
capaz de engolir um barco com dez homens dentro. Tem cara de má e come homens e
peixes e está sempre com fome. A mim não me come porque diz que eu sou pequena
de mais e não sirvo para comer, só sirvo para dançar. E a Raia gosta muito de
me ver dançar.
Quando ela dá uma festa convida os tubarões
e as baleias e sentam-se todos no fundo do mar e eu danço em frente deles até
de madrugada. E quando a Raia está triste ou mal disposta eu também tenho que
dançar para a distrair. Por isso sou a bailarina do mar e faço tudo quanto eu
quero e todos gostam de mim. Mas eu não gosto nada da Raia e tenho medo dela.
Ela detesta os homens e também não gosta dos peixes. Até as baleias têm medo
dela. Mas eu posso andar à vontade no mar e ninguém me come e ninguém me faz
mal porque eu sou a bailarina da Raia. E agora que já contei a minha história
leva-me outra vez para o pé dos meus amigos que devem estar aflitíssimos.
O rapaz pegou na Menina do Mar com muito
cuidado na palma da mão e levou-a outra vez para o sítio de onde a tinha
trazido. O polvo, o caranguejo e o peixe lá estavam os três a chorar abraçados.
‒ Estou aqui - gritou a Menina do Mar.
O polvo, o caranguejo e o peixe, mal a
viram, pararam de chorar e atiraram-se os três como cães aos pés do rapaz e
começaram outra vez a mordê-lo e a picá-lo. O polvo com os seus oito braços
chicoteava-lhe as pernas.
‒ Estejam quietos, parem, não lhe façam
mal, ele é meu amigo e não me vai fritar ‒ gritou-lhes a Menina do Mar. O
polvo, o caranguejo e o peixe interromperam a pancadaria, espantadíssimos com
estas palavras. O rapaz
baixou-se e pôs a menina na água ao pé
dos seus três amigos, que davam saltos de alegria e muitas gargalhadas. Pediu à
Menina do Mar, ao polvo, ao caranguejo e ao peixe para voltarem no dia seguinte
à mesma hora àquele mesmo sítio.
‒ Tenho tanta curiosidade da Terra –
disse a Menina, - amanhã, quando vieres, traz-me uma coisa da terra.
E assim ficou combinado.
No dia seguinte, logo de manhã. o rapaz
foi ao seu jardim e colheu uma rosa encarnada muito perfumada. Foi para a praia
e procurou o lugar da véspera.
‒ Bom-dia, bom-dia, bom-dia - disseram a
Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe.
‒ Bom-dia ‒ disse o rapaz. E ajoelhou-se
na água, em frente da Menina do Mar.
‒ Trago-te aqui uma flor da terra ‒ disse;
chama-se uma rosa.
E linda, é linda - disse a Menina do
Mar, dando palmas de alegria e correndo e saltando em roda da rosa.
‒ Respira o seu cheiro para veres como é
perfumada.
A Menina pôs a sua cabeça dentro do
cálice da rosa e respirou longamente.
Depois levantou a cabeça e disse
suspirando:
‒ É um perfume maravilhoso. No mar não
há nenhum perfume assim. Mas estou tonta e um bocadinho triste. As coisas da
terra são esquisitas. São
diferentes das coisas do mar. No mar há
monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza
dentro das coisas bonitas.
‒ Isso é por causa da saudade ‒ disse o
rapaz.
‒ Mas o que é a saudade? ‒ perguntou a
Menina do Mar.
‒ A saudade é a tristeza que fica em nós
quando as coisas de que gostamos se vão embora.
‒ Ai! - suspirou a Menina do Mar olhando
para a Terra. Por que é que me
mostraste a rosa? Agora estou com vontade
de chorar.
O rapaz atirou fora a rosa e disse:
‒ Esquece-te da rosa e vamos brincar.
E foram os cinco, o rapaz, a Menina, o
polvo, o caranguejo e o peixe pelos carreirinhos de água, rindo e brincando
durante a manhã toda.
Até que a maré começou a subir e o rapaz
teve que se ir embora.
No dia seguinte, de manhã, tornaram a
encontrar-se todos no sítio do costume.
‒ Bom-dia ‒ disse a Menina. ‒ O que é
que me trouxeste hoje?
O rapaz pegou na Menina do Mar, sentou-a
numa rocha e ajoelhou-se a seu
lado.
‒ Trouxe-te isto ‒ disse. ‒ E uma caixa
de fósforos.
‒ Não é muito bonito ‒ disse a Menina.
‒ Não; mas tem lá dentro uma coisa
maravilhosa, linda e alegre que se chama o fogo. Vais ver.
E o rapaz abriu a caixa e acendeu um
fósforo.
A Menina deu palmas de alegria e pediu
para tocar no fogo.
‒ Isso ‒ disse o rapaz ‒ é impossível. O
fogo é alegre, mas queima.
‒ É um sol pequenino ‒ disse a Menina do
Mar.
‒ Sim ‒ disse o rapaz ‒ mas não se lhe
pode tocar.
E o rapaz soprou o fósforo e o fogo
apagou-se.
‒Tu és bruxo ‒ disse a Menina ‒ sopras e
as coisas desaparecem.
‒ Não sou bruxo. O fogo é assim.
Enquanto é pequeno qualquer sopro o apaga.
Mas depois de crescido pode devorar
florestas e cidades.
‒Então o fogo e pior do que a Raia? ‒
perguntou ‒ a Menina.
‒ É conforme. Enquanto o fogo é pequeno
e tem juízo é o maior amigo do
homem: aquece-o no Inverno, cozinha-lhe
a comida, alumia-o durante a noite. Mas quando o fogo cresce de mais, zanga-se,
enlouquece e fica mais ávido, mais cruel e mais perigoso do que todos os
animais ferozes.
‒ As coisas da terra são esquisitas e
diferentes ‒ disse a Menina do Mar. Conta-me mais coisas da terra.
Então sentaram-se os dois dentro de água
e o rapaz contou-lhe como era a sua casa e o seu jardim e como eram as cidades
e os campos, as florestas e as estradas.
‒Ah! Como eu gostava de ver isso tudo ‒
disse a Menina cheia de curiosidade.
‒ Vem comigo ‒ disse o rapaz ‒ eu levo-te
à terra e mostro-te coisas lindas.
‒ Não posso porque sou uma Menina do
Mar. O mar é a minha terra. Tu se vieres para o mar afogas-te. E eu se for para
a terra seco. Não posso estar muito tempo fora de água. Fora de água fico como
as algas na maré vaza, que ficam todas enrugados e secas. Se eu saísse do mar,
ao fim de algumas horas ficava igual a um farrapo de roupa velha ou a um papel
de jornal, destes que às vezes há nas praias e que têm um ar tão triste e
infeliz de coisa que já não serve e que foi deitada fora e que já ninguém quer.
‒ Que pena que eu tenho de não te poder
mostrar a terra! – disse o rapaz.
‒ E eu que pena tenho de não te poder
levar comigo ao fundo do mar para te mostrar as florestas de algas, as grutas
de corais e os jardins de anêmonas!
E nessa manhã o rapaz e a Menina,
enquanto nadavam na água, iam contando um ao outro as histórias do mar e as
histórias da terra.
Até que a maré subiu e despediram-se.
No dia seguinte o rapaz chegou à praia,
sentou-se ao lado da Menina do Mar e disse:
‒Hoje trago-te uma coisa da terra que é
bonita e tem lá dentro alegria.
Chama-se vinho. Quem bebe fica cheio de
alegria.
Enquanto dizia isto o rapaz pousou no ar
um copo cheio de vinho. Era um
daqueles copos muito pequenos que servem
para beber licores. A Menina do Mar segurou o copo com as duas mãos e olhou o
vinho cheia de curiosidade, respirando o seu perfume.
‒ É muito encarnado e muito perfumado ‒
disse ela. ‒ Conta-me o que é o vinho.
‒ Na terra -- respondeu o rapaz - há uma
planta que se chama videira. No
Inverno parece morta e seca. Mas na
Primavera enche-se de folhas e no Verão enche-se de frutos que se chamam uvas e
que crescem em cachos. E no Outono os homens colhem os cachos de uvas e
põem-nos em grandes tanques de pedra onde os pisam até que o seu sumo escorra.
E a esse sumo dos frutos da videira que chamamos o vinho. Esta é a história do
vinho, mas o seu sabor não o sei contar. Bebe se queres saber como é.
E a Menina bebeu o vinho, riu-se e
disse:
‒ É bom e é alegre. Agora já sei o que é
a terra. Agora já sei o que é o sabor da Primavera, do Verão e do Outono. Já
sei o que é o sabor dos frutos. Já sei o que é a frescura das árvores. Já sei
como é o calor duma montanha ao sol. Leva-me a ver a terra. Eu quero ir ver a
terra. Há tantas coisas que eu não sei. O mar é uma prisão transparente e
gelada. No mar não há Primavera nem Outono. No mar o tempo não morre. As anêmonas
estão sempre em flor e a espuma é sempre branca. Leva-me a ver a terra.
‒ Tenho uma ideia - disse o rapaz. ‒
Amanhã trago um balde e encho-o com água do mar e algas. E tu pões-te dentro do
balde para não secares e eu levo-te comigo a ver a terra.
‒ Está bem ‒ disse a Menina. ‒ Amanhã
vou contigo dentro do balde de água. E vou ver a tua casa e vou ver o teu
jardim e vou ver passar os comboios: e vou ver a noite numa cidade cheia de
luzes, de gente e de carros. E vou ver os animais da terra, os cães, os
cavalos, os gatos: e vou ver as montanhas, as florestas e todas as coisas que
me contaste.
E assim o rapaz e a Menina do Mar
passaram o resto da manhã a fazer planos para a aventura do dia seguinte. Até
que a maré subiu e o rapaz foi-se embora.
No outro dia o rapaz veio para as rochas
com o balde. Vinha muito alegre,
entusiasmado com o seu projeto, cantando
e dando saltos. Mas quando chegou à poça de água encontrou a Menina do Mar com
um ar muito desesperado e o polvo, o caranguejo e o peixe todos três com cara
de caso.
‒ Bom-dia ‒ disse o rapaz. Trago aqui o
balde. Vamos embora depressa.
‒ Eu não posso ir ‒ disse a Menina do
Mar. E desatou a chorar como uma fonte.
‒ Mas por quê? ‒ perguntou o rapaz.
‒ Por causa dos búzios. Os búzios têm
muito bom ouvido, ouvem tudo, são os ouvidos do mar. E ouviram as nossas
conversas e foram contá-las à Raia que ficou furiosa e agora eu já não posso ir
contigo.
‒ Mas a Raia não está aqui. Mete-te
dentro do balde e vamos embora depressa.
‒ É impossível ‒ disse a Menina do Mar.
A Raia ordenou aos polvos que não me deixassem passar. As rochas estão cheias
de polvos escondidos que nós não vemos, mas que nos vêem e espiam cada um dos
nossos gestos. Tenho que te dizer adeus para sempre. Amanhã já não volto aqui
porque a Raia, para me castigar de eu ter querido fugir, decidiu que esta noite
ao nascer da Lua eu serei levada pelos polvos, para uma praia distante, que eu
não sei como se chama, nem onde fica. E nunca mais nos poderemos encontrar.
‒ Vamos experimentar fugir ‒ disse o
rapaz. Eu com as minhas duas pernas corro mais do que os polvos com os seus
oito braços, que nem são braços nem são pernas.
E, tendo dito isto, pôs a Menina do Mar
dentro do balde e pôs-se a correr. Mas, no mesmo instante, as rochas
cobriram-se de polvos. Para qualquer lado que ele olhasse só via polvos.
Procurou uma aberta por onde passar, mas não havia nenhuma. Em sua roda os
polvos tinham feito um círculo fechado. E ele estava no meio do círculo e não
podia fugir. Então tentou saltar por cima dos polvos, mas logo dezenas de
tentáculos lhe ataram as pernas.
‒ Larga-me, larga-me - dizia a Menina do
Mar. Larga-me senão matam-te.
- Não, não te largo - respondeu o rapaz.
Mas já os polvos lhe envolviam a cintura
e o peito, lhe prendiam os ombros, lhe atavam os pulsos e ele caiu nas rochas
sem poder fazer nenhum gesto. Mas a sua mão ainda não tinha largado o balde.
Até que um polvo se enrolou à roda do seu pescoço e o foi apertando lentamente.
Então o rapaz viu o céu ficar preto, deixou de ouvir o barulho das ondas e
esqueceu-se de tudo. Estava desmaiado. Acordou com a água a bater-lhe na cara.
A maré tinha subido e as ondas já quase cobriam a rocha onde ele estava caído.
Levantou-se e todo o seu corpo ainda lhe doía, coberto de marcas deixadas pelas
ventosas dos polvos. Foi para casa devagar.
Passaram dias e dias. O rapaz voltou
muitas vezes às rochas, mas nunca mais viu a Menina nem os seus três amigos.
Era como se tudo tivesse sido um sonho.
Até que chegou o Inverno. O tempo estava
frio, o mar cinzento e chovia quase todos os dias. E numa manhã de nevoeiro o
rapaz sentou-se na praia a pensar na Menina do Mar.
E enquanto assim estava viu uma gaivota
que vinha do mar alto com uma coisa no bico. Era uma coisa brilhante que refletia
luz e o rapaz pensou que devia ser um peixe. Mas a gaivota chegou junto dele,
deu urna volta no ar e deixou cair a coisa na areia.
O rapaz apanhou-a e viu que era um
frasco cheio duma água muito clara e
luminoso.
‒ Bom-dia, bom-dia ‒ disse a gaivota.
‒ Bom-dia, bom-dia ‒ respondeu o rapaz.
Donde é que vens e porque é que me dás
este frasco?
‒ Venho da parte da Menina do Mar ‒
disse a gaivota. Ela manda-te dizer que já sabe o que é a saudade. E pediu-me
para te perguntar se queres ir ter com ela ao fundo do mar.
‒ Quero, quero ‒ disse o rapaz. Mas como
é que eu hei de ir ao fundo do mar sem me afogar?
‒ O frasco que te dei tem dentro suco de
anêmonas e suco de plantas mágicas.
Se beberes agora este filtro passarás a
ser como a Menina do Mar. Poderás viver dentro da água como os peixes e fora da
água como os homens.
‒ Vou beber já ‒ disse o rapaz.
E bebeu o filtro.
Então viu tudo à sua roda tornar-se mais
vivo e mais brilhante. Sentiu-se alegre, feliz, contente como um peixe. Era
como se alguma coisa nos seus movimentos tivesse ficado mais livre, mais forte,
mais fresca e mais leve.
‒ Ali no mar ‒ disse a gaivota ‒ está um
golfinho à tua espera para te ensinar o caminho.
O rapaz olhou e viu um grande golfinho
preto e brilhante dando saltos atrás da arrebentação das ondas. Então disse:
‒ Adeus, adeus, gaivota. Obrigado,
obrigado.
E correu para as ondas e nadou até ao
golfinho.
‒ Agarra-te à minha cauda ‒ disse o
golfinho.
E foram os dois pelo mar fora.
Nadaram muitos dias e muitas noites
através de calmarias e tempestades.
Atravessaram o mar dos Sargaços e viram
os peixes voadores. E viram as
grandes baleias que atiram repuxos de
água para o céu e viram os grandes
vapores que deixam atrás de si colunas
de fumo suspensas no ar. E viram os icebergues majestosos e brancos na solidão
do oceano. E nadaram ao lado dos veleiros que corriam velozes esticados no
vento. E os marinheiros gritavam de espanto quando viam um rapaz agarrado à
cauda dum golfinho. Mas eles mergulhavam e desciam ao fundo do mar para não
serem pescados.
Aí estavam os antigos navios naufragados
com os seus cofres carregados de ouro e os seus mastros quebrados cobertos de
anêmonas e conchas.
Depois de nadarem sessenta dias e
sessenta noites chegaram a uma ilha rodeada de corais. O golfinho deu a volta à
ilha e por fim parou em frente duma gruta e disse:
‒ É aqui: entra na gruta e encontrarás a
Menina do Mar.
‒ Adeus, adeus, golfinho. Obrigado,
obrigado.
A gruta era toda de coral e o seu chão
era de areia branca e fina. Tinha em frente um jardim de anêmonas azuis.
O rapaz entrou na gruta e espreitou. A
Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe estavam a brincar com conchinhas.
Estavam quietos, tristes e calados. De vez em quando a Menina suspirava.
‒ Estou aqui! Cheguei! Sou eu! ‒ gritou
o rapaz.
Todos se voltaram para ele. Houve um
momento de grande confusão. Todos se abraçaram, todos riam, todos gritavam. A
Menina do Mar dançava, batia palmas e ria com gargalhadas claras como a água. O
polvo fazia o pino. O caranguejo dava cambalhotas e o peixe dava saltos mortais.
Depois de todas estas habilidades ficaram um pouco mais calmos.
Então a Menina do Mar sentou-se no ombro
do rapaz e disse:
‒ Estou tão feliz, tão feliz, tão feliz!
Pensei que nunca mais te ia ver. Sem ti o mar, apesar de todas as suas anêmonas,
parecia triste e vazio. E eu passava os dias inteiros a suspirar. E não sabia o
que havia de fazer. Até que um dia o Rei do Mar deu uma grande festa. Convidou
muitas baleias, muitos tubarões e muitos peixes importantes. E mandou-me ir ao
palácio para eu dançar na festa.
No fim do banquete chegou a altura da
minha dança e eu entrei na gruta onde o Rei do Mar estava com os seus
convidados, sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos. Então
os búzios começaram a cantar uma cantiga antiquíssima que foi inventada no
principio do Mundo. Mas eu estava muito triste e por isso dancei muito mal.
‒ Porque é que estás a dançar tão mal? ‒
perguntou o Rei do Mar.
‒ Porque estou cheia de saudades ‒ respondi
eu.
‒ Saudades? ‒ disse o Rei do Mar. Que
história é essa?
E perguntou ao polvo, ao caranguejo e ao
peixe o que tinha acontecido. Eles contaram-lhe tudo. Então o Rei do Mar teve
pena da minha tristeza e teve pena de ver uma bailarina que já não sabia
dançar. E disse:
No dia seguinte de manhã eu voltei ao
palácio. E o Rei do Mar sentou-me no seu ombro e subiu comigo à tona das águas.
Chamou uma gaivota, deu-lhe o frasco com o filtro das anêmonas e mandou-a ir à
tua procura. E foi assim que eu consegui que tu voltasses.
‒ Agora nunca mais nos separamos ‒ disse
o rapaz.
‒ Agora vais ser forte como um polvo.
‒ Agora vais ser sábio como um
caranguejo ‒ disse o caranguejo.
‒ Agora vais ser feliz como um peixe ‒ disse
o peixe.
‒ Agora a tua terra é o Mar ‒ disse a
Menina do Mar.
E foram os cinco através de florestas,
areais e grutas.
No dia seguinte houve outra festa no
Palácio do Rei. A Menina do Mar dançou toda a noite e as baleias, os tubarões
as tartarugas e todos os peixes diziam:
‒ Nunca vimos dançar tão bem.
E o Rei do Mar estava sentado no seu
trono de nácar, rodeado de cavalos marinhos, e o seu manto de púrpura nas
águas.
REFERÊNCIAS
Cultura em Miúdos Cultura em Miúdos
MANOEL DE BARROS
Nascido em Cuiabá em 1916, Manoel de Barros estreou em 1937
com o livro “Poemas Concebidos sem Pecado”. Sua obra mais conhecida é o “Livro
sobre Nada”, publicado em 1996.
Cronologicamente
vinculado à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de
Barros criou um universo próprio — subvertendo a sintaxe e criando construções
que não respeitam as normas da língua padrão —, marcado, sobretudo, por
neologismos e sinestesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa.
Em 1986, o poeta
Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta
brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos
brasileiros escreveu: “A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme
racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam
muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra
a mais alta admiração e muito amor”. Os poemas publicados nesta seleção
fazem parte do livro “Manoel de Barros — Poesia Completa Bandeira”, editora
Leya. Por motivo de direitos autorais, apenas trechos dos poemas foram
publicados.
O livro
sobre nada
É mais
fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser
que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo
contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para
compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O menino azul
O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
Sonhos da menina
A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?
Leilão de
jardim
Quem me compra um jardim
com flores?
borboletas
de muitas
cores,
lavadeiras
e pas
sarinhos,
ovos
verdes e azuis
nos ninhos?
Quem me
compra este ca-
racol?
Quem me
compra um raio
de sol?
Um
lagarto entre o muro
e a hera,
uma estátua
da Pri-
mavera?
Quem me
compra este for-
migueiro?
E este
sapo, que é jar-
dineiro?
E a
cigarra e a sua
canção?
E o
grilinho dentro
do chão?
Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
REFERÊNCIAS:
ANDRESEN, Sophia
de Mello Breyner. A Menina do Mar. Editora: Cosac Naify. 2014.
_____________________________. Poemas escolhidos. Seleção de Vilma Areas. São Paulo, Cia das
Letras, 2004.
Guimarães Rosas. Pirlimpsiquice. Primeiras Histórias, 1962.
“Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?”
Saramago. O Memorial do Convento.
O Padre Bartolomeu Lourenço comanda a construção de uma passarola. Blimunda e seu marido Baltasar Sete-Sóis auxiliam o padre em seu empreendimento. A participação de Blimunda é decisiva, pois é ela quem se responsabiliza por capturar as vontades que farão a passarola erguer-se do solo.
“Ficou o Padre Bartolomeu Lourenço satisfeito com o lanço, era o primeiro dia, mandados assim à ventura, para o meio duma cidade afligida de doença e luto, aí estão vinte e quatro vontades para assentar no papel. Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vontades, força de elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com o que segundo frasco foi entregue a Blimunda. Já em Lisboa muito se falava daquela mulher e daquele homem que percorriam a cidade de ponta a ponta, sem medo da epidemia, ele atrás, ela adiante, sempre calados, nas ruas por onde andavam, nas casas onde não se demoravam, ela baixando os olhos quando tinha de passar por ele, e se o caso, todos os dias repetido, não causou maiores suspeitas e estranhezas, foi por ter começado a correr a notícia de que cumpriam ambos penitência, estratagema inventado pelo padre Bartolomeu Lourenço quando se ouviram as primeiras murmurações.”
Trecho do livro As pequenas memórias.
“Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo meu pai a declarar no Registro Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudônimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era Jose de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente de Sousa.”
Referência
SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 43-44.
Morte e vida Severina, João Cabral de Melo Neto
‒ Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
‒ Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
‒ Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
‒ Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?
‒ Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
‒ Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
‒ Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
‒ Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
‒ Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
‒ Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
‒ E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
‒ é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
‒ E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
‒ De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
‒ E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
‒ Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.