sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Revista Proesia. Edna e Jéssica.


MEROLA e PERDIGÃO. Revista Proesia. 2016.  https://issuu.com/joaobracht/docs/proesia





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O Gato e o Escuro


Nas águas do tempo. Mia Couto.

A Menina do Mar. Sophia de Mello Breyner Andresen


MANOEL DE BARROS

Nascido em Cuiabá em 1916, Manoel de Barros estreou em 1937 com o livro “Poemas Concebidos sem Pecado”. Sua obra mais conhecida é o “Livro sobre Nada”, publicado em 1996.
Cronologicamente vinculado à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de Barros criou um universo próprio — subvertendo a sintaxe e criando construções que não respeitam as normas da língua padrão —, marcado, sobretudo, por neologismos e sinestesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa.
Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros escreveu: “A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”. Os poemas publicados nesta seleção fazem parte do livro “Manoel de Barros — Poesia Completa Bandeira”, editora Leya. Por motivo de direitos autorais, apenas trechos dos poemas foram publicados.

O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.

O apanhador de desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O menino azul

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios, 
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos 
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim 
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses, 
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

Sonhos da menina

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho 
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho 
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Leilão de jardim


Quem me compra um jardim
com flores?
 
borboletas de muitas
cores,
 
lavadeiras e pas
sarinhos,
 
ovos verdes e azuis
nos ninhos?
 
Quem me compra este ca-
racol?
 
Quem me compra um raio
de sol?
 
Um lagarto entre o muro
e a hera,
 
uma estátua da Pri-
mavera?
 
Quem me compra este for-
migueiro?
 
E este sapo, que é jar-
dineiro?
 
E a cigarra e a sua
canção?
 
E o grilinho dentro
do chão?
 
 Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.



REFERÊNCIAS:

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. A Menina do Mar. Editora: Cosac Naify. 2014.
_____________________________. Poemas escolhidos. Seleção de Vilma Areas. São Paulo, Cia das Letras, 2004.



Guimarães Rosas. Pirlimpsiquice. Primeiras Histórias, 1962.
“Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?”


Saramago. O Memorial do Convento.
O Padre Bartolomeu Lourenço comanda a construção de uma passarola. Blimunda e seu marido Baltasar Sete-Sóis auxiliam o padre em seu empreendimento. A participação de Blimunda é decisiva, pois é ela quem se responsabiliza por capturar as vontades que farão a passarola erguer-se do solo.


“Ficou o Padre Bartolomeu Lourenço satisfeito com o lanço, era o primeiro dia, mandados assim à ventura, para o meio duma cidade afligida de doença e luto, aí estão vinte e quatro vontades para assentar no papel. Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vontades, força de elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com o que segundo frasco foi entregue a Blimunda. Já em Lisboa muito se falava daquela mulher e daquele homem que percorriam a cidade de ponta a ponta, sem medo da epidemia, ele atrás, ela adiante, sempre calados, nas ruas por onde andavam, nas casas onde não se demoravam, ela baixando os olhos quando tinha de passar por ele, e se o caso, todos os dias repetido, não causou maiores suspeitas e estranhezas, foi por ter começado a correr a notícia de que cumpriam ambos penitência, estratagema inventado pelo padre Bartolomeu Lourenço quando se ouviram as primeiras murmurações.”

Trecho do livro As pequenas memórias.
“Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo meu pai a declarar no Registro Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudônimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era Jose de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente de Sousa.”

Referência


SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 43-44.


Morte e vida Severina, João Cabral de Melo Neto

‒ Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?  
‒ Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?  
‒ Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.  
‒ Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?  
‒ Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.  
‒ Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?  
‒ Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.  
‒ Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.  
‒ Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?  
‒ Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:  
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.  
‒ E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?  
‒ é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.  
‒ E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?  
‒ De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.  
‒ E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?  


‒ Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.









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No primeiro semestre de 2016, nas aulas da disciplina Literatura Portuguesa III, CCE, UFSC, o Professor Stélio Furlan  nos presenteou com alguns desafios, dentre eles o da elaboração de uma revista.  Jéssica e eu, as editoras, até então separadas por algumas gerações (quase habitantes de mundos diferentes!), nos unimos para a tarefa de reunir textos de autores que escrevessem a partir desse "território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta." (COUTO, Mia).
Dessa leitura nasceu Proesia: prosa poética contemporânea - que se não fosse uma revista e sim uma pessoa ‒ seria minha bisneta e filha de Jéssica.

Proesia é um recorte antológico de lindos textos de renomados escritores: Mia Couto; Sophia Andersen; Manoel de Barros; Cecília Meirelles; Inês Pedroso.


















A poética de Mia Couto traz o pluriverso (ou universo plural) à baila. Assim os elementos Água, Terra, Fogo e Ar são presentes a exemplo de Nas Águas do Tempo (água e terra do pântano); O Gato e o Escuro (ar); Lenda de Namarói (fogo). 
A construção de neologismos (brincriações) é o próprio estado lúdico de criação pela linguagem.  A poesia é presente para narrar a morte em Nas águas do Tempo assim como é presente para narrar o ritual de passagem ou ingresso no mundo 'adulto', em O Gato e o Escuro. A poética de Mia Couto trata do desaguar que é choro de nascimento, mas também desaguar do rio da vida para o mar da infinitude. Trata-se de uma construção que circula "rio acima" e "rio abaixo"  e que vai assim revelando o ciclo da vida.


O Gato e o Escuro

Vejam meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele nem sempre foi dessa cor. Conta a mãe dele que antes tinha sido amarelo, às malhas e às pintas.  Tanto que lhe chamavam o Pintalgato.
Diz-se que ficou desta aparência, em totalidade negra, por motivo de um susto. Vou aqui contar como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro. O caso vos digo, não é nada claro.
Aconteceu assim: o gatinho gostava passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite. Faz de conta o pôr-do-sol fosse um muro. Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.
A mãe se afligia e pedia:
‒ Nunca atravesse a luz para o lado de lá.
Essa era a aflição dela, que o seu menino passasse além do pôr de algum Sol. O filho dizia que sim. Acenava consentindo. Mas fingia obediência. Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá. Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam.
Certa vez inspirou coragem e passou uma perna para o lado de lá, onde a noite se enrosca a dormir. Foi ganhando mais confiança e, de cada vez, se adentrou um bocadinho. Até que a metade completa dele já passara a fronteira, para além do limite.
Quando regressava de sua desobediência, olhou as patas adianteiras e se assustou. Estavam pretas, mais que o breu.
Escondeu-se num cato, mais enrolado que o pangolim. Não queria ser visto em flagrante escuridão.
Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira. E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade. À medida que avançava, seu coração tiquetaqueava. Temia o castigo. Fechou os olhos e andou assim, sobrancelhado, noite adentro. Andou, andou, atravessando a imensa noitidão.
Só quando desaguou na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos.  Olhou o corpo e viu que já nem a si se via. Que aconteceu? Virara cego? Por que razão o mundo se embrulhava num pano preto?
Chorou. Chorou. E chorou.
Pensava que nunca mais regressaria ao seu original formato.
Foi então que ouviu uma voz dizendo:
‒ Não chore, gatinho.
‒ Quem é?
‒ Sou eu, o escuro.
Eu é que devia chorar, porque olho tudo e não vejo nada.
Sim, o escuro coitado. Que vida a dele, sempre afastado da luz! Por exemplo, ele se entristecia de não enxergar os lindos olhos do bichano. Nem os seus mesmos ele distinguia, olhos pretos em corpo negro. Nada, nem cauda nem o arco tenso das costas. Nada sobrava de sua anterior gateza. E o escuro, triste, desabou em lágrimas. 
Estava-se naquele desfile de queixas e tristezas quando se aproximou uma grande gata. Era a mãe do gato desobediente. O gatinho Pintalgato se arredou, receoso que a mãe lhe trouxesse um castigo. Mas a mãe estava ocupada em consolar o escuro. E lhe disse:
‒ Pois eu dou licença a teus olhos: fiquem verdes, tão verdes que amarelos.
E os olhos do escuro se amarelaram. E se viram escorrer enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto.
O escuro ainda chorava:
‒ Sou feio. Não há quem goste de mim.
‒ Mentira, você é lindo. Tanto como os outros.
‒ Então por que não figuro nem no arco-íris?
‒ Você figura no meu arco-íris.
‒ Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
‒ Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
‒ Não entendo, Dona Gata.
‒ Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
‒ Não estou claro, Dona Gata.
Não é você que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com nossos medos.
A mãe gata sorriu bondades, ronronou ternuras, esfregou carinho no corpo escuro. E foram carícias que ela lhe dedicou, muitas e tantas que o escuro adormeceu. Quando despertou, viu que as suas costas estavam das cores todas da luz. Metade de seu corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal?
O espanto ainda o abraçava quando escutou a voz da gata grande:
‒ Você quer ser meu filho?
O escuro se encolheu, ataratonto. Filho? Mas ele nem chegava a ser coisa alguma, nem sequer antecoisa.
‒ Como posso ser seu filho se eu nem sou gato?
‒ E quem lhe disse que não é?
E o escuro sacudiu o corpo e sentiu a cauda, serpenteando o espaço. Esticou a perna e viu brilhar as unhas, disparadas como repentinas lâminas.
O Pintalgato até se arrepiou, vendo um irmão tão recente.
‒ Mas, mãe: sou irmão disso aí?
‒ Duvida, Pintalgato? Pois vou lhe provar que sou mãe dos dois. Olhe bem para os meus olhos e verá.
Pintalgato fitou os olhos da sua mãe, como se se debruçasse num poço escuro. De rompante, quase se derrubou, lhe surgiu como que um relâmpago atravessando a noite.
Pintalgato acordou, todo estremolhado, e viu que, afinal, tudo tinha sido um sonho. Chamou pela mãe. Ela se aproximou e ele notou seus olhos, viu uma estranheza nunca antes reparada. Quando olhava o escuro, a mãe ficava com os olhos pretos. Pareciam cheios de escuro. Como se engravidassem de breu, a abarrotar de pupilas.
Ante a luz, porém, seus olhos todos se amarelavam, claros e luminosos, salvo uma estreitinha fenda preta. Então, o gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda escura como se vislumbrasse o abismo.
Por detrás dessa fenda o que é que ele viu? Adivinham? Pois ele viu um gato preto, enroscado do outro lado do mundo.

Nas águas do tempo. Mia Couto.

Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.
— Mas vocês vão aonde?
Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.
— Voltamos antes de um agorinha, respondia.
Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim.
Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.
Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha. E eu lhe imitava.
— Sempre em favor da água, nunca esqueça!
Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem.
Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir.
Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada.
Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.
De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
— Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo?
Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
— Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?
Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra.
Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam.
Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:
— Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte...
O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha.
Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe.
Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.
Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra não firme.
— Nunca! Nunca faça isso!
O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
— Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.
Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça.
— Cumprimenta também, você!
Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções.
Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:
— Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.
— Me entende?
Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
— Fique aqui!
E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta
trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se
poentaram as visões.
Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem.

Sophia de Mello Breyner Andresen [1919 -2004] uma das mais importantes poetas portuguesas do século XX. Ela é autora dos títulos: O nome das coisas (1977), Poesia (1944), O Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), Navegações (1983), Ilhas (1989), Musa (1994) O Búzio de Cós (1998).

A MENINA DO MAR. Sophia de Mello Breyner Andresen


menina-do-marA menina do mar (publicado originalmente em 1958) conta a história de um menino que mora na praia e, um dia, ouve uma estranha gargalhada, que mais parece ter vindo de baixo d’água. Ao seguir o som desconhecido, se depara com uma cena curiosa: uma menina, pequena e de cabelos azuis, dança com um polvo, um caranguejo e um peixe. Desse encontro nasce uma amizade que supera a diferença entre os dois mundos, a terra e o mar. Cada um ensina ao outro as particularidades do seu lugar de origem. O menino ensina o que é a saudade: a paisagem que era marrom como a terra antes da chegada da Menina do Mar torna-se azul. (Disponível em https://issuu.com/cosac_naify/docs/menina_do_mar_issuu )
Pesquisadores de Literatura Portuguesa que escreveram sobre a autora Sophia Andersen:

AREAS, Vilma. 

COELHO, Eduardo Prado. “Sophia, a lírica e a lógica”, In: A mecânica dos fluidos. Literatura, Cinema, Teoria. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984, p.110.

KLOBUCKA, Anna. "Sophia «escreve» Pessoa" / Anna Klobucka. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 140/141, Abr. 1996, p. 157-176, disponível em

LANCIANI, Giulia. "Sophia de Mello Breyner Andresen : o labirinto da palavra" In:Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 176, Jan. 2011, p. 9-14.

LANGROUVA, Helena Conceição. "Sophia de Mello Breyner Andresen: uma leitura de Grades". Disponível em 




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A Menina do Mar. Sophia de Mello Breyner Andresen

Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.
Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia.
Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos.
Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até quebrarem na areia com barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios, de anêmonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se «Vai ali um peixe» e já não se via nada. Mas as vinagreiras passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito apressado.
O rapazinho da casa branca adorava as rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, a frescura transparente das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que balouçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz.
Em Setembro veio o equinócio. Vieram marés vivas, ventanias, nevoeiros,
chuvas, temporais. As marés altas varriam a praia e subiam até à duna. Certa noite, as ondas gritaram tanto, uivaram tanto, bateram e quebraram-se com tanta força na praia, que, no seu quarto caiado da casa branca, o rapazinho esteve até altas horas sem dormir. As portadas das janelas batiam. As madeiras do chão estalavam como madeiras de mastros. Parecia que as ondas iam cercar a casa e que o mar ia devorar o Mundo. E o rapazito pensava que, lá fora, na escuridão da noite, se travava uma imensa batalha em que o mar, o céu e o vento se combatiam. Mas por fim, cansado de escutar, adormeceu embalado pelo temporal.
De manhã quando acordou estava tudo calmo. A batalha tinha acabado. Já não se ouviam os gemidos do vento, nem gritos do mar, mas só um doce murmúrio de ondas pequeninas. E o rapazinho saltou da cama, foi à janela e viu uma manhã linda de sol brilhante, céu azul e mar azul. Estava maré vaza. Pôs o fato de banho e foi para a praia a correr. Tudo estava tão claro e sossegado que ele pensou que o temporal da véspera tinha sido um sonho.
Mas não tinha sido um sonho. A praia estava coberta de espumas deixadas pelas ondas da tempestade. Eram fileiras e fileiras de espiava que tremiam à menor aragem. Pareciam castelos fantásticos, brancos, mas cheios de reflexos de mil cores. O rapaz quis tocar-lhes, mas mal punha neles as suas mãos os castelos trêmulos desfaziam-se.
Então foi brincar para as rochas. Começou por seguir um fio de água muito claro entre dois grandes rochedos escuros, cobertos de búzios. O rio ia dar a uma grande poça de água onde o rapazinho tomou banho e nadou muito tempo.
Depois do banho continuou o seu caminho através das rochas. Ia andando para o sul da praia que era um deserto para onde nunca ninguém ia. A maré estava muito baixa e a manhã estava linda. As algas pareciam mais verdes do que nunca e o mar tinha reflexos lilases. O rapazinho sentia-se tão feliz que às vezes punha-se a dançar em cima dos rochedos. De vez em quando encontrava uma poça boa e tomava outro banho Quando ia já no décimo banho, lembrou-se que deviam ser horas de voltar para casa. Saiu da água e deitou-se numa rocha a apanhar sol.
«Tenho que ir para casa», pensava ele, mas não lhe apetecia nada ir-se embora.
E, enquanto assim estava deitado, com a cara encostada às algas, aconteceu de repente uma coisa extraordinária: ouviu uma gargalhada muito esquisita,
parecia um pouco uma gargalhada de ópera dada por uma voz de «baixo»:
depois ouviu uma segunda gargalhada ainda mais esquisita, uma gargalhada pequenina, seca que parecia uma tosse: em seguida uma terceira gargalhada, que era como se alguém dentro de água fizesse «glu, glu». Mas o mais extraordinário de tudo foi a quarta gargalhada: era como uma gargalhada humana, mas muito mais pequenina, muito mais fina e muito mais clara. Ele nunca tinha ouvido uma voz tão clara: era como se a água ou o vidro se rissem.
Com muito cuidado para não fazer barulho levantou-se e pôs-se a espreitar
escondido entre duas pedras. E viu um grande polvo a rir, um caranguejo a rir, um peixe a rir e uma menina muito pequenina a rir também. A menina, que devia medir um palmo de altura, tinha cabelos verdes, olhos roxos e um vestido feito de algas encarnadas. E estavam os quatro numa poça de água muito limpa e transparente toda rodeada de anêmonas. E nadavam e riam.
‒ Oh! Oh! Oh! ‒ ria o polvo.
‒ Que! Que! Que! ‒ ria o caranguejo.
‒ Glu! Glu! Glu! ‒ ria o peixe.
Ah! Ah! Ah! ‒ ria a menina.
Depois pararam de rir e a menina disse:
‒ Agora quero dançar.
Então, num instante, o polvo, o caranguejo e o peixe transformaram-se numa orquestra.
O peixe, com as suas barbatanas, batia palmas na água.
O caranguejo subiu para uma rocha e com as suas tenazes começou a tocar
castanholas.
O polvo trepou para cima dos rochedos e esticando muito sete dos seus oito
braços prendeu-os pelas pontas com as suas ventosas na pedra e, com o braço que tinha ficado livre, começou a tocar guitarra nos seus sete braços. Depois pôs-se a cantar.
Então a menina saiu da água, subiu para uma rocha e principiou a dançar. E a água junto dos seus pés ia e vinha e bailava também.
Escondido, atrás do rochedo, o rapaz, imóvel e, calado, olhava.
Quando a cantiga e a dança acabaram, o polvo pegou na menina e com os seus oito braços muito escuros pôs-se a embalá-la.
‒ Vem aí a maré alta, são horas de nos irmos embora - disse o caranguejo.
‒ Vamos - disse o polvo.
Chamaram o peixe e puseram-se os quatro a caminho. O peixe ia à frente a
nadar com a menina ao lado, depois vinha o polvo e no fim o caranguejo, sempre com um ar muito desconfiado e furioso.
Foram indo por entre as areias e as rochas, até que chegaram a uma grata para onde entraram os quatro. O rapaz quis ir atrás deles, mas a entrada da gruta era muito pequena e ele não cabia. E como a maré estava a subir, teve que se ir embora, pois se ali ficasse morria afogado.
Foi para casa muito espantado com o que tinha visto e durante esse dia não pensou noutra coisa. Na manhã seguinte mal acordou foi a correr para a praia.
Foi pelo caminho da véspera, tornou a esconder-se atrás das duas pedras,
espreitou e ouviu as mesmas gargalhadas da véspera. A menina, o caranguejo, o polvo e o peixe estavam a fazer uma roda dentro de água. Estavam divertidíssimos.
O rapaz, louco de curiosidade, não conseguiu ficar quieto mais tempo. Deu um salto e agarrou a menina.
Ai, ai, ai! Que desgraça! Gritava ela.
O polvo, o caranguejo e o peixe tinham desaparecido, aterrorizados, num abrir e fechar de olhos.
Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe, acudam-me, salvem-me – gritava a Menina do mar.
Então o polvo, o caranguejo e o peixe, apesar de estarem cheios de medo, saíram detrás das algas onde se tinham escondido, e começaram a tentar salvar a Menina. Faziam o podiam: o polvo trepava pelas pernas do rapaz, o caranguejo com as suas tenazes belisca-lhe os pés, o peixe mordia-lhe nas canelas. Mas o rapaz era maior e tinha mais força, deu-lhes alguns pontapés e fugiu para longe com a Menina do mar que continuava a chamar:
‒ Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe!
‒ Não grites, não chores, não te assustes – dizia o rapaz. Eu não te faço mal
nenhum.
Eu sei que me vais fazer mal.
Que mal é que eu hei de fazer a uma menina tão pequenina e tão bonita?
‒ Vais-me fritar ‒ disse a Menina do mar. E pôs-se outra vez a chorar e a gritar:
‒ Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe!
‒ Eu fritar-te! Para quê? Que ideia tão esquisita! ‒ disse o rapaz espantadíssimo.
Os peixes dizem que os homens fritam tudo quanto apanham.
O rapaz pôs-se a rir e disse:
‒ Isso são os pescadores. Os pescadores é que apanham os peixes para os fritar.
Mas eu não sou pescador e tu não és um peixe. Não te quero fritar nem te quero fazer mal nenhum. Só te quero ver bem, porque nunca na minha vida vi uma menina tão pequeno e tão bonita. E quero que me contes quem tu és, como é que vives, o que e que fazes aqui no mar e como é que te chamas.
Então ela parou de gritar, limpou as lágrimas, penteou e alisou os cabelos com os dedos das mãos a fazerem de pente, e disse:
‒ Vamos sentar-nos os dois naquele rochedo e eu conto-te tudo.
‒ Prometes que não foges?
‒ Prometo.
Sentaram-se os dois um em frente do outro e a menina contou:
‒ Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro
nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta
praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa gruta muito bonita. O polvo arruma a casa, alisa a areia, vai buscar a comida. É de nós todos o que trabalha mais, porque tem muitos braços. O caranguejo é o cozinheiro. Faz caldo verde com limos, sorvetes de espuma, e salada de algas, sopa de tartaruga, caviar e muitas outras receitas. É um grande cozinheiro. Quando a comida está pronta o polvo põe a mesa. A toalha é uma alga branca e os pratos são conchas. Depois, à noite, o polvo faz a minha cama com algas muito verdes e muito macias. Mas o costureira dos meus vestidos é o caranguejo. E é também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de pérolas. O peixe não faz nada porque não tem mãos, nem braços com ventosas como o polvo, nem braços com tenazes como o caranguejo. Só tem barbatanas e as barbatanas servem só para nadar. Mas é o meu melhor amigo. Como não tem braços nunca me põe de castigo. É com ele que eu brinco. Quando a maré está vazia brincamos nas rochas, quando está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas,
jardins de anêmonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia branca, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado. Mas eu sou uma menina do mar. Posso respirar dentro da água como os peixes e posso respirar fora da água como os homens. E posso passear pelo mar todo e fazer tudo quanto eu quero e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Grande Raia. E a Grande Raia é a dona destes mares. É enorme, tão grande que é capaz de engolir um barco com dez homens dentro. Tem cara de má e come homens e peixes e está sempre com fome. A mim não me come porque diz que eu sou pequena de mais e não sirvo para comer, só sirvo para dançar. E a Raia gosta muito de me ver dançar.
Quando ela dá uma festa convida os tubarões e as baleias e sentam-se todos no fundo do mar e eu danço em frente deles até de madrugada. E quando a Raia está triste ou mal disposta eu também tenho que dançar para a distrair. Por isso sou a bailarina do mar e faço tudo quanto eu quero e todos gostam de mim. Mas eu não gosto nada da Raia e tenho medo dela. Ela detesta os homens e também não gosta dos peixes. Até as baleias têm medo dela. Mas eu posso andar à vontade no mar e ninguém me come e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Raia. E agora que já contei a minha história leva-me outra vez para o pé dos meus amigos que devem estar aflitíssimos.
O rapaz pegou na Menina do Mar com muito cuidado na palma da mão e levou-a outra vez para o sítio de onde a tinha trazido. O polvo, o caranguejo e o peixe lá estavam os três a chorar abraçados.
‒ Estou aqui - gritou a Menina do Mar.
O polvo, o caranguejo e o peixe, mal a viram, pararam de chorar e atiraram-se os três como cães aos pés do rapaz e começaram outra vez a mordê-lo e a picá-lo. O polvo com os seus oito braços chicoteava-lhe as pernas.
‒ Estejam quietos, parem, não lhe façam mal, ele é meu amigo e não me vai fritar ‒ gritou-lhes a Menina do Mar. O polvo, o caranguejo e o peixe interromperam a pancadaria, espantadíssimos com estas palavras. O rapaz
baixou-se e pôs a menina na água ao pé dos seus três amigos, que davam saltos de alegria e muitas gargalhadas. Pediu à Menina do Mar, ao polvo, ao caranguejo e ao peixe para voltarem no dia seguinte à mesma hora àquele mesmo sítio.
‒ Tenho tanta curiosidade da Terra – disse a Menina, - amanhã, quando vieres, traz-me uma coisa da terra.
E assim ficou combinado.
No dia seguinte, logo de manhã. o rapaz foi ao seu jardim e colheu uma rosa encarnada muito perfumada. Foi para a praia e procurou o lugar da véspera.
‒ Bom-dia, bom-dia, bom-dia - disseram a Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe.
‒ Bom-dia ‒ disse o rapaz. E ajoelhou-se na água, em frente da Menina do Mar.
‒ Trago-te aqui uma flor da terra ‒ disse; chama-se uma rosa.
E linda, é linda - disse a Menina do Mar, dando palmas de alegria e correndo e saltando em roda da rosa.
‒ Respira o seu cheiro para veres como é perfumada.
A Menina pôs a sua cabeça dentro do cálice da rosa e respirou longamente.
Depois levantou a cabeça e disse suspirando:
‒ É um perfume maravilhoso. No mar não há nenhum perfume assim. Mas estou tonta e um bocadinho triste. As coisas da terra são esquisitas. São
diferentes das coisas do mar. No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas.
‒ Isso é por causa da saudade ‒ disse o rapaz.
‒ Mas o que é a saudade? ‒ perguntou a Menina do Mar.
‒ A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora.
‒ Ai! - suspirou a Menina do Mar olhando para a Terra. Por que é que me
mostraste a rosa? Agora estou com vontade de chorar.
O rapaz atirou fora a rosa e disse:
‒ Esquece-te da rosa e vamos brincar.
E foram os cinco, o rapaz, a Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe pelos carreirinhos de água, rindo e brincando durante a manhã toda.
Até que a maré começou a subir e o rapaz teve que se ir embora.
No dia seguinte, de manhã, tornaram a encontrar-se todos no sítio do costume.
‒ Bom-dia ‒ disse a Menina. ‒ O que é que me trouxeste hoje?
O rapaz pegou na Menina do Mar, sentou-a numa rocha e ajoelhou-se a seu
lado.
‒ Trouxe-te isto ‒ disse. ‒ E uma caixa de fósforos.
‒ Não é muito bonito ‒ disse a Menina.
‒ Não; mas tem lá dentro uma coisa maravilhosa, linda e alegre que se chama o fogo. Vais ver.
E o rapaz abriu a caixa e acendeu um fósforo.
A Menina deu palmas de alegria e pediu para tocar no fogo.
‒ Isso ‒ disse o rapaz ‒ é impossível. O fogo é alegre, mas queima.
‒ É um sol pequenino ‒ disse a Menina do Mar.
‒ Sim ‒ disse o rapaz ‒ mas não se lhe pode tocar.
E o rapaz soprou o fósforo e o fogo apagou-se.
‒Tu és bruxo ‒ disse a Menina ‒ sopras e as coisas desaparecem.
‒ Não sou bruxo. O fogo é assim. Enquanto é pequeno qualquer sopro o apaga.
Mas depois de crescido pode devorar florestas e cidades.
‒Então o fogo e pior do que a Raia? ‒ perguntou ‒ a Menina.
‒ É conforme. Enquanto o fogo é pequeno e tem juízo é o maior amigo do
homem: aquece-o no Inverno, cozinha-lhe a comida, alumia-o durante a noite. Mas quando o fogo cresce de mais, zanga-se, enlouquece e fica mais ávido, mais cruel e mais perigoso do que todos os animais ferozes.
‒ As coisas da terra são esquisitas e diferentes ‒ disse a Menina do Mar. Conta-me mais coisas da terra.
Então sentaram-se os dois dentro de água e o rapaz contou-lhe como era a sua casa e o seu jardim e como eram as cidades e os campos, as florestas e as estradas.
‒Ah! Como eu gostava de ver isso tudo ‒ disse a Menina cheia de curiosidade.
‒ Vem comigo ‒ disse o rapaz ‒ eu levo-te à terra e mostro-te coisas lindas.
‒ Não posso porque sou uma Menina do Mar. O mar é a minha terra. Tu se vieres para o mar afogas-te. E eu se for para a terra seco. Não posso estar muito tempo fora de água. Fora de água fico como as algas na maré vaza, que ficam todas enrugados e secas. Se eu saísse do mar, ao fim de algumas horas ficava igual a um farrapo de roupa velha ou a um papel de jornal, destes que às vezes há nas praias e que têm um ar tão triste e infeliz de coisa que já não serve e que foi deitada fora e que já ninguém quer.
‒ Que pena que eu tenho de não te poder mostrar a terra! – disse o rapaz.
‒ E eu que pena tenho de não te poder levar comigo ao fundo do mar para te mostrar as florestas de algas, as grutas de corais e os jardins de anêmonas!
E nessa manhã o rapaz e a Menina, enquanto nadavam na água, iam contando um ao outro as histórias do mar e as histórias da terra.
Até que a maré subiu e despediram-se.
No dia seguinte o rapaz chegou à praia, sentou-se ao lado da Menina do Mar e disse:
‒Hoje trago-te uma coisa da terra que é bonita e tem lá dentro alegria.
Chama-se vinho. Quem bebe fica cheio de alegria.
Enquanto dizia isto o rapaz pousou no ar um copo cheio de vinho. Era um
daqueles copos muito pequenos que servem para beber licores. A Menina do Mar segurou o copo com as duas mãos e olhou o vinho cheia de curiosidade, respirando o seu perfume.
‒ É muito encarnado e muito perfumado ‒ disse ela. ‒ Conta-me o que é o vinho.
‒ Na terra -- respondeu o rapaz - há uma planta que se chama videira. No
Inverno parece morta e seca. Mas na Primavera enche-se de folhas e no Verão enche-se de frutos que se chamam uvas e que crescem em cachos. E no Outono os homens colhem os cachos de uvas e põem-nos em grandes tanques de pedra onde os pisam até que o seu sumo escorra. E a esse sumo dos frutos da videira que chamamos o vinho. Esta é a história do vinho, mas o seu sabor não o sei contar. Bebe se queres saber como é.
E a Menina bebeu o vinho, riu-se e disse:
‒ É bom e é alegre. Agora já sei o que é a terra. Agora já sei o que é o sabor da Primavera, do Verão e do Outono. Já sei o que é o sabor dos frutos. Já sei o que é a frescura das árvores. Já sei como é o calor duma montanha ao sol. Leva-me a ver a terra. Eu quero ir ver a terra. Há tantas coisas que eu não sei. O mar é uma prisão transparente e gelada. No mar não há Primavera nem Outono. No mar o tempo não morre. As anêmonas estão sempre em flor e a espuma é sempre branca. Leva-me a ver a terra.
‒ Tenho uma ideia - disse o rapaz. ‒ Amanhã trago um balde e encho-o com água do mar e algas. E tu pões-te dentro do balde para não secares e eu levo-te comigo a ver a terra.
‒ Está bem ‒ disse a Menina. ‒ Amanhã vou contigo dentro do balde de água. E vou ver a tua casa e vou ver o teu jardim e vou ver passar os comboios: e vou ver a noite numa cidade cheia de luzes, de gente e de carros. E vou ver os animais da terra, os cães, os cavalos, os gatos: e vou ver as montanhas, as florestas e todas as coisas que me contaste.
E assim o rapaz e a Menina do Mar passaram o resto da manhã a fazer planos para a aventura do dia seguinte. Até que a maré subiu e o rapaz foi-se embora.
No outro dia o rapaz veio para as rochas com o balde. Vinha muito alegre,
entusiasmado com o seu projeto, cantando e dando saltos. Mas quando chegou à poça de água encontrou a Menina do Mar com um ar muito desesperado e o polvo, o caranguejo e o peixe todos três com cara de caso.
‒ Bom-dia ‒ disse o rapaz. Trago aqui o balde. Vamos embora depressa.
‒ Eu não posso ir ‒ disse a Menina do Mar. E desatou a chorar como uma fonte.
‒ Mas por quê? ‒ perguntou o rapaz.
‒ Por causa dos búzios. Os búzios têm muito bom ouvido, ouvem tudo, são os ouvidos do mar. E ouviram as nossas conversas e foram contá-las à Raia que ficou furiosa e agora eu já não posso ir contigo.
‒ Mas a Raia não está aqui. Mete-te dentro do balde e vamos embora depressa.
‒ É impossível ‒ disse a Menina do Mar. A Raia ordenou aos polvos que não me deixassem passar. As rochas estão cheias de polvos escondidos que nós não vemos, mas que nos vêem e espiam cada um dos nossos gestos. Tenho que te dizer adeus para sempre. Amanhã já não volto aqui porque a Raia, para me castigar de eu ter querido fugir, decidiu que esta noite ao nascer da Lua eu serei levada pelos polvos, para uma praia distante, que eu não sei como se chama, nem onde fica. E nunca mais nos poderemos encontrar.
‒ Vamos experimentar fugir ‒ disse o rapaz. Eu com as minhas duas pernas corro mais do que os polvos com os seus oito braços, que nem são braços nem são pernas.
E, tendo dito isto, pôs a Menina do Mar dentro do balde e pôs-se a correr. Mas, no mesmo instante, as rochas cobriram-se de polvos. Para qualquer lado que ele olhasse só via polvos. Procurou uma aberta por onde passar, mas não havia nenhuma. Em sua roda os polvos tinham feito um círculo fechado. E ele estava no meio do círculo e não podia fugir. Então tentou saltar por cima dos polvos, mas logo dezenas de tentáculos lhe ataram as pernas.
‒ Larga-me, larga-me - dizia a Menina do Mar. Larga-me senão matam-te.
- Não, não te largo - respondeu o rapaz.
Mas já os polvos lhe envolviam a cintura e o peito, lhe prendiam os ombros, lhe atavam os pulsos e ele caiu nas rochas sem poder fazer nenhum gesto. Mas a sua mão ainda não tinha largado o balde. Até que um polvo se enrolou à roda do seu pescoço e o foi apertando lentamente. Então o rapaz viu o céu ficar preto, deixou de ouvir o barulho das ondas e esqueceu-se de tudo. Estava desmaiado. Acordou com a água a bater-lhe na cara. A maré tinha subido e as ondas já quase cobriam a rocha onde ele estava caído. Levantou-se e todo o seu corpo ainda lhe doía, coberto de marcas deixadas pelas ventosas dos polvos. Foi para casa devagar.
Passaram dias e dias. O rapaz voltou muitas vezes às rochas, mas nunca mais viu a Menina nem os seus três amigos. Era como se tudo tivesse sido um sonho.
Até que chegou o Inverno. O tempo estava frio, o mar cinzento e chovia quase todos os dias. E numa manhã de nevoeiro o rapaz sentou-se na praia a pensar na Menina do Mar.
E enquanto assim estava viu uma gaivota que vinha do mar alto com uma coisa no bico. Era uma coisa brilhante que refletia luz e o rapaz pensou que devia ser um peixe. Mas a gaivota chegou junto dele, deu urna volta no ar e deixou cair a coisa na areia.
O rapaz apanhou-a e viu que era um frasco cheio duma água muito clara e
luminoso.
‒ Bom-dia, bom-dia ‒ disse a gaivota.
‒ Bom-dia, bom-dia ‒ respondeu o rapaz.
Donde é que vens e porque é que me dás este frasco?
‒ Venho da parte da Menina do Mar ‒ disse a gaivota. Ela manda-te dizer que já sabe o que é a saudade. E pediu-me para te perguntar se queres ir ter com ela ao fundo do mar.
‒ Quero, quero ‒ disse o rapaz. Mas como é que eu hei de ir ao fundo do mar sem me afogar?
‒ O frasco que te dei tem dentro suco de anêmonas e suco de plantas mágicas.
Se beberes agora este filtro passarás a ser como a Menina do Mar. Poderás viver dentro da água como os peixes e fora da água como os homens.
‒ Vou beber já ‒ disse o rapaz.
E bebeu o filtro.
Então viu tudo à sua roda tornar-se mais vivo e mais brilhante. Sentiu-se alegre, feliz, contente como um peixe. Era como se alguma coisa nos seus movimentos tivesse ficado mais livre, mais forte, mais fresca e mais leve.
‒ Ali no mar ‒ disse a gaivota ‒ está um golfinho à tua espera para te ensinar o caminho.
O rapaz olhou e viu um grande golfinho preto e brilhante dando saltos atrás da arrebentação das ondas. Então disse:
‒ Adeus, adeus, gaivota. Obrigado, obrigado.
E correu para as ondas e nadou até ao golfinho.
‒ Agarra-te à minha cauda ‒ disse o golfinho.
E foram os dois pelo mar fora.
Nadaram muitos dias e muitas noites através de calmarias e tempestades.
Atravessaram o mar dos Sargaços e viram os peixes voadores. E viram as
grandes baleias que atiram repuxos de água para o céu e viram os grandes
vapores que deixam atrás de si colunas de fumo suspensas no ar. E viram os icebergues majestosos e brancos na solidão do oceano. E nadaram ao lado dos veleiros que corriam velozes esticados no vento. E os marinheiros gritavam de espanto quando viam um rapaz agarrado à cauda dum golfinho. Mas eles mergulhavam e desciam ao fundo do mar para não serem pescados.
Aí estavam os antigos navios naufragados com os seus cofres carregados de ouro e os seus mastros quebrados cobertos de anêmonas e conchas.
Depois de nadarem sessenta dias e sessenta noites chegaram a uma ilha rodeada de corais. O golfinho deu a volta à ilha e por fim parou em frente duma gruta e disse:
‒ É aqui: entra na gruta e encontrarás a Menina do Mar.
‒ Adeus, adeus, golfinho. Obrigado, obrigado.
A gruta era toda de coral e o seu chão era de areia branca e fina. Tinha em frente um jardim de anêmonas azuis.
O rapaz entrou na gruta e espreitou. A Menina, o polvo, o caranguejo e o peixe estavam a brincar com conchinhas. Estavam quietos, tristes e calados. De vez em quando a Menina suspirava.
‒ Estou aqui! Cheguei! Sou eu! ‒ gritou o rapaz.
Todos se voltaram para ele. Houve um momento de grande confusão. Todos se abraçaram, todos riam, todos gritavam. A Menina do Mar dançava, batia palmas e ria com gargalhadas claras como a água. O polvo fazia o pino. O caranguejo dava cambalhotas e o peixe dava saltos mortais. Depois de todas estas habilidades ficaram um pouco mais calmos.
Então a Menina do Mar sentou-se no ombro do rapaz e disse:
‒ Estou tão feliz, tão feliz, tão feliz! Pensei que nunca mais te ia ver. Sem ti o mar, apesar de todas as suas anêmonas, parecia triste e vazio. E eu passava os dias inteiros a suspirar. E não sabia o que havia de fazer. Até que um dia o Rei do Mar deu uma grande festa. Convidou muitas baleias, muitos tubarões e muitos peixes importantes. E mandou-me ir ao palácio para eu dançar na festa.
No fim do banquete chegou a altura da minha dança e eu entrei na gruta onde o Rei do Mar estava com os seus convidados, sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos. Então os búzios começaram a cantar uma cantiga antiquíssima que foi inventada no principio do Mundo. Mas eu estava muito triste e por isso dancei muito mal.
‒ Porque é que estás a dançar tão mal? ‒ perguntou o Rei do Mar.
‒ Porque estou cheia de saudades ‒ respondi eu.
‒ Saudades? ‒ disse o Rei do Mar. Que história é essa?
E perguntou ao polvo, ao caranguejo e ao peixe o que tinha acontecido. Eles contaram-lhe tudo. Então o Rei do Mar teve pena da minha tristeza e teve pena de ver uma bailarina que já não sabia dançar. E disse:
No dia seguinte de manhã eu voltei ao palácio. E o Rei do Mar sentou-me no seu ombro e subiu comigo à tona das águas. Chamou uma gaivota, deu-lhe o frasco com o filtro das anêmonas e mandou-a ir à tua procura. E foi assim que eu consegui que tu voltasses.
‒ Agora nunca mais nos separamos ‒ disse o rapaz.
‒ Agora vais ser forte como um polvo.
‒ Agora vais ser sábio como um caranguejo ‒ disse o caranguejo.
‒ Agora vais ser feliz como um peixe ‒ disse o peixe.
‒ Agora a tua terra é o Mar ‒ disse a Menina do Mar.
E foram os cinco através de florestas, areais e grutas.
No dia seguinte houve outra festa no Palácio do Rei. A Menina do Mar dançou toda a noite e as baleias, os tubarões as tartarugas e todos os peixes diziam:
‒ Nunca vimos dançar tão bem.
E o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos marinhos, e o seu manto de púrpura nas águas.


REFERÊNCIAS


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MANOEL DE BARROS

Nascido em Cuiabá em 1916, Manoel de Barros estreou em 1937 com o livro “Poemas Concebidos sem Pecado”. Sua obra mais conhecida é o “Livro sobre Nada”, publicado em 1996.
Cronologicamente vinculado à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de Barros criou um universo próprio — subvertendo a sintaxe e criando construções que não respeitam as normas da língua padrão —, marcado, sobretudo, por neologismos e sinestesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa.
Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros escreveu: “A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”. Os poemas publicados nesta seleção fazem parte do livro “Manoel de Barros — Poesia Completa Bandeira”, editora Leya. Por motivo de direitos autorais, apenas trechos dos poemas foram publicados.

O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.

O apanhador de desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O menino azul

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios, 
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos 
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim 
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses, 
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

Sonhos da menina

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho 
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho 
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Leilão de jardim


Quem me compra um jardim
com flores?
 
borboletas de muitas
cores,
 
lavadeiras e pas
sarinhos,
 
ovos verdes e azuis
nos ninhos?
 
Quem me compra este ca-
racol?
 
Quem me compra um raio
de sol?
 
Um lagarto entre o muro
e a hera,
 
uma estátua da Pri-
mavera?
 
Quem me compra este for-
migueiro?
 
E este sapo, que é jar-
dineiro?
 
E a cigarra e a sua
canção?
 
E o grilinho dentro
do chão?
 
 Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.



REFERÊNCIAS:

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. A Menina do Mar. Editora: Cosac Naify. 2014.
_____________________________. Poemas escolhidos. Seleção de Vilma Areas. São Paulo, Cia das Letras, 2004.



Guimarães Rosas. Pirlimpsiquice. Primeiras Histórias, 1962.
“Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?”


Saramago. O Memorial do Convento.
O Padre Bartolomeu Lourenço comanda a construção de uma passarola. Blimunda e seu marido Baltasar Sete-Sóis auxiliam o padre em seu empreendimento. A participação de Blimunda é decisiva, pois é ela quem se responsabiliza por capturar as vontades que farão a passarola erguer-se do solo.


“Ficou o Padre Bartolomeu Lourenço satisfeito com o lanço, era o primeiro dia, mandados assim à ventura, para o meio duma cidade afligida de doença e luto, aí estão vinte e quatro vontades para assentar no papel. Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vontades, força de elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com o que segundo frasco foi entregue a Blimunda. Já em Lisboa muito se falava daquela mulher e daquele homem que percorriam a cidade de ponta a ponta, sem medo da epidemia, ele atrás, ela adiante, sempre calados, nas ruas por onde andavam, nas casas onde não se demoravam, ela baixando os olhos quando tinha de passar por ele, e se o caso, todos os dias repetido, não causou maiores suspeitas e estranhezas, foi por ter começado a correr a notícia de que cumpriam ambos penitência, estratagema inventado pelo padre Bartolomeu Lourenço quando se ouviram as primeiras murmurações.”

Trecho do livro As pequenas memórias.
“Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo meu pai a declarar no Registro Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudônimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era Jose de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente de Sousa.”

Referência


SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 43-44.


Morte e vida Severina, João Cabral de Melo Neto

‒ Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?  
‒ Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?  
‒ Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.  
‒ Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?  
‒ Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.  
‒ Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?  
‒ Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.  
‒ Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.  
‒ Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?  
‒ Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:  
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.  
‒ E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?  
‒ é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.  
‒ E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?  
‒ De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.  
‒ E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?  


‒ Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.


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